Vila do Bispo: quem consegue sair da Ingrina?
Os caravanistas andam à procura de qualquer coisa no Sudoeste algarvio. E não é do mar. De Aljezur a Budens, as carrinhas seguem pesadas mas são os espíritos que viajam.
Num parque de estacionamento em Budens repousa Greg, um holandês em viagem num ecossistema à porta fechada, em que a única abertura para o mundo são as prateleiras de fruta e as máquinas de lavar roupa de uma superfície comercial. No concelho de Vila do Bispo, os supermercados de estrada são passerelles do autocaravanismo. “Primeiro instalámos serviços de lavandarias, mais tarde, algumas lojas começaram a investir em espaços para os caravanistas. Actualmente, 34 dos nossos pontos de venda já disponibilizam este serviço (…) e a tendência é aumentar”, informa Daniel Marta, administrador de marketing do Intermarché, sobre o fenómeno do autocaravanismo e a forma como a marca viu nele um negócio.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Num parque de estacionamento em Budens repousa Greg, um holandês em viagem num ecossistema à porta fechada, em que a única abertura para o mundo são as prateleiras de fruta e as máquinas de lavar roupa de uma superfície comercial. No concelho de Vila do Bispo, os supermercados de estrada são passerelles do autocaravanismo. “Primeiro instalámos serviços de lavandarias, mais tarde, algumas lojas começaram a investir em espaços para os caravanistas. Actualmente, 34 dos nossos pontos de venda já disponibilizam este serviço (…) e a tendência é aumentar”, informa Daniel Marta, administrador de marketing do Intermarché, sobre o fenómeno do autocaravanismo e a forma como a marca viu nele um negócio.
Greg parece ser um utilizador regular da loja ou, pelo menos, passeia-se nela com esse à-vontade. Chegou numa Mercedes branca sem direcção assistida, com penachos no retrovisor. Lá dentro, estão cómodas de madeira maciça, candeeiros, uma sapateira, uma guitarra, latas de atum, uma estante com livros, uma espécie de roupeiro embutido na carroçaria, garrafões de água, uma prancha de surf, velas de cheiro, esteiras de praia. Ao lado, uma camper amarela tenta recriar o Woodstock com colunas wi-fi e um furgão negro estaciona com a inscrição “I make my life”.
O holandês continua impávido sobre um degrau, no transe da centrifugação. Os restantes dissipam-se pelas estradas e falésias do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, cada cada vez mais procurado pelos adeptos do autocaravanismo fora dos parques de campismo e áreas legais, mesmo perante o controlo das autoridades. Embora entre os caravanistas abunde a música etérea, as queixas sobre o uso abusivo do espaço e o desrespeito pelo ambiente disparam da parte dos locais e de outra facção de turistas, instalados em hotéis, que olham com estranheza para aquele tipo de viagem. Quem são estas pessoas que querem noites sem electricidade? Quem prefere a cozinha ambulante ao “coconut bar”? Quem troca o ar condicionado pela janela aberta?
O parque dentro do Parque
Manuel Silva, 85 anos, moreno crónico de óculos vintage e fumador activo, sabe como responder a estas e outras questões. Há 34 anos, vivia em Setúbal, mas estava farto. “Vendi tudo. Tinha uma ideia de viver na natureza e queria que as pessoas pudessem viver também.” Comprou uma propriedade de 35 mil metros quadrados em pleno Parque Natural, com vista para o azul do mar e a vida de “raposas, lebres e lacraus”. Ali criou o Parque de Campismo da Ingrina, “a pedido da Câmara [de Vila do Bispo], com o intuito de resolver o problema do campismo selvagem”, segundo o próprio.
Viveu alguns anos numa caravana com a filha e foi plantando figueiras e alfarrobeiras no terreno laranja, que acabou por se tornar numa “mancha verde vista do mar”, como confirma Manuel sempre que dá uma volta de barco para contemplar a sua obra decenária. “Posso garantir que já plantei aqui quase 1000 árvores.”
