Aqui viveram “dois gangs" de freiras e uma mulher apaixonada
Fundado no século XV por uma das mulheres mais influentes do reino, o Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja, é há 90 anos um museu, hoje a precisar de obras e de restauros vários. Foi lá que viveu Mariana Alcoforado, foi para lá que as freiras clarissas, divididas em duas facções, fizeram importantes encomendas artísticas. Muitos dos que ali entram vão à procura de uma janela.
Se estivesse onde devia estar, a Janela de Mértola ficaria no piso térreo, muito perto da pimenteira-bastarda que hoje cobre o passeio de sombra e de folhas. Terá sido a partir desta janela gradeada, símbolo da clausura em que viviam as freiras do Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja, que Mariana Alcoforado viu pela primeira vez o cavaleiro francês por quem se viria a apaixonar, Nöel Bouton, futuro marquês de Chamilly.
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Se estivesse onde devia estar, a Janela de Mértola ficaria no piso térreo, muito perto da pimenteira-bastarda que hoje cobre o passeio de sombra e de folhas. Terá sido a partir desta janela gradeada, símbolo da clausura em que viviam as freiras do Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja, que Mariana Alcoforado viu pela primeira vez o cavaleiro francês por quem se viria a apaixonar, Nöel Bouton, futuro marquês de Chamilly.
É esta janela que deve o nome ao facto de estar virada para a Porta de Mértola, a antiga entrada da cidade que foi buscar o nome à vila raiana das margens do Guadiana, que leva muitos estrangeiros a visitarem este monumento, que hoje é mais pequeno do que já foi e que há 90 anos serve de casa ao Museu Rainha D. Leonor, também conhecido como Museu Regional de Beja. “A maioria dos nossos visitantes vem à procura da janela da Mariana. Vem atrás dela e dessa história de amor com centenas de anos que hoje é contada em muitas línguas”, diz Francisco Paixão, o técnico superior que ali trabalha há 30 anos e que há dois cumpre as funções do director que, formalmente, o museu não tem.
Um museu instalado num monumento não é caso raro, mas no de Beja o que há de singular não se resume a uma freira apaixonada por um oficial francês que deixa por cumprir a promessa que lhe fizera. A história desta casa religiosa construída na segunda metade do século XV para as religiosas da Ordem de Santa Clara, a mando dos infantes D. Fernando e D. Beatriz, os primeiros e muito influentes duques de Beja, está recheada de episódios e figuras particulares.
D. Beatriz (1430-1506), neta de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, mãe da rainha D. Leonor e do rei D. Manuel I, que nasceu quando ela já tinha quase 40 anos, era uma mulher culta e devota que teve um papel primordial na manutenção da paz entre Portugal e Castela. Fundou o convento de clausura nas imediações do seu palácio – demolido no final do século XIX, assim como boa parte daquela casa religiosa para que se pudesse reorganizar o centro da cidade – e deu-lhe meios para que se tornasse um dos mais ricos do reino. “O convento e o palácio eram uma espécie de complexo que concentrava muito poder aqui em Beja”, diz o museólogo.
Quem hoje percorre o que dele resta – a igreja, o claustro e a sala do capítulo – e se confronta com as portas e janelas de pedra muito trabalhada, com os azulejos portugueses e hispano-árabes que cobrem as paredes, com a talha dourada do altar-mor e com algumas das peças de ourivesaria que ainda se podem ver em exposição no museu não tem dúvidas de que aquele foi, ao longo de séculos, um importante convento com freiras vindas das melhores famílias. Ali entravam muitas vezes ainda em crianças – Mariana Alcoforado (1640-1723), por exemplo, chegou aos 11 anos, professou aos 16 e ali morreu aos 83 –, muitas com um belo dote e até com um staff pessoal.
