Nelson Évora: “Se vou melhorar o recorde nacional? Vou”

Passou uma década desde o título olímpico em Pequim e Nelson Évora continua na ribalta. Não tem parado de ganhar medalhas em grandes competições e promete que vai continuar. A fasquia dos 18 metros continua no horizonte.

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"No dia em que resolver sair do atletismo, vou sair pela porta da frente" Miguel Manso

A 21 de Agosto de 2008, no Ninho de Pássaro em Pequim, Nelson Évora, então com 24 anos, tornou-se no primeiro português campeão olímpico que não teve de correr dez quilómetros em pista ou uma maratona. Passou uma década e Évora continua na ribalta, com a conquista em Berlim do título de campeão europeu do triplo salto, fazendo pleno no ouro em grandes competições ao ar livre depois do Mundial de 2007 e dos Jogos de 2008.

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A 21 de Agosto de 2008, no Ninho de Pássaro em Pequim, Nelson Évora, então com 24 anos, tornou-se no primeiro português campeão olímpico que não teve de correr dez quilómetros em pista ou uma maratona. Passou uma década e Évora continua na ribalta, com a conquista em Berlim do título de campeão europeu do triplo salto, fazendo pleno no ouro em grandes competições ao ar livre depois do Mundial de 2007 e dos Jogos de 2008.

Em conversa com o PÚBLICO, Évora falou de títulos passados, de títulos futuros e da sua nova vida a treinar-se em Guadalajara com o grupo de elite de Iván Pedroso. E falou também de Pedro Pablo Pichardo, o cubano naturalizado português cujos 17,95m, feitos em Maio de 2017, passaram a valer como recorde nacional, ultrapassando os 17,74m de Évora. Pichardo não foi autorizado pela IAAF (Federação Internacional de Atletismo) a competir por Portugal nos Europeus de Berlim e referiu-se ao título de Évora de forma não muito simpática, mas o saltador do Sporting não quer alimentar mais a polémica sobre o processo de naturalização.

Quem era o Nelson Évora em 2008?
Era um atleta com muita fome, com muita vontade de ganhar o respeito da elite internacional e cumprir um sonho de criança, ganhar uma medalha. Tive esse privilégio de tudo correr muito bem, de ser o quarto campeão olímpico português.

Havia alguma diferença de personalidade?
Acho que sou igual. Sou uma pessoa com a mesma vontade e com o mesmo espírito de sacrifício. Se calhar, houve coisas que melhoraram. Na altura, lembro-me que me treinava para competir, somente, e não levava alguns detalhes tão a sério. Hoje se calhar sou ainda mais profissional que na altura – e na altura já era muito profissional -, mas se calhar é esse o porquê de ainda andar cá dez anos depois, e depois de um período mais conturbado devido a lesões. Consegui ultrapassar isso e continuei a ganhar medalhas. Tem de haver um porquê e acho que tem a ver com isso.

Como assim, mais profissional?
Na altura talvez tivesse menos cuidado com o meu corpo. Um atleta com 20 e poucos anos preocupa-se menos com o que come, com as horas de descanso. Se acorda fresco e se sente bem, continua. E eu era assim. Se houvesse um dia que dormisse mal, não era um problema. Hoje em dia já não é assim. Um atleta com 30 e tal anos ressente-se quando dorme mal. Eu treino-me com a mesma motivação, mas sei que estarei menos bem na performance no treino. Tenho mais cuidado com esses pormenores. Na altura, a minha mãe podia fazer uma comida que não devia estar na minha dieta e eu comia. Mas não foi por isso que deixei de ganhar aquilo que ganhei. Os anos passam e as coisas vão melhorando. Quem escreve, escreverá melhor com dez anos ou mais de experiência, já sabe o que é importante, já tem mais experiência…

Como é que se acorda de manhã a pensar: “Hoje vou disputar uma final olímpica”?
Foi bastante difícil de adormecer, estava bastante ansioso, mas lá consegui. Depois, acordei com a pior coisa que podia acontecer, acordar com um relâmpago. Ia estar um dia horrível, de chuva e eu odiava (odeio) saltar com chuva e com frio. Isto pode ser mau, pensei eu. Entretanto, mantive a mente serena e positiva. O ritmo cardíaco estava mais elevado que o normal e, antes de sair da residência portuguesa, bebi um café (Delta, que o Comité Olímpico tinha levado para a comitiva) e fui para o estádio bastante determinado.