No Parque da Ingrina, não há lotes nem horários. Os limites são impostos pela vegetação e pelos declives da terra, tal como pela vizinhança. “Pode entrar e escolher o lugar. Para ir embora, é a que horas quiser”, informa Susana, recepcionista e neta de Manuel Silva. Também há quem escolha ficar, como mostram os vasos e tapetes espalhados pelo parque, ou a tinta desgastada das caravanas de Peggy, que vive há quatro anos num recanto alheado do “bairro”. Estão dispostas em L — numa repartem-se a cozinha e um espaço de leitura; noutra o quarto de dormir. No exterior, fica a sala de estar: dois sofás, um tapete, uma mesa de centro e um cinzeiro para cigarros ocasionais. “Sou famosa pelo meu café”, começa por dizer a alemã. Eu aceito e sento-me com Júnior, o cão, naquele sofá esparramado ao sol, onde Peggy Schlukat conta a sua história.
“Sempre vivi perto da natureza, os meus amigos eram os cavalos.” Na Renânia do Norte, o Inverno era duro, mas isso não a perturbava particularmente. O problema era tudo à volta: o sistema familiar, o trabalho, a sociedade. “Não me adaptei.” Aos 41 anos, começou a apanhar comboios; parou em Lisboa. Veio a pé para o Algarve, morou num pequeno apartamento em Sagres, dormiu na rua. Na Ingrina vive com quatro galinhas, um gato, três cães e um periquito. Também cultiva alguns vegetais no “quintal” e diz viver livre com isso e com os “donativos” que a mãe envia da Alemanha para poder pagar a mensalidade a Manuel Silva. “Eu pertenço a este lugar. Deus já me mostrou.”
Viagem de autocarro
Segundo a memória do proprietário, os primeiros residentes do parque foram “dois portugueses de Cascais, que gostavam muito de pescar”. “Viveram cá bastantes anos, em condições bastante precárias.” Na Ingrina, o normal é o bastante. Quem chega a pensar em ficar dois dias acaba por ver-se enredado numa vida com os arbustos, as praias selvagens e as noites de tango no bar. “Há pessoas que vêm com a ideia de ficar dois ou três meses. Depois perguntam se não faço condições especiais… E vão ficando”, conta Manuel Silva.
Uma fonte oficial confirmou à Fugas, no entanto, que o parque da Ingrina é ilegal, por não cumprir os requisitos de higiene e segurança exigidos. São vários os terrenos privados a funcionar sem licença como parques de campismo no Algarve, e também há incumprimentos em estruturas mais recentes, como os parques e áreas de serviço para autocaravanistas. Mas os processos de legalização arrastam-se.
A Roman — e a todos os outros campistas —, que bebe uma longa tisana ao estalar da manhã, nada parece errado no Parque da Ingrina. Foi este, aliás, o lugar onde encontrou alguma paz para colocar as ideias em ordem após ter investido grande parte das poupanças num autocarro velho que estava parado nos arredores de Basileia, na Suíça. Cansado de ser programador, veio para Portugal e decidiu transformá-lo no Surf Hostel Bus. Está agora a restaurá-lo no parque, onde acorda todos os dias frente à janela colossal do condutor, com vista para a copa das árvores. Lá dentro há quatro quartos, beliches e uma sala onde se pode ouvir música e “comer bem”. Em breve, depois de pintar “paredes”, tingir cortinas e inventar ligações nesta “máquina enorme”, o hostel há-de circular pela costa ocidental com amantes do surf. Roman sabe que tudo isto é uma loucura, mas “sempre quis ter uma aventura e uma carrinha grande”. “Não preciso de muito para viver.”
Ver como é o autocarro por dentro é um dos projectos de Susana, a neta de Manuel Silva. “Há pessoas aqui que vivem em verdadeiros palácios”, segreda ela. De cada vez que carrega no botão para abrir a cancela a quem chega, pode estar a começar uma nova aventura. “Vêm por dois dias, não é mesmo?”