“É preciso ver que os fundadores pertenciam à principal casa nobre portuguesa do século XV. Quem vinha para aqui eram as filhas das famílias com posses, umas mais do que outras. E foi assim durante os mais de 400 anos em que funcionou. Alguns dos pais mandavam construir aposentos para elas – verdadeiros apartamentos dentro do convento – e mantinham-nas aqui com todo o conforto, com criadas e escravas”, explica Paixão, chamando a atenção para uma curiosa fotografia em que aparecem quatro das derradeiras freiras do convento (a última morreu em 1892) junto a duas mulheres que ali trabalhavam. “Sendo de clausura, não podiam sair, mas mantinham muitos dos hábitos que tinham ao entrar.”
D. Beatriz, uma mulher politicamente muito hábil que educou D. Leonor para ser rainha e que teve ainda a felicidade de ver o seu filho mais novo tornar-se rei (D. Manuel foi nomeado sucessor pelo seu primo e cunhado, D. João II), era o motor deste convento, que no século XVII chegou a ter mais de 200 freiras e deixou-lhe muitos bens. “Pelos relatos que se conhecem ao longo das épocas e pelas encomendas artísticas que aqui encontramos ainda hoje, sabe-se que este era um espaço sofisticado onde viviam mulheres acostumadas ao melhor.”
Das suas residências e celas já nada resta. O edifício, que ia até ao terceiro andar, degradou-se muito a partir de 1834, ano em que sai o decreto que extingue os mosteiros e conventos de todas as ordens religiosas (às femininas foi autorizada a manutenção das casas apenas até à morte da última freira), e, quando é parcialmente demolido no final do século XIX, estava a precisar de uma intervenção urgente. Hoje, passados mais de 100 anos, continua a precisar, embora muita coisa se tenha alterado desde então, começando pelas portas e janelas que mudaram de um alçado do edifício para outro (o portal gótico ou a referida janela de Mariana Alcoforado).
“Este é um museu herdeiro dos gabinetes de curiosidades do século XVII, mistura arte e ciência”, diz Paixão, enquanto percorre as salas, falando de um acervo que inclui pintura, escultura, ourivesaria, azulejaria, têxteis, cerâmica, arqueologia e até um curioso conjunto ligado ao sistema de pesos e medidas, com peças com mais de 500 anos.
Entre o património móvel mais significativo estão, por exemplo, uma escudela (tigela) em porcelana da dinastia Ming, datada de 1541 e ligada a Pedro de Faria, capitão da feitoria portuguesa de Malaca; a “Estela do Guerreiro” (séculos VII a V a.C.), uma lápide funerária em xisto que é um dos mais notáveis exemplares da chamada “escrita do Sudoeste”, a mais antiga da Península Ibérica; os gigantescos capitéis do fórum da cidade que estão hoje junto à entrada de serviço, a provar que na época romana Beja teve uma dimensão e uma importância que jamais recuperou; dois andores processionais em prata do século XVIII; três pinturas portuguesas bem conservadas – um Ecce Homo (século XV), um S. Vicente (XVI) da escola do mestre do Sardoal e a Virgem da Rosa (XVI) de Francisco Campos – e outras tantas espanholas atribuídas a José de Ribera (século XVII), a precisar dos cuidados de um restaurador.
Freiras e rivais
É o património integrado do rés-do-chão, no entanto, que reflecte uma das características mais curiosas deste convento de clausura. Na igreja, no claustro de quatro alas onde está sepultada a fundadora, D. Beatriz, e na sala do capítulo, verdadeiro “cérebro” do convento onde tudo se decidia, das mais elevadas questões eclesiásticas à quantidade de sabão que era preciso comprar, torna-se evidente a divisão interna que ali marcava o quotidiano.
Lembra Francisco Paixão que as religiosas se organizavam em dois grupos rivais – de um lado as fiéis a S. João Baptista, do outro as adeptas de S. João Evangelista – e não faltam relatos de que, por vezes, “chegavam a vias de facto” na defesa dos interesses da sua facção. “Hoje diríamos que funcionavam quase como dois gangs no que os gangs têm de competição pelo território e pelo poder. A população aqui da cidade ficava do lado de fora à escuta das bulhas das freiras, que chegavam a andar à tareia.”
