Chamar palhaço a um agente da PSP é crime ou mera grosseria?

Onde é que um insulto a um agente policial extravasa a mera descortesia para passar a configurar um crime de injúrias? E por que é que chamar palhaço é diferente de chamar mentiroso a um agente em funções? Os juízes respondem.

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Chamar “camelo” e “palhaço” a um agente da PSP é diferente de lhe dizer “Vocês são sempre a mesma m…”? Aparentemente sim, dependendo dos juízes que são chamados a apreciar a semântica das ofensas.

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Chamar “camelo” e “palhaço” a um agente da PSP é diferente de lhe dizer “Vocês são sempre a mesma m…”? Aparentemente sim, dependendo dos juízes que são chamados a apreciar a semântica das ofensas.

No primeiro caso, imputado a um motorista profissional que, em 2007, foi interceptado por um agente policial à paisana depois de ter desobedecido a um sinal STOP, o Tribunal da Relação do Porto entendeu que os epítetos constituem uma grosseria que todavia não excede o âmbito da mera falta de educação nem tem “aptidão para ofender a honra e consideração do visado”. Mais recentemente, em Janeiro deste ano, a Relação de Lisboa considerou que invectivas como “Vocês são sempre a mesma m…” e “tenham vergonha nessa cara” são “manifestamente ofensivas da honra e consideração” dos agentes, tendo confirmado por isso a condenação pelo crime de injúrias agravadas. 

A contraposição impõe-se porque neste segundo caso o arguido, um adepto benfiquista, tentou valer-se das doutas considerações do primeiro acórdão para tentar reverter no Tribunal da Relação de Lisboa a condenação que lhe fora imposta em primeira instância pela prática de dois crimes de injúria agravada e que lhe valeu uma pena de sete meses de prisão, suspensa pelo período de um ano.

Definir os contornos do caso implica recuar ao jogo em que o Benfica se sagrou tetracampeão, depois de uma goleada de cinco a zero ao Vitória de Guimarães. É escusado esmiuçar as notícias dos jornais, efervescentes na análise do desempenho dos jogadores e das nuances do sorriso de Rui Vitória, mas omissas quanto aos desacatos que os subsequentes festejos provocaram entre adeptos e claques rivais.

Estava então o arguido longe dos holofotes mediáticos mas no epicentro dos acontecimentos, na Avenida General Norton de Matos, junto ao recinto desportivo do Estádio da Luz, na madrugada do dia 14 de Maio de 2017, quando foi abordado por dois agentes da PSP devidamente fardados. Sem outra arma para além da sua natural riqueza vocabular, o arguido disparou contra os agentes as frases que haveriam de ecoar pelos tribunais adentro: “Vocês são sempre a mesma merda! Andam a comer na mão do Musta! Andam sempre à caça dos mesmos. Vocês tenham vergonha nessa cara!”. Para quem – como a autora destas linhas – desconheça a identidade de Musta, o próprio Ministério Público (MP) explicitou que se trata de uma figura sobejamente conhecida no mundo desportivo por liderar um grupo organizado de adeptos do Sporting, a “Juventude Leonina”.

Na óptica dos magistrados do MP, o arguido sabia que tais expressões eram “atentatórias da honra, dignidade pessoal e brio profissional” dos agentes e, mesmo assim, não se inibiu de as proclamar. E no Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa o entendimento foi conforme e o arguido condenado. Aconteceu que este tratou de recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa perante cujos juízes argumentou em primeiro lugar que apenas um dos agentes se disse ofendido e pediu procedimento criminal. E mesmo quanto a este, não considerou legítima a conclusão judicial no sentido de que tais expressões o atingiram na sua honra e brio profissionais.

“Ainda mais, tratando-se de um agente policial ‘spotter’ habituado a acompanhar grupos de adeptos onde o vocabulário não será, de todo palaciano…”, argumentou, no recurso apresentado no início deste ano, apelando à jurisprudência nacional que estabelece a fronteira entre o que é uma violação da ordem e do trato social (uma falta de educação, uma deselegância) e uma violação das regras de civilidade que reclama tutela penal.

A argumentação alicerça-se em considerandos filosóficos vários que, em síntese, procuram fazer vingar a ideia de que nem tudo o que viola as regras de bom comportamento e boa educação é susceptível de constituir crime tutelado pelo artigo 181º do Código Penal, cuja existência se justifica pela necessidade de penalizar, essas sim, as manifestações de danosidade social intolerável. Dentro desta lógica dizer a um agente da PSP “vocês são todos a mesma merda” não tem “aptidão para lhe ofender a honra”. É, concomitantemente, algo que não extravasa o “âmbito das descortesias” e que visava apenas “exprimir desagrado e desconsideração pela actuação policial em curso”.

E, para melhor fundamentar a sua posição, esgrimiu um acórdão de 2009, do Tribunal da Relação do Porto, cujos juízes tinham sentenciado que os epítetos “palhaço” e “camelo” atirados contra outro agente da PSP pelo tal motorista apanhado em desobediência ao sinal vertical STOP “constituem uma grosseria mas não excedem o âmbito da falta de educação nem têm aptidão para ofender a honra e consideração do visado”.

O que o benfiquista omitiu é que, no mesmo acórdão, tendo embora enquadrado os referidos “palhaço” e “camelo” na esfera da mera má educação, os desembargadores do Porto reconheceram relevância criminal ao facto de o mesmo motorista ter chamado “mentiroso” ao agente policial. E, por esse crime de injúria, condenaram-no a uma pena de 100 dias de multa a uma taxa diária de seis euros.

De resto, de nada lhe valeu o recurso. A Relação de Lisboa concluiu unanimemente que o adepto benfiquista ao invectivar daquele modo os agentes da PSP que estavam a zelar pela manutenção da ordem e respeito públicos lhes feriu a honra e a consideração, bem como a autoridade do Estado que os tutela. Ao usar as expressões em causa, e ainda na óptica dos juízes, revelou ainda o adepto “baixeza” de princípios e “indiferença pelos valores jurídicos tutelados”. E, tratando-se de um arguido com condenações anteriores pelo crime de injúria agravada, absolvê-lo seria obrigar os agentes da PSP a conformarem-se com este tipo de juízos ou censura ultrajantes perante várias dezenas de pessoas, logo a abdicarem do respeito exigível. Assim, concluem os juízes da Relação, a pena imposta em primeira instância deveria ser revista, sim, mas porque “peca por defeito”.