Era uma concorrência dura…
Foi uma prova muito disputada, as coisas decidiram-se por centímetros. Foi emotivo até ao quinto ensaio. Houve muita troca de lugares. Lembro-me de isso estar a acontecer e quem está à frente não gosta de mudanças lá atrás, porque depois pode sofrer por tabela. Há quem se guarde mais para o fim, há quem dê tudo logo no início. O melhor é estar pronto em qualquer altura.

O Phillps Idowu era um tipo bastante “colorido”…
Sim, era bastante excêntrico. Fazia parte da imagem, era bastante engraçado e cativava muito a atenção – e isso também é importante, até por razões comerciais. Num estádio de atletismo, com muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, é preciso chamar o público para a prova. Foi muito emotivo, toda a gente estava ali em clima de guerra. Ele chegou aos Jogos Olímpicos totalmente convencido de que ia ser campeão e dizia que se sentia muito bem, que se sentia como um Super-Homem. Isso só me dava mais força, vamos entrar na arena e ver que ganha. Ficou provado que o Super-Homem cai. O salto que dá a medalha de ouro foi um salto controlado, para ganhar a liderança da prova. Mas os concursos são assim, os atletas querem tanto acabar com a concorrência que acabam por não conseguir nem uma coisa nem outra, nem o grande salto, nem a medalha. Eu sempre tive essa consciência, de que os campeonatos são para ganhar títulos, não são para fazer saltos bonitos ou longos. Tenho tantos títulos porque jogo sempre pelo seguro, mesmo tendo muita pressão em cima.

Será qualquer coisa do género: não ganha o melhor saltador, ganha o melhor saltador em competição?
Se tiver de me pôr na pele dos outros, e sinto isso, sei que eles têm respeito por mim. Posso não estar a saltar muito ou tão espectacularmente, mas quando chega o momento da verdade, nunca me subestimem, porque sai o melhor de mim. Eu sei disso porque… o Christian Taylor é duplo campeão mundial, duplo campeão olímpico, tem a segunda melhor marca de sempre e ele respeita-me bastante. Posso não estar no melhor “mood”, mas quando toca a um título, a coisa muda e ele sabe que não me pode subestimar. Porque é um bom competidor e o bom competidor é aquele que respeita todos. Quando eu estava muito acima dos outros, não subestimava ninguém, e aprendemos a não subestimar ninguém.

Antes de Berlim, falemos dos Mundiais de pista coberta de Birmingham e do salto a 17,40m, um dos melhores que o Nelson fez nos últimos anos e que não deu o ouro por três centímetros.
Nessa prova não subestimei os outros e arrisquei um pouco mais. Até fiz o meu recorde em pista coberta e foi um salto ainda a tentar explorar algumas armas boas que tinha. Aí, estava tão bem que, em vez de pensar que não devia arriscar, tinha a confiança que até podia fazer um salto melhor. Nunca subestimei o brasileiro, nem o Will Claye, e, olhando para trás, custou-me. Foram três centímetros e foi das competições que mais me custaram em termos de gerir o bronze, não fiquei satisfeito porque senti que tinha mais nas pernas.

Mesmo sendo de bronze, esses 17,40m foram um bom sinal para o futuro…
Estou bem. Agora em Berlim, ganhei com 17,10m, mas tanto eu como o meu treinador sabemos que eu estou a valer mais, mas tive um pequeno problema no final da temporada que me tirou algumas semanas de treino e a boa forma para me lançar para os 17,50m, 17,60m, e chegar ao Europeu e tentar o recorde pessoal. Esse era o objectivo principal, era esse o plano. Tive uma microrrotura, por isso é que o resultado foi tão fraco. E tenho de agradecer ao Sporting, que teve total compreensão, não duvidou do meu estado físico e deu-me carta verde para fazer a recuperação. Foi um momento-chave para poder lutar pelo título em Berlim. Sei que tenho mais para dar, tenho mais duas competições e tenho de manter-me focado e dar um pouco mais.

Em Berlim, era a medalha de ouro que faltava.
Se me perguntassem isso no início da minha carreira, o meu objectivo era saltar o máximo que pudesse, saltar mais e saltar muito. Olhando para trás, o objectivo é saltar o mais que posso e o melhor que posso, mas há um contexto para cada prova.

Contextos competitivos diferentes…
Em Berlim, só houve três que saltaram a marca de qualificação. Dos três medalhados, o único que não fez a marca de qualificação fui eu. A análise que faço é que aquela pista não estava boa para saltar. Não sei explicar, mas foi sentido por todos, em todas as provas de saltos horizontais. Das quatro, só o triplo salto feminino é que foi mais ou menos normal, mas abaixo.

