O Maio de 68 visto do outro lado da barricada
Como é que o Estado francês, do Palácio do Eliseu à esquadra de polícia, reagiu ao Maio de 68? A exposição L’Autorité en Crise, promovida pelos Arquivos Nacionais, mostra as hesitações e contradições do aparelho de poder, mas também a sua capacidade de reagir, mudar e sobreviver.
Primeira parte da dupla exposição 68 – Les Archives du Pouvoir, organizada pelos Arquivos Nacionais de França nos seus pólos de Paris e Pierrefite-sur-Seine, L’Autorité en Crise, que pode ser vista até 17 de Setembro na histórica sede parisiense da instituição, no Hôtel de Soubise, é uma fascinante incursão na intimidade de um aparelho de poder obrigado a lidar simultaneamente com dez milhões de trabalhadores em greve e uma juventude que contestava abertamente a autoridade e erguia barricadas nas ruas.
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Primeira parte da dupla exposição 68 – Les Archives du Pouvoir, organizada pelos Arquivos Nacionais de França nos seus pólos de Paris e Pierrefite-sur-Seine, L’Autorité en Crise, que pode ser vista até 17 de Setembro na histórica sede parisiense da instituição, no Hôtel de Soubise, é uma fascinante incursão na intimidade de um aparelho de poder obrigado a lidar simultaneamente com dez milhões de trabalhadores em greve e uma juventude que contestava abertamente a autoridade e erguia barricadas nas ruas.
Com centenas de documentos inéditos, muitos deles vindos de arquivos que só agora foram abertos ao público, cumpridos os 50 anos do período legal de reserva, L’Autorité en Crise mostra as hesitações e contradições do poder gaullista perante o Maio de 68, mas também um Estado que nunca deixou de funcionar a todo o vapor e que, após alguma desorientação inicial, soube recompor-se e acabou por virar o jogo a seu favor. Reprimindo aqui, cedendo ali, e reinventando-se diariamente num cenário de emergência.
Se L’Autorité en Crise mostra como um Estado funciona – como se informa, organiza, toma decisões, age –, a sua exposição-gémea em Pierrefite-sur-Seine, Les Voix de la Contestation, dá a ver o surpreendente volume de informação e documentação que as autoridades conseguiram reunir sobre as organizações envolvidas nos protestos e respectivos militantes, um esforço que se intensificou muitíssimo após o célebre decreto de 12 de Junho ter imposto a dissolução de várias organizações de extrema-esquerda. Uma das peças centrais desta mostra é um gigantesco armário arquivador em cujas 112 gavetas os visitantes encontram as fichas que os serviços de informação produziram de todos os “esquerdistas” identificados.
Ambas as exposições foram comissariadas pelo historiador Philippe Artières e por Emmanuelle Giry, conservadora dos Arquivos Nacionais, também co-autores do notável catálogo 68 – Les Archives du Pouvoir, publicado pelas edições L’Iconoclaste e que é provavelmente, de todas as obras lançadas neste 50.º aniversário do Maio de 68, a que mais material novo vem trazer à proliferante historiografia do movimento.
Se não levarmos demasiado a sério a tese de Régis Debray, hoje bastante glosada, de que o Maio de 68 foi essencialmente uma triunfante contra-revolução burguesa que sepultou a tradição colectivista da esquerda e abriu caminho ao neo-liberalismo, o levantamento estudantil parisiense parece constituir uma notória excepção ao postulado orwelliano de que a História é escrita pelos vencedores. Dos dossiers de imprensa que foram assinalando os sucessivos aniversários da revolta até à gigantesca acumulação de livros, filmes ou exposições que alimentam há meio século a nossa memória dos acontecimentos (que já mal se destrinça deles), o Maio de 68 é uma história que nos habituámos a ouvir contar na voz (não isenta de nostalgia) dos que desafiaram o poder e perderam a partida.
