Um dramalhão cheio de humanidade
No novo disco Be the Cowboy, a análise existencialista de Mitski mostra-se ainda mais lúcida, mordaz e demolidora, em canções triunfantemente pop.
Há um misto de alívio e horror quando reconhecemos um pedaço da nossa adolescência numa canção. Muito boa gente passou por isso quando viu Mitski no vídeo de Your Best American Girl a dar linguados à própria mão e a lamber ardentemente os próprios dedos depois de ter sido rejeitada por um cute white boy — os parâmetros de identidade de género, estética, etnia e orientação sexual podem ser livremente adaptados consoante as experiências e os fiascos romântico-sexuais de cada um/a, mas no caso de Mitski, uma miúda nipo-americana que passou anos a viver entre os Estados Unidos e uma dezena de países diferentes, o cute white American boy não é só uma história de amor que nem chegou a começar, é também a história secular de um país que tem problemas estruturais em lidar com identidades e modos de vida fora da episteme branca (“Your mother wouldn’t approve of how my mother raised me/ But I do, I think I do/ And you’re an all-American boy/ I guess I couldn’t help trying to be your best American girl”).
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Há um misto de alívio e horror quando reconhecemos um pedaço da nossa adolescência numa canção. Muito boa gente passou por isso quando viu Mitski no vídeo de Your Best American Girl a dar linguados à própria mão e a lamber ardentemente os próprios dedos depois de ter sido rejeitada por um cute white boy — os parâmetros de identidade de género, estética, etnia e orientação sexual podem ser livremente adaptados consoante as experiências e os fiascos romântico-sexuais de cada um/a, mas no caso de Mitski, uma miúda nipo-americana que passou anos a viver entre os Estados Unidos e uma dezena de países diferentes, o cute white American boy não é só uma história de amor que nem chegou a começar, é também a história secular de um país que tem problemas estruturais em lidar com identidades e modos de vida fora da episteme branca (“Your mother wouldn’t approve of how my mother raised me/ But I do, I think I do/ And you’re an all-American boy/ I guess I couldn’t help trying to be your best American girl”).
Foi precisamente com Your Best American Girl e o respectivo disco, Puberty 2 (2016), que Mitski Miyawaki entrou na primeira liga do indie rock americano, lugar assegurado no novo e quinto álbum, Be the Cowboy. O caos emocional que é o ser humano continua a ser a matéria de eleição, mas agora em versão ampliada e HD. As canções de Mitski nunca soaram tão lustrosas, tão triunfantemente pop (mas sem a mania das grandezas; aqui não se procuram catarses). A sua análise existencialista sobre a solidão e a auto-estima, sobre a complexidade das relações e correspondentes dinâmicas de poder, nunca se revelou tão lúcida, tão mordaz, indo muito além de um acerto de contas com a adolescência.
Em Why Didn’t You Stop Me, pop-rock esquizofrénico e histriónico mas estranhamente convincente, há a velha história do “acabei contigo mas quero a tua atenção na mesma”. O amor pode sublimar a estupidez humana, pode ser altamente manipulador, absurdo, mesquinho, mas também é mais ou menos essencial para a sobrevivência da espécie — por isso lá se continua na procura inevitável de companhia, mesmo quando tudo é insegurança e ansiedade, lembra Come Into The Water, maravilhosa balada gélida de sadcore a puxar uma mistura entre Cat Power, Lana Del Rey e Lucinda Williams (“So would you tell me if you want me?/ ‘Cause I can’t move until you show me”). Por isso é tão difícil largar um relacionamento, aquele lugar que já se tornou tão habitual e às vezes tão enfadonho e tóxico, diz-nos A Pearl, canção quase perfeita de indie rock violáceo, com tensão e urgência no balanço certo (“But it’s just that I fell in love with a war/ And nobody told me it ended”).
Mitski tem uma capacidade demolidora para sintetizar o desamparo e a solidão em tiradas tragicómicas. “My God, I’m so lonely/ So I open the window/ To hear sounds of people”, entra ela a matar em Nobody, bálsamo disco-sound para derramar depressões na pista de dança. Há muito drama, muita prosa emo memorável: “‘Cause nobody butters me up like you/ And nobody fucks me like me”, ouve-se em Lonesome Love (lamechice, mas lamechice empoderada), talismã de membrana country com a voz aurífera de Mitski a elevar cada verso.
Isto podia ser ela a contar-nos a vida, a entornar-se em cada canção. Só que não. Em Be the Cowboy, a cantautora e guitarrista quis explorar a narrativa e a ficção. As 14 músicas funcionam como vinhetas, cada uma com Mitski em role-playing (a própria conceptualização visual do disco vai nesse sentido). Se é óbvio que há sempre qualquer coisa dela nestas personagens — Remember My Name parece ser uma reflexão hiperbólica e performativa sobre o buraco negro da fama — , também é certo que isto não é um diário. Mitski não quer ser apenas um objecto de projecção da miséria alheia. Não quer que chorem no ombro dela. Quer fazer-nos olhar para dentro, quer que nos reconheçamos. Quer que cuidemos de nós, dos outros. Nada em Be the Cowboy é tão pessoal e tão directamente político como Your Best American Girl, mas também aqui há a subversão e a apropriação da mitologia americana falocêntrica. “Sê o cowboy que queres ver no mundo”, diz Mitski. Be the Cowboy é um dramalhão cheio de humanidade.