E no final ainda foi dar um abraço ao Alexis Copello, que ficou em segundo.
É meu colega de treino e acho que é isso o desporto. Não podemos levar isto de forma pessoal. Sei que ele também queria ficar com o primeiro lugar. O gesto foi de respeito. E amanhã vemo-nos treino. Naquele dia fui melhor, e ele tem sido bastante constante. As odds davam-no como favorito, mas, mais uma vez, é como eu costumo dizer, a estatística não serve para nada, o que interessa é ali.

É uma boa deixa para falar do “Team Pedroso”, que anda a dominar os pódios do triplo salto.
Sem dúvida. No próximo ano, o Iván terá dois tridentes, o masculino serei eu, o Alexis Copello e o Teddy Tamgho. O tridente feminino será a Yulimar Rojas, a Ana Peleteiro e a Nubia Soares.

É um grupo de elite…
É muito difícil de treinar! É supercompetitivo e isso é espectacular. Num dia menos bom de um homem, digo que podemos perder com as mulheres num treino. Acredite que é superengraçado o nosso dia-a-dia. Somos todos superconfiantes e ninguém gosta de perder. O treinador alimenta um bocadinho isso.

Como é a relação com Iván Pedroso?
Ele diz que das coisas de que mais se arrepende na vida é que nunca competia para bater recordes. Fez um dos saltos mais loucos que ainda hoje não está muito bem explicado, havia alguém em frente ao aparelho de vento, mas a bandeira mostrava que havia vento contra. E ele salta 8,96m e dão-lhe a vitória, mas não o recorde. Ele diz que se fosse americano, lhe davam o recorde, mas como era cubano... Ele continua com o mesmo espírito, agora como treinador, e passa-nos a energia e o conhecimento. E falamos de tudo, da infância de ambos, de comida... Nesta temporada que passou, fizemos um estágio no Algarve e ele experimentou um pouco do que o nosso país tem de melhor, e adorou.

Talvez mude a base de treinos…
Era disso que eu gostaria! É um treinador que treina muito a parte técnica e física, mas o que faz a diferença é a parte psicológica, de não nos importarmos com o ruído, com coisas que não são importantes. Ele é o melhor atleta técnico da história do atletismo. Ali todos são fãs do Iván.

Foi à procura dele também por causa disso…
Sim, mas também porque me tive de adaptar a uma grande catástrofe que me estava a acontecer e o Iván foi uma das pessoas que me veio à cabeça. Em dez minutos, ele disse-me que sim. Foi uma sensação estranha. Num momento não tinha treinador, noutro estava a treinar com um ídolo de criança.

Nos últimos dois anos, quatro medalhas em quatro grandes competições. Está a dar frutos a relação…
Dois ouros e dois bronzes. Os saltos grandes ainda não chegaram, mas ele diz-me, ‘Nelson, não te preocupes, o teu momento vai chegar. Cada momento tem a sua importância. Aqui vais saltar para o título’.

Os saltos em treino são mais longos que em competição?
Não sei. Não medimos. São estados de espírito completamente diferentes. Não arriscamos tanto nos treinos. Em competição, fazemos saltos a 110 por cento e isso tem grandes riscos. Como é óbvio, não podemos arriscar tanto em treino. Vou tentar dar uma ideia de como são os nossos treinos. O Iván separa-nos porque é arriscado treinarmos juntos ao mesmo tempo, mas depois junta-nos quando quer competição. Não temos a noção dos saltos que fazemos e ele nem consegue controlar essa parte competitiva. Fazemos competição em tudo, até no treino de velocidade. É impossível não haver.

É muito diferente das décadas de treino que tinha antes.
Sem dúvida. E acho que foi isso que me fez renascer. Cheguei e todos os dias era posto à prova. Quando entramos em pista, já estamos à-vontade. O nosso treino é tão duro... É preciso ter muita cabeça, porque facilmente uma pessoa se desmotiva a treinar-se num grupo destes. São egos muito grandes, mas há respeito entre todos.

Como é a vida em Guadalajara?
Muito tranquila, feita para treinar. Estou longe de amigos e família, só com um objectivo: treinar e descansar. Cada um vive na sua casa, de manhã o Iván faz um estudo das condições climatéricas, entra em contacto connosco e vai orientando o treino de acordo com a planificação. Uma coisa é certa, ele sofre bastante mais do que nós. Nós fazemos o esforço físico, mas ele não tem hora de saída. Quem entra a pensar que vai fazer um treino das dez à uma, não é assim, aquilo não é um escritório e não tem hora de saída.

