Luís Amaro (1923-2018): um homem que era a memória viva da literatura portuguesa contemporânea
O poeta de Diário Íntimo foi um conhecedor incomparável da criação literária do Portugal do século XX e não têm conta as edições que beneficiaram do seu saber, dos seus arquivos e do seu escrupuloso rigor.
Morreu esta sexta-feira em Lisboa, aos 95 anos, o poeta, bibliófilo e investigador Luís Amaro, que foi durante décadas uma espécie de discreta e generosa memória viva da literatura portuguesa, a quem editores, revisores e académicos recorriam para confirmar bibliografias, resolver problemas de fixação de texto ou, simplesmente, para apurar em que ano saíra algum livro impresso sem data. Luís Amaro estava internado no hospital Egas Moniz e a sua morte ficou a dever-se a complicações decorrentes de uma pneumonia.
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Morreu esta sexta-feira em Lisboa, aos 95 anos, o poeta, bibliófilo e investigador Luís Amaro, que foi durante décadas uma espécie de discreta e generosa memória viva da literatura portuguesa, a quem editores, revisores e académicos recorriam para confirmar bibliografias, resolver problemas de fixação de texto ou, simplesmente, para apurar em que ano saíra algum livro impresso sem data. Luís Amaro estava internado no hospital Egas Moniz e a sua morte ficou a dever-se a complicações decorrentes de uma pneumonia.
Poeta de uma discreta sensibilidade e de um afinado sentido musical, cuja qualidade não passou despercebida a críticos tão exigentes como António Ramos Rosa ou Jorge de Sena, que o incluiu na melhor antologia do período, a terceira série das Líricas Portuguesas, Luís Amaro estreou-se em 1949 com o volume Dádiva, cujos poemas só reeditaria, acrescentados de umas poucas dezenas de inéditos, já depois do 25 de Abril, em 1975, no livro Diário Íntimo, que integrou a prestigiada colecção de poesia das Iniciativas Editoriais.
Com a reedição de Diário Íntimo em 2006, na &etc, acrescida de alguns inéditos e dispersos, temos completa uma bibliografia cuja brevidade se explicará em boa medida pela falta de tempo (e de ego) de um homem que dedicou a sua vida aos livros dos outros, assegurando que eram publicados com o esmero e o rigor que punha em tudo o que fazia. Alexandre O’Neill fez-lhe justiça numa bela dedicatória que Luis Manuel Gaspar – possivelmente o mais óbvio herdeiro e discípulo de Amaro (e autor do retrato que ilustra esta página) – cita de cor: “Para Luís Amaro, prezado confrade que, misteriosamente, teima em ser editado pelos prelos do silêncio”.
Foi precisamente Gaspar quem intermediou a reedição de Diário Íntimo na &etc, uma editora para a qual foi sempre ponto de honra não publicar reedições. “Mas o Vitor Silva Tavares disse logo que abria uma excepção, que era a sua ‘dádiva’ para retribuir tudo o que o Luís Amaro dera à poesia portuguesa”, conta Luis Manuel Gaspar.
E o que Luís Amaro efectivamente lhe deu é afiançado pelos testemunhos mais exigentes, como o de Vasco Graça Moura, que o considerou “a pessoa que mais sabe em Portugal sobre livros e escritores”. O juízo é recordado num belo texto que Fernando Venâncio escreveu para o volume de homenagem a Luís Amaro que a Caixotim publicou em 2005 com o título Para Lá da Névoa. “Este homem, que discretamente completou 80 anos, fez tanto pela literatura portuguesa como departamentos de universidade inteiros”, escreve Venâncio. “É que os seus estímulos, informações, correcções e sugestões são feitos, sempre, à exacta medida de quantos deles vão beneficiar”, argumenta.
Alentejano de Aljustrel, Luís Amaro foi um autodidacta, tendo começado a trabalhar aos 12 anos no cartório de um notário que era também poeta, o luso-goês Adeodato Barreto, onde aprendeu sozinho a escrever à máquina. Ele próprio o conta numa resumida cronologia que foi persuadido a redigir pelos seus colegas da revista Colóquio Letras, onde entrou em 1971, primeiro como secretário da redacção, por indicação de Hernâni Cidade e Jacinto do Prado Coelho, e depois como director-adjunto, na segunda metade dos anos 80, e como consultor editorial, até 1996. A Colóquio presta-lhe homenagem em 1989, dedicando-lhe o n.º 108 da revista.
Tem ainda 12 anos quando vê publicado o seu primeiro artigo no semanário Ala Esquerda, de Beja, e durante o final dos anos 30 colabora em diversos jornais alentejanos com poemas próprios e textos sobre vários escritores. Através de Agostinho da Silva consegue arranjar em emprego em Lisboa, na Livraria Portugália, e é aqui que conhece muitos escritores que se tornariam seus amigos, como Sebastião da Gama, Vergílio Ferreira ou David Mourão-Ferreira. É também com a chancela da Portugália que sai o seu livro de estreia, Dádiva, numa tiragem de 200 exemplares, com uma belíssima capa de Manuel Ribeiro de Pavia.
Em 1951 lança, com António Luís Moita, António Ramos Rosa, José Terra e Raul de Carvalho a revista de poesia Árvore. Em 1954, conhece José Régio, e é por sua iniciativa que o poeta de Vila do Conde começa a publicar na Portugália, onde Amaro se envolve também na edição e revisão de autores como Manuel Teixeira-Gomes, Mário Beirão ou Adolfo Casais Monteiro.
Mas seria impossível inventariar aqui as revisões textuais que se lhe ficarão a dever, em muitos casos de obras cruciais da literatura portuguesa contemporânea, ao longo das décadas seguintes, quer na Portugália, quer durante os anos que esteve na Gulbenkian, onde entra como empregado eventual em 1970. E foi ainda ele que reviu, por exemplo, as obras completas de José Régio editadas pela Imprensa Nacional no início dos anos 2000.
O imenso espólio de Luís Amaro foi quase integralmente doado, ainda em vida do autor, à Biblioteca Nacional, que lhe dedicou uma exposição documental por ocasião do seu 90.º aniversário.