De facto, e ao contrário dos trabalhadores, que protagonizaram a maior greve geral da França do século XX e puderam reclamar pelo menos uma vitória parcial com as importantes cedências que conseguiram do Governo e do patronato nos acordos de Grenelle, assinados a 27 de Maio, a juventude universitária que lançou a revolta parece ter sido inequivocamente batida pelo poder gaullista, que desmantelou as suas organizações e ganhou confortavelmente as eleições legislativas no final de Junho.
No entanto, a construção da narrativa do Maio de 68 deveu sempre bastante mais aos que ergueram as barricadas, e em particular aos líderes da contestação – Jacques Sauvageot, Alain Geismar e o carismático Daniel Cohn-Bendit – do que aos principais representantes da autoridade da época, do presidente De Gaulle e do seu primeiro-ministro, Georges Pompidou, a Alain Peyrefitte, ministro da Educação, ou ao odiado Raymond Marcellin, que no final de Maio rendeu Christian Fouchet na tutela do Interior e repôs a ordem com mão de ferro. E é também por isso que, ao mostrar-nos o Maio de 68 tal como este foi visto do outro lado da barricada, esta exposição, sem tomar posição e sem trazer propriamente revelações sensacionais, vem preencher uma lacuna fundamental.
Reprimir ou negociar?
Para escolher as peças agora expostas em Paris, uma equipa de investigadores estudou centenas de metros lineares de arquivos, um verdadeiro mar de papel que mostra, desde logo, como o Estado manteve uma produção febril num país paralisado por uma greve geral, sem distribuição de correio ou recolha de lixo, e com o açambarcamento de gasolina a desesperar os automobilistas parisienses. Um dos documentos seleccionados é um organograma manuscrito dos serviços mínimos necessários para assegurar a distribuição de correio prioritário: plasma sanguíneo, vacinas, antibióticos, correspondência oficial, correio familiar urgente.
Mas nem tudo é papel na exposição de Paris, que começa logo no exterior do edifício dos Arquivos Nacionais, onde foi erguida uma espécie de paliçada na qual vão sendo diariamente afixadas reproduções de documentos expostos no interior. No acesso à sala que acolhe a exposição propriamente dita, o visitante pode apreciar, por exemplo, alguns dos objectos utilizados pelas forças da ordem, em particular pelos CRS (agentes das Compagnies Républicaines de Sécurité): escudos, capacetes, matracas, algemas, máscaras de gás. Mas uma das ideias-feitas que esta exposição ajuda a desmontar é precisamente a de que o Estado teria recorrido preferencialmente às CRS para lidar com a contestação. As fotografias e os cartazes da época – a imagem de Cohn-Bendit a sorrir para um CRS tornou-se um ícone visual do Maio de 68 – ajudaram a generalizar esta convicção, mas a verdade é que foram apenas mobilizados 11 mil CRS, contra mais de 16 mil efectivos da polícia militar e 25 mil agentes da polícia de Paris. Certo é que os CRS tiveram bastante a ganhar com o Maio de 68: salários mais altos, menos horas de trabalho e novos equipamentos, incluindo escudos transparentes.
Para introduzir mais directamente o visitante no contexto da época, L’Autorité en Crise exibe também ininterruptamente gravações de excertos de telejornais desses meses de Maio e Junho, reportagens das Actualités Françaises, que eram mostradas nas salas de cinema a preceder a exibição dos filmes, mas também emissões televisivas especiais, como a célebre alocução do general De Gaulle no dia 24 de Maio, na qual o Presidente da República propõe um referendo que renove a sua legitimidade e acaba por provocar uma espécie de segunda noite das barricadas, marcada por vários episódios de violência.
Já da verdadeira noite das barricadas, de 10 para 11 de Maio, o visitante pode ouvir excertos das gravações áudio da sala de operações do comando central da Polícia de Paris, de onde partiam as instruções para os agentes no terreno. Um registo sonoro que ajuda a perceber um dos enigmas do Maio de 68: o facto de, durante horas, os manifestantes terem podido erguer barricadas nas ruas sem que a polícia interviesse. A explicação é que, embora as forças policiais estivessem na rua, a ordem superior para atacar os revoltosos e desmantelar as barricadas só chegou ao próprio quartel-general da polícia às 2h15 da madrugada.
