Incêndio do Chiado foi há 30 anos. Da catástrofe à redenção inesperada

Há 30 anos ardeu aquele que era o "coração de Lisboa" desde o século XIX. Um dia pavoroso que abriu um debate sobre património urbano.

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Fotos de Alfredo Cunha, José Carlos Pratas e Rui Ochôa integram o livro "O Grande Incêndio do Chiado", editado em 2013 pela Tinta da China

Mário Soares, Presidente da República, preparava-se para ir para o Algarve – de férias mas com uma reunião com o então secretário-geral da ONU, Pérez de Cuellar, na agenda. Cavaco Silva, o primeiro-ministro, já estava de férias no Sul. Soares já não partiu, Cavaco Silva regressou a Lisboa mal soube da notícia.

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Mário Soares, Presidente da República, preparava-se para ir para o Algarve – de férias mas com uma reunião com o então secretário-geral da ONU, Pérez de Cuellar, na agenda. Cavaco Silva, o primeiro-ministro, já estava de férias no Sul. Soares já não partiu, Cavaco Silva regressou a Lisboa mal soube da notícia.

Mário Soares chegou ao Chiado antes das nove da manhã, quando o terror de que as chamas alastrassem ao elevador de Santa Justa ou às ruínas do Carmo ainda era iminente. Quando, pouco depois, o primeiro-ministro em exercício apareceu, o Diário de Lisboa conta que Soares exclamou para Eurico de Melo: “Onde está a Força Aérea, senhor ministro?”. Não se ouviu a resposta do ministro da Administração Interna e vice-primeiro-ministro que, por causa das férias de Cavaco Silva, estava aos comandos do governo.

Depois, o Presidente da República falou aos jornalistas: "É uma das maiores catástrofes que assolaram este país. Vamos imediatamente tomar todas as medidas para realojar os cidadãos que perderam os seus haveres e providenciarmos no sentido de reconstruir todos os edifícios que forem possíveis de reerguer."

Para todos os críticos da comparência de Marcelo nos fogos, recorde-se o que a 25 de Agosto de 1988 disse o Presidente Soares. Embora admitisse que na altura a situação podia considerar-se “mais calma”, verbalizou o risco de o fogo alastrar para o Tribunal da Boa-Hora. “Creio que a situação pode considerar-se mais calma. Resta a dúvida de Santa Justa e da Rua Nova do Almada. Se o fogo alastrasse era um cataclismo, até poderia destruir as Finanças e o Tribunal da Boa-Hora”. Depois faz uma homenagem aos bombeiros e “ao coração dos portugueses”: “Quero, desde já, felicitar a acção dos bombeiros e também agradecer à população civil que os veio ajudar. O coração dos portugueses está aqui bem patente”.

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Há 32 anos ardeu aquele que era o "coração de Lisboa". Alfredo Cunha, José Carlos Pratas e Rui Ochôa documentaram a tragédia em fotografias, publicadas no livro O Grande Incêndio do Chiado (Tinta da China, 2013). Fazemos agora o contraste de um bairro em chamas com a zona que entretanto voltou atrair lisboetas e os visitantes da capital. [Fotogaleria actualizada a 25 de Agosto de 2020]

Em 1988, o Chiado era uma zona praticamente sem habitantes – o que explica que só tenham morrido duas pessoas na tragédia, uma delas um bombeiro. Os Armazéns do Chiado e os Armazéns Grandella, contíguos, eram uma montra de decadência que o visionário Francisco de Almeida Grandella seria incapaz de prever. O proprietário da altura tinha saído da prisão na véspera e foi transformado no suspeito óbvio de fogo posto – o que a polícia nunca comprovou.

O risco de “novos Pombais”

Desapareceu a Perfumaria da Moda – um dos cenários do célebre filme “O Pai Tirano” – e a Pastelaria Ferrari, um mimo da Lisboa novecentista que mantinha intacta a traça original. “Os prejuízos e as perdas para o património de Lisboa são apenas semelhantes às provocadas pelo terramoto de 1755”, escrevia a olisipógrafa Marina Tavares Dias no Diário de Lisboa que no mesmo texto avisava: “Será bom que não apareçam pequenos ‘Pombais’, sem talento e sem política, a tentar descaracterizar um dos bairros mais importantes de Lisboa”.

Quem viveu esse tempo sabe que Marina Tavares Dias temia o mesmo que muitos cidadãos de Lisboa: que o presidente da Câmara Nuno Kruz Abecasis entregasse a reconstrução do Chiado ao arquitecto que, com a construção das Amoreiras e outros edifícios, andava a mudar a face de Lisboa: Tomás Taveira, vivo mas hoje desaparecido da vida pública.

Nuno Abecasis, polémico autarca e histórico militante do CDS, não só era atacado pelas suas opções urbanísticas como tinha sido acusado na praça pública de ter prejudicado o combate ao incêndio (o que não se confirmou) por ter instalado algum tempo antes uns canteiros e uns bancos na rua do Carmo.

Siza, o anti-Taveira

No dia 8 de Setembro de 1988, duas semanas depois do incêndio, Abecasis convoca uma conferência de imprensa e surpreende o país: anuncia a intenção de convidar Siza Vieira para fazer a reconstrução do Chiado. Siza era já há 30 anos um dos mais importantes arquitectos portugueses – nesse ano de 1988 tinha recebido a medalha de ouro da Fundação Alvar Aalto. A decisão – que Nuno Abecasis frisa ter sido da sua inteira responsabilidade – funcionava como facto redentor. Mas Krus Abecasis, que tinha marcado a Lisboa dos anos 80 (tomou posse em janeiro de 1980), já não voltará a ser candidato nas eleições de 1989. PS e PCP unidos apresentam Jorge Sampaio. A direita junta-se à volta de um enfant terrible chamado Marcelo Rebelo de Sousa. Abecasis morre aos 69 anos, em 1999.