E se não tivéssemos só uma profissão ao longo da vida?
A forma de organizar a entrada e saída, e reentrada, no mercado de trabalho terá assim de ser fundamentalmente diferente.
A proposta do Governo para alterar a idade máxima em que se pode exercer atividade remunerada na função pública levantou grande discussão nas últimas semanas. De um lado, defendeu-se que exercer funções depois dos 70 anos (em condições para tal) será benéfico para o Estado e para os serviços públicos. De outro lado, argumenta-se pela necessidade de renovação das chefias nos serviços públicos. Os exemplos mais discutidos disseram respeito ao sector da saúde.
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A proposta do Governo para alterar a idade máxima em que se pode exercer atividade remunerada na função pública levantou grande discussão nas últimas semanas. De um lado, defendeu-se que exercer funções depois dos 70 anos (em condições para tal) será benéfico para o Estado e para os serviços públicos. De outro lado, argumenta-se pela necessidade de renovação das chefias nos serviços públicos. Os exemplos mais discutidos disseram respeito ao sector da saúde.
Apesar de tudo, a discussão não se esgota nestes dois argumentos, que são sobretudo da espuma da reação imediata. Se o problema é a renovação das chefias no setor público, há certamente forma de permitir que as pessoas mantenham a sua atividade, sem impedir uma renovação das chefias (e.g. o chefe de serviço voltaria a ser um médico do serviço, nomeando-se um novo chefe de serviço). Por outro lado, a forma de melhor aproveitar o conhecimento e experiência de quem atingiu os 70 anos pode não ser exercer exatamente as mesmas funções de antes.
Este debate tem evitado a questão de fundo: é possível e desejável, de uma forma generalizada, trabalhar além dos 70 anos? Trata-se, antes de mais, de se responder com base em informação sistemática e abrangente, e não olhando apenas para alguns exemplos pontuais, que podem ser excecionais. E, caso a resposta seja positiva, coloca-se uma segunda questão: qual será, para o conjunto da sociedade, a melhor forma de organizar esse trabalho.
Sobre a primeira questão, surgem esforços para calcular em que medida o aumento da longevidade da população, com melhor saúde, também se reflete em maior capacidade de trabalhar em idades mais avançadas. É possível tentar avaliar, por exemplo, se a saúde das pessoas de entre 70 e 75 anos hoje é, em média, similar à saúde das pessoas que, há 40 anos, tinham entre 55 e 60 (e trabalhavam). Procura-se assim perceber se uma maior capacidade de trabalhar (no que diz respeito ao estado de saúde) está presente na população em geral, em vez de recorrer apenas a exemplos individuais ou setoriais.
Este tipo de informação é uma pré-condição para se discutir princípios e regras gerais. Caricaturando o que está em discussão em Portugal, uma eventual alteração legislativa deve ser ponderada tendo em conta os seus efeitos globais, e não unicamente para beneficiar um pequeno grupo de pessoas que (eventualmente) gostariam de continuar a trabalhar nas suas posições de chefia na função pública.
Há várias formas de fazer essa comparação. Usando essencialmente o mesmo procedimento, temos hoje disponíveis estimativas para cinco países (Itália, Estados Unidos, Reino Unido, Espanha e Holanda): com referência ao ano de 2010, os trabalhadores que então tinham idades entre aos 44 e os 69 anos teriam capacidade (em termos de saúde) para trabalhar pelo menos mais 5 anos do que os trabalhadores com a mesma saúde 34 anos antes (em 1976). Ou seja, a saúde dos trabalhadores hoje à idade de se reformarem é bastante melhor, em geral, do que era há pouco mais de três décadas.
Assim, se refletir os índices de saúde (em média) da população, o número médio de anos de participação no mercado de trabalho tenderá a subir. A existência de capacidade para trabalhar mais tempo (devido a índices de saúde mais elevados) não implica, por si só, que a idade de reforma deva ser aumentada (no que é uma decisão política da sociedade). Mas implica, por certo, que se pode esperar maior vontade de trabalhar voluntariamente, eventualmente em regimes menos intensivos, numa parte maior da população próxima da atual idade legal de reforma. É esta dinâmica mais global que deverá motivar uma reflexão sobre o funcionamento do mercado de trabalho e sobre a participação neste da população de idade mais avançada.
O que nos leva à segunda questão: é importante mudar a nossa visão se como se processa o trabalho em idades mais avançadas. Nesta linha, não há muitas reflexões ou propostas que sejam feitas. Todo o pensamento parece encaixado unicamente na formatação linear do ciclo de vida: estudo – estudo avançado – vida profissional ligada ao estudo – reforma e pensão. Mais interessante é pensar que ao longo do ciclo de vida podem ocorrer diversas profissões, numa linha de considerações que identifico com propostas de Maria João Valente Rosa. Na minha interpretação dessas propostas, deveríamos pensar num mercado de trabalho em que uma pessoa com uma carreira laboral ativa de, digamos, 50 anos pudesse ter mais do que uma profissão. Profissão, aqui, entenda-se como atividade diferente – durante 30 anos ser técnico da função pública na área da justiça, por exemplo, parar para estudar de novo, e retomar mais 15 ou 20 anos como economista ou pintor. A forma de organizar a entrada e saída, e reentrada, no mercado de trabalho terá assim de ser fundamentalmente diferente.
Também o sistema de pensões terá de ser repensado se, por exemplo, permitir ao fim de 30 anos de vida ativa usar parte do direito acumulado a uma pensão para financiar um período de estudo (para mudar de trajeto profissional). O desafio será encontrar as regras que, em simultâneo, ajudem os cidadãos a usufruir de estratégias alternativas de inserção no mercado de trabalho, possibilitem a manutenção do equilíbrio financeiro do sistema de pensões e não sejam permeáveis a eventuais abusos.
Repensar a organização da nossa sociedade para acomodar trajetos de vida mais heterogéneos, face ao aumento da longevidade (em boas condições de saúde), vai muito além de simplesmente dizer que como no setor privado já se pode trabalhar, voluntariamente, com mais de 70 anos, então no setor público tal deveria ser também permitido. É fundamental alargar a visão. Construir um sistema diferente, para condições demográficas diferentes, em lugar de ir fazendo remendos, por bem-intencionados que sejam, ou motivados por casos. Construir esta visão requer um debate em termos muito mais desafiantes e profundos do que falar meramente em regras de aposentação e outros parâmetros do sistema de pensões.
Leituras sugeridas: Maria João Valente Rosa, O envelhecimento da Sociedade Portuguesa, 2012. Fundação Francisco Manuel dos Santos; Francesco Gianola, Fit but idle or frail but active? Estimating latent health-related work capacity among elderly italians, 2018, Nova School of Business and Economics.