O livreiro checo que só vende livros porque não sabe fazer mais nada
O telemóvel guarda-se antes de entrar na livraria Trezor, no Porto. Lukas Palan, o livreiro, tem pouca paciência para olhos vidrados num ecrã. Quer os clientes a conversar, com um livro na mão e uma cerveja na outra (ou um shot de vodka, caso tirem Dostoiévski da prateleira)
Ouvimos um conselho amigo e, a poucos passos da livraria Trezor, bloqueámos o telemóvel e escondemo-lo no bolso. Ele lá ficou, calado e sem luz, durante a conversa com o livreiro checo “sem paciência para os autómatos sem alma” que lhe entram porta adentro, os olhos vidrados num ecrã até voltarem a sair da mesma forma que entraram. Sem terem dito (ou lido) uma palavra.
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Ouvimos um conselho amigo e, a poucos passos da livraria Trezor, bloqueámos o telemóvel e escondemo-lo no bolso. Ele lá ficou, calado e sem luz, durante a conversa com o livreiro checo “sem paciência para os autómatos sem alma” que lhe entram porta adentro, os olhos vidrados num ecrã até voltarem a sair da mesma forma que entraram. Sem terem dito (ou lido) uma palavra.
Se pudesse, Lukas Palan “expulsava-os” mal tivessem passado pela primeira prateleira onde alguém escreveu toscamente “não-ficção”. Se pudesse, Lukas Palan provavelmente arrancar-lhes-ia o telemóvel da mão (não podendo, fica-se por não lhes oferecer uma cerveja). Não gosta do que estas pessoas da sua geração inadvertidamente lhe relembram. “Este é o tipo de mundo em que agora vivemos”, atira, como se encarnasse a personagem mais pessimista dos livros que o rodeiam.
O sinal a indicar que na Trezor se vendem livros (e álcool) aparece no chão — “é uma brincadeira, mas é para o chão que as pessoas mais olham, enquanto descem a rua” — e está escrito em inglês, como tudo o que habita naquele espaço no número 22 da Rua do Ferraz.
A livraria de Lukas contraria a tendência actual e abriu portas em Abril último, na baixa do Porto, muito próxima de outra com 20 anos de história, a do alfarrabista João Soares, que, no final de 2017, esteve para fechar (e desde aí ainda “sobrevive”, apesar de pagar uma renda dez vezes mais alta). Outras, cujas histórias partilhavam o Porto como cenário, não tiveram o mesmo final semi-feliz: a Leitura deixou a Rua de Ceuta a meses de completar 50 anos e o mesmo aconteceu à sexagenária Sousa & Almeida, depois de o prédio ser comprado pelo The Fladgate Partnership, empresa proprietária dos hotéis The Yeatman e Infante de Sagres, que abriu processos judiciais contra outra livraria, a Moreira da Costa, esta já centenária.
Nada disto passa ao lado de Palan e nada disto o “deixa muito chocado”. “Vi o mesmo passar-se em Praga. E fiquei mais assustado com o que vi em Lisboa do que com o que vejo no Porto.” Na cidade onde vive há quase dois anos, conhece os alfarrabistas — “adoro-os, gostava de ser o senhor velhinho, de óculos, só a fazer alguma coisa num caderninho” —, gosta da Flanêur, já frequentou as noites de poesia no Pinguim.
E, às vezes, sente-se “culpado” por lá estar. “Eu sei que estou a intrometer-me na tua cidade com uma livraria em inglês”, expõe, numa confissão/pedido de desculpa dirigida os vizinhos. “Eles viveram aqui a vida toda e agora, no rés-do-chão, há um tipo qualquer que nem fala português (estou a tentar, já percebo quase tudo) e à volta está tudo em obras”, diz, por cima do barulho constante das gruas e das gaivotas que serve de banda-sonora a uma dia na cidade. “Penso muitas vezes: o que é que eles acham sobre eu estar aqui?”.
Na República Checa, onde vivia antes de se mudar para o Porto (antes de conhecer uma mulher portuguesa), já vendia livros. Trabalhava na Neoluxor, uma empresa que tem sete livrarias espalhadas por Praga. Geria as encomendas da maior de todas, na praça central de Praga (Wenceslas Square). Chama-se, como num conto, The Palace of Books, e conta com mais de 60 mil títulos.
“Imagina que, no centro dos Aliados, tinhas uma FNAC de quatro andares cheios de livros.” E imagina que “80% dos livros que vendes são lixo”. “Apetecia-me gritar ‘Por favor, não compre isto’. Simplesmente saia, saia!”, ri-se.