Esta hesitação simboliza bem a actuação inicial do Estado perante a revolta estudantil. Embora os episódios de insurreição se sucedessem em diversas universidades desde o início do ano, a documentação agora exibida mostra que o poder foi ainda assim apanhado de surpresa pela dimensão que o movimento alcançou no início de Maio. E procurou protelar o mais possível o confronto entre a polícia e os manifestantes, num momento em que ainda todos se lembravam do massacre de 8 de Fevereiro de 1962 na estação de metro de Charonne, em Paris, quando o então comandante da polícia, Maurice Papon, mandou reprimir violentamente uma manifestação contra a Guerra da Argélia e os seus agentes mataram nove pessoas. (Um episódio traumático, mas comparativamente menor na sinistra carreira de Papon, que em 1998 foi condenado por crimes contra a humanidade, depois de o tribunal dar como provado que fora pessoalmente responsável por enviar 1600 judeus para campos de concentração nazis.)
A lucidez de Ducamin
Quando rebenta a revolta, o poder dá sinais exteriores de alguma despreocupação. Pompidou parte a 2 de Maio para uma deslocação oficial ao Irão e ao Afeganistão e só regressa a Paris no dia 11. Três dias depois, no auge da contestação, De Gaulle viaja para a Roménia. Mas na ausência sucessiva das duas principais figuras do Estado, os seus mais directos conselheiros e colaboradores trabalham arduamente, como se constata pelos muitos memorandos e notas que produzem por esses dias, e a azáfama não é menor nos diferentes gabinetes ministeriais.
Um dos méritos desta exposição é fazer justiça a alguns conselheiros políticos de reduzida ou inexistente visibilidade pública, mas cuja lucidez pode ter ajudado a evitar o pior nessas semanas difíceis. Uma dessas obscuras peças da complexa engrenagem do Estado que mereceria ser recordada é Bernard Ducamin (1928-2012), um dos homens da equipa do influente secretário-geral da Presidência da República, Bernard Tricot. Quando De Gaulle regressou da Roménia, Tricot entregou-lhe um dactiloscrito redigido por Ducamin (que não tinha acesso directo ao general), no qual este alertava para a gravidade da situação, denunciava frontalmente a apatia do Governo e recomendava uma remodelação ministerial, sugerindo a substituição dos ministros dos Assuntos Sociais, da Informação e, sobretudo, da Educação Nacional: “Urgente, extremamente urgente, é dar ao mundo universitário a impressão de que um homem de envergadura, nomeado para o lugar de M. Peyrefitte, possa tornar plausível uma reforma profunda, rápida e não unilateral das nossas instituições universitárias.” Estes e outros conselhos não serão seguidos de imediato, mas a verdade é que todos os três ministros apontados cairão na remodelação governativa de 31 de Maio.
De importância potencialmente ainda mais crucial é a nota manuscrita que Ducamin redige no mesmo dia contra a eventualidade de o Presidente da República recorrer ao Artigo 16, que tinha sido criado em 1955 e consagrava um estado de emergência, durante o qual os poderes das autoridades administrativas eram significativamente ampliados. De Gaulle usara-o em 1961, no contexto de uma insubordinação militar relacionada com a Guerra da Argélia, e a possibilidade de o voltar a fazer em 1968 estava a ser seriamente discutida. Na sua nota, Ducamin explica por que é que achava que tal seria contraproducente e politicamente “desastroso”, manifestando a sua convicção de que uma boa parte do país queria ver a ordem reposta, mas também aspirava a uma efectiva renovação, e que os próprios dirigentes do movimento só não tinham ainda jogado tudo por tudo por acreditarem que De Gaulle iria dialogar com eles e “atacar os problemas de fundo”. Ora, argumenta, usar “uma medida que para muitos é como o símbolo da ditadura” só serviria para radicalizar a contestação e “lançar na aventura” os muitos que ainda hesitavam.
