Os (novos) piratas das Caraíbas
A crise política e económica está a espalhar-se da Venezuela para a Nicarágua, gerando anarquia e criminalidade. À medida que o Estado de Direito entra em colapso, alguns locais nas Caraíbas tornam-se mais perigosos do que foram noutros tempos.
Com os raios de sol reflectidos no azul-cobalto do Mar das Caraíbas, o navio apareceu como um corte no horizonte. Aproximava-se, mas a tripulação do Asheena não lhe prestou atenção.
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Com os raios de sol reflectidos no azul-cobalto do Mar das Caraíbas, o navio apareceu como um corte no horizonte. Aproximava-se, mas a tripulação do Asheena não lhe prestou atenção.
“Andávamos à pesca e pensámos que andavam à pesca também,” disse Jimmy Lalla, de 36 anos, elemento da tripulação que lançara as redes nas águas de Trindade em Abril passado, a algumas milhas da costa sem lei venezuelana.
O outro navio aproximava-se. “Será que precisam de ajuda?”, lembra-se de pensar Lalla à medida que a embarcação se encostava à piroga de oito metros e meio. Um homem baixo e vigoroso saltou para bordo, gritando em espanhol e empunhando uma arma.
“Percebemos logo”, disse Lalla. “Eram piratas.”
Séculos depois de se terem silenciado os canhões de Barba Negra e de a bandeira pirata Jolly Roger ter desaparecido dos portos de rum espalhados pelas Caraíbas, a região enfrenta uma nova e menos romântica era dos piratas.
A crise política e económica está a espalhar-se da Venezuela para a Nicarágua, gerando anarquia e criminalidade. À medida que o Estado de Direito entra em colapso, alguns locais nas Caraíbas tornam-se mais perigosos do que foram noutros tempos, segundo os especialistas.
Muitas vezes, dizem testemunhas, os actos de violência parecem acontecer com a cumplicidade ou envolvimento directo de funcionários corruptos – particularmente nas águas junto à destruída Venezuela.
“É o caos delinquente, um vale tudo, junto à costa da Venezuela”, disse Jeremy McDermott, co-director da Insight Crime, uma organização sem fins lucrativos que estuda o crime organizado na América Latina e nas Caraíbas.
Existe pouca informação detalhada sobre a pirataria na América Latina e nas Caraíbas, mas um estudo feito ao longo de dois anos pela organização sem fins lucrativos Oceans Beyond Piracy registou 71 casos graves na região em 2017 – incluindo roubos de navios mercantes e ataques a iates –, numa taxa de incidência 163% mais alta que no ano anterior. A grande maioria ocorreu nas águas das Caraíbas.
As ocorrências vão desde roubos em alto mar a ataques bárbaros, dignos de piratas do século XVII.
Em Abril, por exemplo, homens mascarados entraram a bordo de quatro barcos de pesca da Guiana, a 30 milhas da sua costa. As tripulações, de acordo com os relatos de sobreviventes, foram regadas com óleo quente, atingidas com catanas e atiradas borda fora. Os barcos foram roubados. Das 20 vítimas, cinco sobreviveram. As restantes morreram ou foram dadas como desaparecidas.
David Granger, Presidente da Guiana, declarou que o ataque foi um “massacre”. As autoridades guianesas acreditam que o ataque possa estar relacionado com a violência entre gangues no vizinho Suriname.
“Disseram que iam levar o barco e que todos deviam saltar borda fora”, relatou o sobrevivente Deonarine Goberdhan, de 47 anos, à Reuters. Foi agredido e atirado ao mar. “Tentei manter a cabeça à tona para poder respirar. Bebi muita água do mar. Olhei para as estrelas e para a lua. Tive esperança e rezei.”
Ao longo dos últimos 18 meses, têm surgido testemunhos de pirataria perto das Honduras, Nicarágua, Haiti e Santa Lúcia, mas o verdadeiro aumento da pirataria, segundo os especialistas, tem acontecido junto à costa da Venezuela.
A crise económica no país da América do Sul fez com que a inflação subisse até ao milhão por cento, tornando a comida e os medicamentos difíceis de obter. A má nutrição tem-se espalhado, as doenças também, os serviços de água e electricidade falham por falta de pessoal especializado. A polícia e os militares abandonam os seus postos uma vez que os seus salários são quase inúteis. Sob o Governo socialista bolivariano do Presidente Nicolás Maduro, a opressão e a corrupção aumentam.
As condições forçam alguns venezuelanos a tomar medidas drásticas.