São métodos de trabalho diferentes do que estava habituado. Isso mudou alguma coisa na forma de saltar?
Talvez não se consiga ver diferenças, mas eu já as sinto. O esquema mental de corrida e do salto são completamente diferentes. Para ser sincero, já nem sequer me lembro do esquema de antes. Tive de fazer uma limpeza total, recomeçar do zero e construir tudo outra vez e é estranho como o nosso corpo se adapta e a nossa mente reconstrói tudo. Restam os últimos dez por cento que falta mudar. Quando isso acontecer, tenho a noção de que virão grandes saltos.

A separação profissional do professor João Ganço não foi fácil. Depois disso, como ficou a relação pessoal?
Ficou uma relação normal de duas pessoas que viveram tantos momentos importantes. Houve um momento em que as coisas não correram bem, mas tudo está esquecido, já passou. Quando nos vimos, falámos tranquilamente, de como vão as coisas. Acho que sou das pessoas que melhor conhece o professor João Ganço, e ele é das pessoas que melhor me conhece. Sei que ele está bem, que a vida continua. Sei que tem novos projectos e eu também. Mas não há muito mais do que isso. Não vou dizer que é uma relação tão forte como tínhamos – não é. Não foi um final feliz, foi um final muito amargo para mim. Mas não guardo rancores. Aprendi. Umas vezes aprendemos da melhor forma, outras vezes aprendemos da pior forma. Mas faz parte da vida.

Os títulos e as medalhas já ninguém lhe tira. Mas já não tem o recorde nacional do triplo. Como encarou o recorde do Pedro Pablo Pichardo?
Vou trabalhar o máximo que puder para recuperar o recorde e acredito que o consiga fazer até Tóquio. Isso ou até mais. Tenho de me manter focado e acreditar que posso continuar a quebrar barreiras. Vou melhorá-lo? Vou. Esse é o meu objectivo e dar essa alegria aos portugueses. O que está no papel dos recordes não me incomoda e não me incomodou. Eu estava lá presente, OK, boa, a vida continua. O que é que as pessoas vão recordar, o recorde ou os títulos?

Os títulos ficam, os recordes são batidos…
Ganhei todos os títulos que podia ganhar, mas quais são as marcas com que ganhei? Alguns vão saber, mas poucos. O que as pessoas sabem é que ganhei os títulos. Os recordes? São para serem batidos.

Houve aquela mensagem do Pichardo nas redes sociais…
Isso é frustração porque tudo foi tão fácil e chegou um momento em que ele não entendeu por que razão não aconteceu [estar nos Europeus]. Eu tive de esperar 11 anos pela nacionalidade. Quando cheguei a Portugal os meus pais já tinham posto os papéis. Para o meu pai foram 14 ou 15 anos. Para mim, foram 11. Podem comparar e falar de direitos, mas ignoro e não quero alimentar essa história. Estou tranquilo, fui ao Campeonato da Europa, ganhei e bato no peito. Estou aqui a dar a entrevista em português e não é preciso meter legendas, quando penso em comida penso em comida portuguesa, e todas as minhas vivências são daqui. Sou filho de africanos, percebo crioulo, percebo francês, mas expresso-me é em português, escrevo e falo português, andei na escola portuguesa. Quem quiser comparar, que compare.

Como será quando tiverem de conviver na selecção portuguesa?
Não pensei nisso, para ser sincero. Não tenho nenhum problema com o Pichardo, ele é que deve ter algum problema comigo.

Ganhou o ouro em 2008, poderá, quem sabe, ganhar outro em 2020, e esses 12 anos de diferença entre títulos podem bem ser um recorde no atletismo olímpico. Isso terá algum significado?
É possível, sem dúvida, basta chegar a Tóquio com saúde e em boa forma. Se acontecer, será outro feito histórico. É preciso é trabalhar para chegar lá nessa forma espectacular. Sinto-me bem, não me sinto como um atleta de 36 anos que já está em final de carreira.

E aqueles 18 metros que poucos alcançaram?
É isso mesmo que eu quero. E que seja uma prova espectacular e que possa dar esse doce às pessoas que sempre estiveram comigo. Elas dizem que não é preciso, mas eu quero dar essa prenda.

Continua sempre a prometer e a cumprir, com títulos e medalhas. E para os Mundiais do próximo ano e os Jogos Olímpicos de 2020?
É o que sempre prometi, o de me apresentar na melhor forma que posso. Entro na pista para ganhar medalhas e assim vai continuar a ser. É assim que trabalho, focado e sem pisar ninguém. No dia em que resolver sair do atletismo, vou sair pela porta da frente e sabendo que fiz todos os esforços para deixar um legado que um desportista deve deixar. Ninguém irá mudar isso, mesmo os que me tentam contrariar. É como os aviões, descolam com o vento contra.