A virgem do IC1
Quase 20 anos depois, dezenas de pessoas continuam a rumar a São Marcos da Serra à procura dos sinais da Mãe da Bondade, a Nossa Senhora que terá aparecido em Fevereiro de 1999 numa cova com vista para a Nacional 1. Último episódio da Volta ao Algarve de autocaravana.
Para o chef Duarte Vieira, que aparece de farda preta atrás do balcão d’Os Duartes, a história do “sobreiro cheiroso, como lhe chamam”, não deixa de ser estranha. “É um sobreiro que cheira a rosas e vão – ou pelo menos antes iam – lá montes de pessoas, para ver se é verdade.” Duarte nunca foi verificar, não teve curiosidade. Também regressou há pouco tempo a São Marcos, depois de “sete anos na tropa”, os últimos dos quais na Escola do Serviço de Saúde Militar, em Lisboa, onde aprendeu a cozinhar “a ver os outros”. Contra a tendência dominante na escola, tornou-se vegan; contra a tendência dominante na terra, o que gosta “mesmo de fazer é comida asiática”.
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Para o chef Duarte Vieira, que aparece de farda preta atrás do balcão d’Os Duartes, a história do “sobreiro cheiroso, como lhe chamam”, não deixa de ser estranha. “É um sobreiro que cheira a rosas e vão – ou pelo menos antes iam – lá montes de pessoas, para ver se é verdade.” Duarte nunca foi verificar, não teve curiosidade. Também regressou há pouco tempo a São Marcos, depois de “sete anos na tropa”, os últimos dos quais na Escola do Serviço de Saúde Militar, em Lisboa, onde aprendeu a cozinhar “a ver os outros”. Contra a tendência dominante na escola, tornou-se vegan; contra a tendência dominante na terra, o que gosta “mesmo de fazer é comida asiática”.
São Marcos da Serra chegou a “ter muita actividade”, como uma fábrica de cortiça, moagem de cereais e lagares de azeite. Em 1889, o comboio chegou à localidade em apoteose. Era o começo de uma nova vida em crescendo, que a partir dos anos de 1960 voltou a esmorecer com o êxodo rural. No final de 2011, a estação de São Marcos deixou de ver chegar e partir passageiros, sendo hoje o regresso do comboio uma das grandes batalhas da população.
Luís Cabrita, o presidente da Junta de Freguesia, confirma a recessão com outros dados: “Segundo os últimos censos, a freguesia tem perto de 1300 habitantes. Já teve 4000.” O Palácio do Trigo, com moagem e padaria, foi o último grande empregador privado da aldeia. “Dava trabalho a 15 pessoas, fechou há quatro anos.” Perante a história replicada e conhecida pelo interior algarvio, em último recurso, Luís Cabrita já só vê uma solução: o turismo. Quer investir em rotas pedestres, aproveitando as paisagens bucólicas da ribeira de Odelouca; atrair mais gente à Feira do Folar, na altura da Páscoa; construir um espelho de água e um parque para autocaravanas, para “dinamizar a freguesia”. Mas ninguém vem viver para São Marcos por causa disso. A freguesia encolheu até ser um ponto de passagem, como no diário de uma viagem de autocaravana ou na romaria do primeiro domingo do mês, aquela de que falava Duarte, mas à qual poucos parecem prestar atenção nas imediações serranas.
Para os de fora
A aldeia de São Marcos fica a pouco mais de um quilómetro do Corgo da Igreja, o nome com que baptizaram o pequeno santuário de Maria da Bondade, mas entre os moradores do casario branco muitos crêem que a romaria dominical já se terá extinguido. No próximo 16 de Fevereiro, passarão 20 anos sobre a aparição e os loucos meses seguintes em que centenas de pessoas viajavam de todo o país para ouvir o que teria a virgem a dizer sobre “o fim dos tempos” pela boca do vidente Fernando Pires, o mensageiro.