Pelos vários espaços vão-se encontrando as encomendas feitas pelos dois grupos, que mediam forças constantemente também através da arte. Sabe-se a qual deles pertencia quem manda fazer determinado altar ou painel de azulejos pelo santo que neles figura: S. João Baptista tem como atributos o cordeiro e o livro; ao Evangelista, tido como o maior teólogo entre os 12 apóstolos de Cristo, aparecem associados a águia, o tinteiro e a pena.
Dois andores-espectáculo
A cada um é consagrado, por exemplo, um dos andores que se podem ver na igreja de uma só nave que recebe quem entra no museu. A talha e o azulejo que cobrem as paredes são sinónimo de riqueza. Nos painéis de 1741 conta-se a história de S. João Baptista e a inscrição que nele se encontra não deixa dúvidas quanto ao grupo a que pertencia a doadora – Brites “Baptista” Abadessa.
“Esta é, provavelmente, a primeira abadessa [a freira que chefiava a comunidade religiosa] oriunda da burguesia e não da nobreza”, diz Paixão, apontando em seguida para o espaço que existe entre a talha e a parede de pedra junto ao túmulo do duque D. Fernando: “Por trás desta talha que pertence à igreja do XVII/XVIII está a igreja gótica, que nada tem que ver com a exuberância e a festa do barroco.”
A talha, hoje muito suja, é um dos principais indicadores dessa exuberância, assim como os andores de prata que saíam à rua na procissão de Junho e que, por tradição, eram transportados pelos hortelãos da cidade – um representando o martírio do apóstolo evangelista, o outro o baptismo de Cristo no rio Jordão. “A talha precisa de limpeza e restauro, assim como outras peças e espaços do museu, mas para já o que vai avançar é a obra nas coberturas, nas casas de banho e na adaptação dos espaços a pessoas com mobilidade reduzida. Aqui fazemos tudo muito devagarinho, porque quase nunca há dinheiro. De vez em quando lá conseguimos ter mais uma peça restaurada por causa de uma exposição em Lisboa [foi assim com o andor de João Evangelista e o Museu Nacional de Arte Antiga] e outra num projecto com uma universidade ou com o mecenato da Fundação Millennium [azulejos na sala do capítulo ou a pintura Ecce Homo].”
O concurso para a empreitada, orçada em 750 mil euros, deverá ser lançado ainda este ano, assegura Fernando Romba, secretário executivo da Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal), entidade que reúne 13 autarquias e de que o Museu Regional de Beja depende desde 2015. “Não sabemos ainda quando estará em obra, mas a ideia é fazê-la faseada para que não tenha de fechar”, diz Romba, reconhecendo que o edifício precisa, em seguida, de intervenção noutras áreas. Francisco Paixão lista, assim, as prioridades: talha da igreja, azulejos do claustro, as três pinturas do século XVII atribuídas ao espanhol José de Ribera e a climatização das salas.
Até aqui, a Cimbal previa a passagem deste museu para a tutela da Câmara de Beja, mas, de acordo com um novo projecto de decreto-lei em que o Ministério da Cultura está a trabalhar, a transferência será para a Direcção Regional de Cultura do Alentejo.
As cartas de Mariana
A precisar de cuidados está também boa parte dos azulejos do claustro e da sala do capítulo, esta última com o tecto todo pintado (já restaurado) e já sem o trono onde se sentava a abadessa. “As paredes do convento são como um tratado de azulejaria. A partir delas pode-se contar a história do azulejo, começando no século XVI. Aqui no capítulo temos uma das maiores colecções parietais de azulejo hispano-árabe do país [Sevilha, início do século XVI]”, acrescenta Francisco Paixão junto ao portal gótico do tempo de D. João II que dá acesso à sala e antes mesmo de propor uma paragem na pequena galeria dos brasões, que ainda conserva uma parte do passadiço que ligava o Convento da Conceição ao paço de D. Beatriz e D. Fernando, também duques de Viseu.
