Ruy Alarcão, um pilar da democracia portuguesa
Acho que com ele aprendi muito e acima de tudo a ser melhor. E não consigo encontrar nada que de mais importante possa dizer de alguém.
Quando hoje soube da infausta morte do Ruy Alarcão, lembrei-me automaticamente do que André Malraux escreveu sobre a morte de De Gaulle, que recordo de memória apenas: quando um carvalho cai a terra estremece.
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Quando hoje soube da infausta morte do Ruy Alarcão, lembrei-me automaticamente do que André Malraux escreveu sobre a morte de De Gaulle, que recordo de memória apenas: quando um carvalho cai a terra estremece.
Quem conheceu bem o Magnífico Reitor Alarcão sabe que aparentemente entre ele e De Gaulle nada existe de comum. Basta pensar na ponderação e moderação, no otimismo histórico, no sentido de humor doce e na ausência de sarcasmo, na recusa da “grandeur”, no “low profile”, na forma discreta de estar na vida e na sua maneira de ser democrática e liberal.
E, no entanto, no instante em que um amigo comum me telefonou, senti a terra estremecer sob os meus pés. E de imediato percebi a razão: Ruy Alarcão era um dos pilares da sociedade pluralista que nem sempre de modo fácil se foi construindo nos últimos 43 anos (e não digo 44, conscientemente). O que conseguiu fazer na Universidade de Coimbra é o que Portugal sempre precisou que fosse feito a uma escala maior. A sua morte afeta o edifício da nossa vida coletiva.
Num mundo dado a paixões e a imponderação, a exageros ciclotímicos em que euforia e pessimismo se sucedem de forma inconsequente, em que a recusa do outro e a radicalização do discurso e da prática tornam o bom senso um metal raro e precioso, nesse mundo que vemos todos os dias (e que nem sempre conseguimos evitar), pessoas como Ruy Alarcão fazem a diferença.
Com o seu tato diplomático, a sua florentina inteligência, a sua enciclopédica cultura, o seu amor à poesia, ele era um construtor de consensos e um destruidor de radicalismos. E fazia-o sempre com sentido de humor e sentido de amor. A sua capacidade empática era genuína, porque estruturada na força e coerência das suas convicções e na alegria com que aceitava a existência da diferença como uma riqueza. Podia ir até ao outro, também porque não tinha dúvidas sobre qual era o seu “terroir” ideológico, podia ousar compreender o ponto de vista do outro porque tinha os pés bem assentes naquilo em que serena e firmemente acreditava.
Nunca o vi abusar da sua inteligência, da sua sibilina cabeça jurídica, nunca o vi ser arrogante, impaciente, ofender-se com a insensatez e estupidez de tantos. E não o fazia por tática ou calculismo, mas porque sabia fazer realçar o que há de melhor em cada um de nós, os “better angels of our nature” de que falava outro carvalho milenar, Abraham Lincoln.
Apesar de um parentesco que me honra, também por alguma diferença de idades, só passei a conviver muito com ele e a Eliana, quando constitui a Fundação Inês de Castro, a cujo Conselho Geral presidiu desde a primeira hora e que ajudou de forma decisiva a consolidar. Devo-lhe muito, ri e partilhei muito com ele. Acho que com ele aprendi muito e acima de tudo a ser melhor. E não consigo encontrar nada que de mais importante possa dizer de alguém.
Ruy Alarcão teria sido um grande Presidente da República. Nunca sequer o quis tentar, apesar de ter um sentido de serviço cívico inquebrantável. Foi pena para o País. Mas para os que por esse motivo puderam privar com ele mais foi, afinal, um bálsamo
Lisboa, 19 de Agosto de 2018