Um funcionário de um porto venezuelano, que falou sob anonimato sobre a corrupção, disse que guardas costeiros venezuelanos têm entrado a bordo de barcos atracados e exigido dinheiro e alimentos. Acrescentou que os navios comerciais, como resposta, têm atracado cada vez mais longe da costa e desligado os motores e as luzes para evitarem serem vistos à noite.
Nem sempre resulta.
Em Julho, um dos barcos da empresa local Conferry, que transporta cargas para as ilhas venezuelanas mais próximas, foi atacado por três homens que empunhavam facas e pistolas, perto do porto de Guanta. Quatro membros da tripulação ficaram amarrados durante horas enquanto roubavam comida e material electrónico.
Em Janeiro, em Puerto La Cruz, também na costa nordeste, sete assaltantes armados entraram a bordo de um navio-tanque atracado. Amarraram o guarda de serviço e roubaram o armazenamento. Incidentes semelhantes foram relatados ao longo dos meses seguintes, de acordo com a Commercial Crime Services, da Câmara de Comércio Internacional, sediada em Londres.
Trindade e Tobago, país constituído por duas ilhas com 1,4 milhões de habitantes, visível da costa da Venezuela, há muito que se preocupa com a influência criminosa do país vizinho. Desde os anos 1990 que traficantes de droga levam marijuana e cocaína colombiana dos portos venezuelanos para Trindade, e daí para outros países das Caraíbas e do mundo.
Segundo os habitantes locais, o contrabando e a pirataria cresceram recentemente e tornaram-se mais violentos. Cinco pescadores no porto mais a sul de Cedros, que falaram sob anonimato por receio pela sua segurança, disseram nas suas entrevistas que têm testemunhado um aumento do número de barcos venezuelanos nos últimos meses que traficam armas militares, drogas, mulheres e animais exóticos.
“Por vezes, esses venezuelanos estão dispostos a trocar armas e animais por comida”, disse um pescador de 41 anos.
Uma embarcação da guarda costeira de Trindade foi destacada este ano para patrulhar as águas, depois de vários incidentes relevantes de roubo e pirataria. Mas os habitantes dizem que os criminosos simplesmente esperam que a patrulha passe e depois agem.
As autoridades de Trindade não responderam aos vários pedidos para comentários.
Políticos da oposição, porém, denunciam um aumento da pirataria. Dizem também que o fluxo de armas automáticas oriundo da Venezuela – algumas parecem vir de lojas de material militar – contribui para o aumento da taxa de homicídios em Trindade.
“Isto lembra-me de como os problemas começaram na costa oriental de África”, disse Roodal Moonilal, um deputado do partido da oposição Congresso de Unidade Nacional, referindo-se ao aumento repentino de sequestros de navios na costa sem lei da Somália, há alguns anos. “O que estamos a ver – a pirataria, o tráfico – é o resultado do colapso político e económico na Venezuela.”
Para aqueles que ganham a vida nas águas quentes das Caraíbas, a pirataria é um novo motivo para ter medo. Actualmente, os habitantes pescam mais junto à costa e por vezes à noite para evitar o risco de ataques.
Na tarde de Abril em que o Asheena foi assaltado, Lalla estava aterrorizado.
“O homem falava espanhol, apontava a arma para mim, depois para a água. Eu soube. Queria que saltasse”, disse.
Então saltou borda fora. O imediato – Narendra Sankar, de 22 anos – saltou momentos depois. Os homens nadavam em direcção a uma plataforma petrolífera ao largo da costa quando Sankar teve uma cãibra.
“Eu já tinha chegado à plataforma e por isso tive de saltar novamente, para o ajudar”, contou Lalla. “Ele ia afogar-se.”
Ficaram a ver enquanto os piratas roubavam o barco, com a ajuda de dois motores de fora de borda caros. O capitão do Asheena?, Andell Plummer, ainda estava a bordo. Os dois homens foram salvos por um barco de pesca que por ali passava. Segundo Lalla, quando denunciaram o caso às autoridades, responderam-lhes: “Não temos um barco para ir atrás deles, não podemos fazer nada.”
Não há sinais de Plummer desde esse dia, dizem os homens. O Ministério da Segurança Nacional não respondeu ao pedido de comentário sobre este caso.
“O meu filho, levaram-no!” disse o pai do capitão, Deoraj Balsingh, de 58 anos, numa doca lamacenta rodeada de barcos, em Trindade.
“Não sabemos – disse Balsingh –, não sabemos se está morto ou vivo.”
Com Rachelle Krygier, em Caracas
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
Tradução de Ana Silva