Agora, só “vende os livros que quer vender”. “Não me envergonho de dizer ‘leva-o’.” Não tem as “raridades” que vê nas montras dos alfarrabistas, nem “a porcaria best-seller que as grandes empresas vendem”. Está entre os dois extremos e já leu praticamente tudo o que tem para oferecer.
Em 2017, Lukas diz ter lido cerca de 80 livros, quase 20 mil páginas. O favorito, no entanto, continua a ser o Trópico de Câncer, de Henri Miller. “É obsceno, pornográfico mesmo, mas as pessoas não se deviam deixar chocar”, aconselha, visivelmente entusiasmado. “A linguagem dele é espectacular. Tudo no livro é brilhante.”
Ao encher uma sala de páginas escritas em inglês, pensava que ia “oferecer algo diferente do que existe no mercado” da cidade e captar leitores portugueses, especialistas em literatura ou estudantes Erasmus. Acabou a vender maioritariamente para turistas que por acaso lá passam, na descida que liga a Cordoaria à Rua das Flores e à Ribeira. Não esperava que alguém de férias, com pouco espaço nas mochilas, a quisesse sobrecarregar com livros. “Podes comprar uma garrafa de vinho do Porto por três euros, porque é que comprarias um livro?”
Questionámos de volta: “Podias vender qualquer coisa, porquê abrir uma livraria, não é loucura?” A falta de romantismo da resposta que se segue desarma qualquer um. “Não, porque eu não sei fazer mais nada”, diz, simplesmente. “Não tenho mais nenhuma habilidade.”
E também não é um “estudioso, velho, inglês, rico, que anda por aí com milhares de euros” a escapar do bolso e a montar “prateleiras de madeira vintage, até ao tecto”. Com as “poupanças que tinha”, imaginou um espaço “hipster, low-cost e DIY” (do it yourself). Sentado no sofá, no centro da sala, de licor checo na mão, olha em volta, para as prateleiras e para outro espaço, mais pequeno, reservado para exposições: “Sim, é isso, parece honesto. Livros e álcool, simples”
Como “bónus” — e não como obrigação de sobrevivência — também vende algumas bebidas alcoólicas. Ficava “sempre stressado” nas livrarias, por vezes “mais silenciosas do que um mosteiro”. “A atmosfera e os livros são bons”, mas ao fim de cinco minutos "sentes-te muito estranho". Queria deixar as pessoas à vontade, mostrar que podiam tocar no que quisessem, folhear os livros, conversar, uns com os outros e com ele, rirem-se alto. “Então comecei a pensar — porque eu sou da República Checa e tu lá começas a beber no jardim-de-infância — no bar porque, geralmente, as pessoas sentem-se melhores quando têm algo na mão”. Há cerveja, café e um shot de vodka para quem tirar das prateleiras um autor russo.
Dica: se visitares a Trezor e o livreiro estiver de garrafa na mão, pode ser um bom momento para, com calma, pedir um desconto num clássico. “Economia não é o meu forte, não sou o homem de negócios que fica atrás da máquina registadora. Às vezes, fico bêbado aqui, pronto”, confessa, com um encolher os ombros.
Só “não digam que um livro é muito caro”. Lukas até pode “compreender”, mas não aceita. À mulher que lhe disse que o Homem Sem Qualidades, um romance inacabado do escritor austríaco Robert Musil, à venda por 20 euros, era muito caro, Lukas respondeu: “Estão aqui vinte anos da vida de uma pessoa. Tem mil páginas, por isso uma página da sabedoria dele custa-lhe 0,02 cêntimos.” O resto, já o diz só a nós: “O pior é que depois saem daqui e vão para as galerias, compram dois gins e gastam o mesmo, numa hora.” Dá um golo (no licor, não num gin). “Yeah, é muito relativo.”
Sabia que, se abrisse a Trezor, “ia lutar para sobreviver”. “Se fizesse dinheiro para comprar dois pastéis ia ser um bónus”, ironiza. Ainda no início do mês, a Trezor foi assaltada com Lukas e uma amiga lá dentro. Dois homens roubaram um total de mil euros, contabiliza. “Ninguém se magoou. Mas é algo que não te faz ir a correr aos Aliados comprar uma t-shirt "I love Porto", brinca.
Já de saída, apontámos para o cachecol do Arsenal, em cima do balcão. “Futebol?” “Futebol, livros e álcool. Em que ordem? Enquanto intelectual, sou obrigado a dizer livros, álcool e futebol.” Despedimo-nos com um “obrigada por ainda venderes livros”. “Ora essa”, despede-se ele de volta. “Agora vamos esperar que as pessoas desliguem a porcaria do Netflix e os comprem.”
Correcção: Musil escreveu o Homem Sem Qualidades ao longo de vinte anos e não de três, como antes se escreveu.