“Já nem sei se ainda há lá missa…” “No início ia muita gente. Eram carros e carros na berma da estrada. Mas deixaram de ir…” “Ah! Isso só se for para pessoas de fora, porque em São Marcos ninguém acredita! Nem o padre que era daqui, e que já morreu, quis celebrar a missa nesse sítio. Achava que era tudo uma ‘charlatice’, como em Fátima, está a ver?”
No entanto, neste domingo de calor infernal, pouco depois das onze, começam a chegar carros do Norte, um autocarro de Lisboa e uma ou outra pessoa a pé, aparecidas do nada, talvez dos poucos moradores da serra crentes no fenómeno. Em poucos minutos, as cadeiras de plástico azul do Corgo da Igreja, a tal cova entre sobreiros numa das margens do IC1, transformam-se numa plateia cheia. Figuras de chapéu, calça branca, saia preta, óculos de sol, o melhor fato e o melhor vestido dominical, roupa de campo, de trabalho, de cidade, os sapatos clássicos, os chinelos frescos. O irmão-vidente ajoelha-se, de calções, junto a Maria da Bondade. E os sacerdotes ocupam os seus lugares: o negro vestido de branco e o branco vestido de negro, de costas para o público, de frente para a virgem. Também eles vieram de fora. “Vêm sempre, de Lisboa ou do Norte.”
Adelina (nome fictício) trouxe um saco com panos e outros objectos, para dar um jeito ao altar antes da cerimónia, sob o som ofegante de carros à procura do mar. Perdeu o marido há dois anos e meio, quando “uma comadre de Albufeira” lhe falou dos mistérios da Mãe da Bondade. Disse: “A Nossa Senhora aparece no sobreiro e o sobreiro cheira a rosas. Se precisas de um milagre, vai lá.” Estava muito calor, mas Adelina foi na mesma. “Nunca mais deixei de vir e já tive uma graça enorme...” A perna “martirizada” que lhe dava “noites horríveis” deixou de doer desde o dia 16 de Fevereiro de 2017, no 19.º aniversário da aparição da Mãe da Bondade. Mas onde está o sobreiro milagroso? Adelina aponta para o chão. “Incendiaram-no.” Ou Maria da Bondade tem inimigos ou é o grupo à sua volta.
Estar à chuva, olhar o sol
Em dia de aniversário, “chegam a estar 800 pessoas” no sobral do IC1, até porque o relato de milagres – ou mistérios – vai-se adensando de ano para ano. Dois registos recentes: “O milagre de o vidente Fernando Pires estar mais de 30 minutos à chuva e não se molhar”; e o de um grupo de pessoas ter estado “vários minutos a olhar directamente e fixamente para o sol, como quem olha para a lua cheia e brilhante”.
A Associação de Nossa Senhora Mãe da Bondade, com sede em Portimão e presidida por António Santos, já comprou os terrenos da aparição, bem como uma terra adjacente ao sobral, que serve de parque de estacionamento para os peregrinos. O próximo passo será “a construção da capela pedida pela Nossa Senhora” com o dinheiro dos donativos, segundo indica uma das três páginas de internet da associação.
“Quem quiser vir de Lisboa, é só falar com a Helena. É ela que trata das viagens de autocarro. E quanto mais depressa reservarem, melhor”, avisa a vizinha da cadeira do lado. António Santos, que assiste a tudo da fila da frente e de vez em quando intervém com a ajuda de um microfone, não confia em jornalistas, porque são, normalmente, “pessoas que não sabem interpretar as coisas do espírito”. Nesse contexto, a conversa fica por aqui.
Mas fica provado que o sobreiro que cheirava a rosas, mesmo queimado, continua a juntar à sua volta peregrinos de diferentes pontos do país, na freguesia de São Marcos da Serra. Só que na aldeia há quem esteja no Café Central, tenha ido aos figos ou às águas de Odelouca. E de nenhum destes sítios se ouvem os altifalantes do Corgo da Igreja.
Nota: a reportagem foi realizada antes dos fogos que atingiram os concelhos de Silves e Monchique.