ONU diz que militares birmaneses devem ser julgados por genocídio dos rohingya
Grupo que investigou a situação no terreno para as Nações Unidas acusa o homem mais poderoso da Birmânia, o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Min Aung Hlaing, por crimes contra a humanidade, que devem ser presentes a um tribunal internacional.
As chefias militares da Birmânia são responsáveis pelas violações e execuções em massa da comunidade rohingya, que começaram há um ano, e devem responder num tribunal internacional, por crimes contra a humanidade e genocídio.
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As chefias militares da Birmânia são responsáveis pelas violações e execuções em massa da comunidade rohingya, que começaram há um ano, e devem responder num tribunal internacional, por crimes contra a humanidade e genocídio.
O parecer é de um grupo de investigadores das Nações Unidas que esta segunda-feira recomendou o julgamento do comandante e de cinco generais do Exército birmanês pela sua responsabilidade em conduzir um dos “mais graves crimes à luz da lei internacional” contra a minoria muçulmana. O relatório pede que a investigação seja encaminhada para o Tribunal Penal Internacional.
Para a missão criada por decisão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Março de 2017, o Governo civil, liderado por Aung San Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz em 1991, não teve grande margem para controlar a acção do exército. Mas, "através dos seus seus actos e omissões, as autoridades civis contribuíram para que fossem cometidos crimes atrozes".
O Governo civil "permitiu que o discurso de ódio prosperasse e não protegeu as minorias de crimes contra a humanidade e de guerra executados pelo exército nos estados de Rakhine, Kachin e Shan. Ao fazê-lo, Suu Kyi consentiu "crimes atrozes", lê-se no relatório citado pela Associated Press e Reuters. "Não usou sua posição como Chefe de Governo, nem sua autoridade moral, para conter ou impedir os eventos que se desdobram, ou buscar caminhos alternativos para cumprir a responsabilidade de proteger os civis”, afirma o documento.
A minoria mais perseguida do mundo
O painel de investigadores ouviu 875 vítimas e testemunhas e analisou documentos, vídeos, fotografias e imagens de satélite. Recolheu provas de violações em grupo, de violência armada – seja por via de armas de fogo, armas brancas (incluindo casos de decapitação), de destruição de aldeias inteiras, de tortura, de escravatura e de infanticídio, acusando o exército de ter recorrido a tácticas “consistentemente desproporcionais à dimensão das ameaças de segurança”, constituindo “sem qualquer dúvida, um dos crimes mais graves contra a lei internacional”.
Em Dezembro do último ano, por exemplo, as estimativas dos Médicos Sem Fronteiras davam conta da morte de pelo menos 6700 pessoas num só mês. Destas vítimas, pelo menos 730 eram crianças com menos de cinco anos que foram mortas a tiro, queimadas ou agredidas até à morte, detalhou a organização humanitária.
Para as Nações Unidas, o momento em que a intenção de genocídio ficou clara remonta a Agosto do último ano, quando as tropas do Governo da Birmânia lançaram uma operação de “limpeza étnica” numa suposta resposta aos ataques do Exército de Salvação de Arakan Rohingya (ARSA) contra 30 postos da polícia de Mianmar e uma base militar.
Em declarações aos jornalistas, os investigadores ressalvaram que, apesar de considerarem que o ataque do exército foi o motor da revolta que expôs os problemas étnicos de um país profundamente dividido, os conflitos já estavam em curso. “Não foi nesse dia em que tudo começou. Assinalámos este dia [do ataque do exército birmanês] porque foi o dia em que para nós se tornou evidente o que estava a acontecer. Mas grande parte do que aconteceu é apenas uma demonstração máxima de um conjunto de tensões e abusos que estavam a acontecer há muito tempo”, esclareceu Christopher Sidoti, membro da Missão Internacional e Independente no Mianmar.
Responsabilidade dos seis militares "é clara"
Para as Nações Unidas, a responsabilidade do comandante e dos cinco generais é evidente. Não obstante, a organização não exclui a existência de mais responsáveis pelos crimes, explicou uma dos membros da comissão de investigação Radhika Coomaraswamy. “Existe uma longa lista de pessoas que não nomeámos mas que podem ser também indiciadas para uma investigação mais profunda por parte da Justiça”, declarou aos jornalistas.
“No caso da Birmânia — como em quase todos os casos de genocídio — não há uma arma, não temos nenhuma cópia de uma ordem directa que diga ‘Começar genocídio amanhã, por favor’. Mas, de uma forma universal, os genocídios são levados a tribunal com base nas intenções apuradas. A intenção tem de ser inferida da natureza das circunstâncias nas quais acontecem. Neste caso, as duas coisas mais relevantes para nós são o contexto e a hierarquia que existe na Birmânia. Não há qualquer dúvida da nossa parte de que aquilo que aconteceu no Rakhine não aconteceu sem o conhecimento prévio dos líderes militares e sob o seu comando. E pela clareza desta hierarquia é que recomendamos a investigação e julgamento destes seis militares”, vincou Christopher Sidoti, membro australiano da missão de investigação das Nações Unidas.
“Não excluímos a presunção de inocência, não estamos a dizer que individualmente está provada a intenção de cada um, mas que, de uma forma geral, sob todas as circunstâncias, com base em todos os factos, eles devem ser investigados”, rematou.
Radhika Coomaraswamy apontou ainda a facilidade com que o discurso de ódio se propagou durante este período, até mesmo nas redes sociais como o Facebook, sem que o Governo nada fizesse. “Temos uma secção bastante longa em relação ao discurso de ódio”, sublinhou. “O Facebook é uma plataforma, e nós valorizamos a liberdade de expressão, mas devemos olhar com atenção para a facilidade com que se propaga o discurso de ódio, sendo que deve ser examinado por uma entidade privada”, acrescentou.
A situação na Birmânia já motivou a fuga de mais de 700 mil refugiados. Entre as vítimas estão milhares de crianças, que enfrentam desnutrição e estão expostas a doenças infecciosas.
No entanto, mesmo conseguindo escapar deste cenário na Birmânia, os refugiados que encontram refúgio noutros países não vêem os seus pesadelos terminar. No Bangladesh, por exemplo, continuam a enfrentar ameaças à integridade física, devido à falta de comida, água potável e cuidados de saúde. Em Outubro do ano passado, um relatório da UNICEF denunciava as condições nos campos de refugiado no Bangladesh como “um inferno na terra”.
Ao governo da Birmânia foi enviada uma cópia antecipada do relatório das Nações Unidas, mas o Executivo não comentou o documento. O relatório completo da investigação será divulgado a 8 de Setembro. Algumas partes estão já disponíveis online.