Muitos dos documentos reunidos nesta exposição têm uma relevância histórica óbvia, como a carta de 29 de Maio em que Pompidou pede a demissão, que De Gaulle recusa, ou o dactiloscrito do discurso radiofónico que o general dirige à nação no dia seguinte, abundantemente corrigido à mão para incorporar à última hora alterações sugeridas pelo seu primeiro-ministro. E que não eram propriamente de somenos: onde De Gaulle escrevera que não iria dissolver o Parlamento, risca e redige à mão “Dissolvo hoje a Assembleia Nacional”. Pompidou convencera-o a convocar eleições legislativas e a aceitar uma profunda remodelação ministerial.
Mas L’Autorité en Crise não é elitista em matéria documental. Ao lado de papéis assinados pelas figuras máximas do Estado, encontramos, por exemplo, dezenas de “notas brancas”, sem assinatura, enviadas pelas diversas forças policiais em todo o país, dando conta da situação nas universidades e nas fábricas, adiantando percentagens de adesão às greves e calculando números de manifestantes, mas também fornecendo apreciações sobre o impacto na população das mais recentes medidas políticas. Uma nuvem de papéis que os serviços de informação, dependentes do Ministério do Interior, os Renseignements Généraux, recebiam, sintetizavam e devolviam à circulação sanguínea do Estado, para que subisse ao gabinete do ministro, e através dele ao Governo.
O violento mês de Junho
O percurso expositivo de L’Autorité en Crise estrutura-se cronologicamente em torno de algumas datas fundamentais do movimento, começando com o núcleo relativo a 13-14 de Fevereiro, quando os regulamentos das residências universitárias desencadeiam uma primeira onda de contestação nas universidades francesas. O facto de nos referirmos hoje ao Maio de 68, como se o movimento tivesse nascido e morrido no espaço de um mês, é a prova da persistência de outro equívoco que esta exposição procura contrariar. Quer seguindo os primeiros passos de um movimento estudantil cujo epicentro só a 3 de Maio se mudará de Nanterre para a Sorbonne, no Quartier Latin, quer acompanhando, para lá de Maio, as lutas estudantis e operárias que prosseguirão durante todo o mês de Junho.
E Junho foi na verdade mais violento do que o mês anterior, com a chegada de Marcellin ao Ministério do Interior a fazer pender o Governo para uma atitude mais repressiva. Se no final de Maio houvera a lamentar a morte de um comissário de polícia esmagado por um camião, os confrontos entre manifestantes e polícia junto à fábrica da Renault de Flins, em Meulan, resultam na morte do jovem militante maoista Gilles Tautin, de 17 anos, afogado no Sena, no dia 10, quando tentava escapar a uma carga da polícia militar. E logo na manhã do dia seguinte morrem dois operários (um deles baleado) na fábrica da Peugeot de Sochaux.
Mas esta exposição interessa-se também pelas consequências imediatas do Maio de 68. Daí que algumas peças expostas sejam bastante posteriores ao movimento, como a primeira versão projecto de lei para reformar o ensino superior que o novo ministro da Educação, Edgar Faure, apresentou em Novembro de 1968, e que integrava várias das reivindicações dos estudantes. Um de muitos documentos que ajudam a mostrar que o Maio de 68 também transformou profundamente o Estado, obrigando-o a modernizar-se.
Se De Gaulle sobreviveu à crise e conseguiu ampliar a sua maioria na Assembleia Nacional, o certo é que em 1969 já tinha renunciado e deixado o caminho aberto a Georges Pompidou, que ao longo dos meses quentes de Maio e Junho de 1968 tivera sempre, como a documentação agora exposta no Hôtel de Soubise vem confirmar em detalhe, uma posição mais conciliadora do que a do general, que tendia a lamentar a falta de firmeza das autoridades. Foi Pompidou que decidiu reabrir a Sorbonne após a noite das barricadas, como foi ele que tomou a iniciativa de encetar com os sindicatos uma negociação que iria conduzir directamente aos acordos de Grenelle.