“Os fundadores são muito importantes para explicar a raiz deste convento e a história da própria cidade, mas passam ao lado da memória popular, mas a Mariana Alcoforado não.”
Esta clarissa a quem é atribuída a autoria de pelo menos cinco cartas que o oficial de cavalaria por quem se apaixonou recebeu em 1668, publicadas pela primeira vez no arranque do ano seguinte pelo editor francês Claude Barbin com o título Lettres Portugaises Traduites en François (Cartas Portuguesas), continua a chamar muita gente a Beja, embora muitos duvidem de que foi ela quem as escreveu.
Francisco Paixão está entre os que acreditam que foi. “As coisas batem certo. Ela era uma mulher com leituras, que chega a ser escrivã do convento. Além disso, a biblioteca dos Alcoforados tinha livros em francês, a língua culta da época, e as cartas fazem uma descrição pormenorizada do dia-a-dia do convento, de como as coisas se passavam aqui dentro.”
A relação entre Mariana e Chamilly – a acreditar nas cartas dela, que do nobre francês não se conhece nenhuma – ter-se-á desenvolvido em 1666-67. É em 1667 que o conde, que viera combater no Exército português, regressa a casa, quando está já perto do fim a Guerra da Restauração (1640-1668), que durante quase 30 anos opôs as duas coroas ibéricas.
Chamilly, que viria a casar-se com uma rica herdeira, era amigo do irmão de Mariana e, segundo as cartas em que a freira reclama ao cavaleiro que a leve para França como prometera, a relação dos dois ter-se-á mesmo consumado, já que o cavaleiro conseguiu entrar no convento. “Amo-te mil vezes mais do que à própria vida e mil vezes mais do que imagino”, escreve-lhe a clarissa numa das cartas.
“As pessoas são sensíveis à história da Mariana, porque é a história de uma mulher que se deixa encantar pelo primeiro amor. Ela começa a escrever muito esperançada nas promessas que Chamilly lhe faz de a levar e acaba desiludida, profundamente triste. E essa tristeza comove”, defende o museólogo, que compreende o fascínio dos visitantes por este enredo. “As pessoas vêm por causa dela, mas depois vêem o resto do museu.” E o “resto” tem também um dos mais importantes núcleos visigóticos da Península Ibérica, instalado perto do castelo, na Igreja de Santo Amaro, antiga cooperativa agrícola e armazém de salga que é monumento nacional desde os anos 1930.
Com uma estrutura paleocristã (séculos VII), a igreja foi maioritariamente construída no final do século XV, começo do XVI, e guarda uma colecção de capitéis, fustes, colunas, frontões e pilastras decorados com motivos geométricos e outros associados às primeiras comunidades cristãs (serpentes, videiras, aves do paraíso). “Os visigodos são os romanos cristianizados”, simplifica Paixão, falando de um período que começa a desenhar-se nos séculos IV e V e que, na Península Ibérica, se prolonga até ao VIII, cedendo lugar à islamização.
Entre as peças deste acervo reunido na região de Beja e na cidade merecem destaque uma espada de ferro, com embutidos em ouro e âmbar que aludem a um apogeu da arte da ourivesaria, e uma lápide funerária com 1350 anos, hoje emprestada à exposição que o museu de Arte Antiga dedica ao retrato em Portugal — nela um homem chamado Calandronio pede o “eterno descanso” para a sua sobrinha Maura, “de olhos muito belos e formosa de feições”, que morreu quando “mal fizera 15 anos”.
“Só este núcleo justifica uma vinda a Beja”, garante Paixão. “Aqui podemos imaginar o padre a dar a missa de costas para os fiéis e escondido pelas cancelas [uma espécie de pequenos portões que separavam o altar da assembleia], podemos imaginar estas pilastras e estes capitéis cobertos de azuis e amarelos bizantinos. Mesmo mal iluminado, tudo isto devia brilhar.”
Notícia corrigida: As freiras que viviam no Convento da Conceição, em Beja, eram clarissas e não carmelitas.