Milhões de indianos classificados como imigrantes ilegais levam a sua luta para os tribunais

Há muito que o estado de Assam luta contra a imigração ilegal. Mas os críticos dizem que o Registo Nacional de Cidadãos, que deixou de fora quatro milhões de pessoas, essencialmente muçulmanos, faz parte de uma campanha com motivações racistas.

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Um voluntário ajuda a preencher os formulários na aldeia de Mayong, no estado de Assam,Um voluntário ajuda a preencher os formulários na aldeia de Mayong, no estado de Assam REUTERS,REUTERS

A lista criou divisões nas próprias aldeias, dividindo famílias e provocou o caos. Quatro milhões de pessoas foram excluídas da versão inicial Registo Nacional de Cidadãos publicado no mês passado pelo estado indiano de Assam, apesar de estas garantirem serem indianas. 

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A lista criou divisões nas próprias aldeias, dividindo famílias e provocou o caos. Quatro milhões de pessoas foram excluídas da versão inicial Registo Nacional de Cidadãos publicado no mês passado pelo estado indiano de Assam, apesar de estas garantirem serem indianas. 

Este registo faz parte duma campanha de “detectar, excluir, deportar” que pretende expulsar mais de 20 milhões de imigrantes ilegais oriundos do Bangladesh, país maioritariamente muçulmano. Na semana passada, muitos dos excluídos em Assam começaram a submeter requerimentos para descobrir porque ficaram de fora da lista – o primeiro passo do que poderão ser meses de impasse e morosas batalhas legais para provar a sua nacionalidade.

“Chorei,” disse Sumiron Nessa, de 20 e poucos anos, que descobriu no mês passado que tanto ela como a sua mãe não fazem parte da lista. Não tem certidão de nascimento nem nenhum comprovativo que prove que é proprietária de terras, apenas registos escolares, que foram rejeitados sem qualquer explicação.

“Sou estudante. Sou indiana,” disse Nessa. “Porque tenho de passar por tudo isto para poder prová-lo?”

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Riyazul Haq (centro) (C), o seu filho Sahil Shaikh (à frente do pai) e a filha Rimpi Khatun ficaram excluídos do registo Adnan Abidi/REUTERS

O registo de cidadãos faz parte de um esforço de várias frentes para remover de Assam os estrangeiros. O estado tem uma fronteira longa e porosa e tem lutado contra a imigração ilegal durante décadas. Mas os críticos dizem que a lista marginaliza os milhões de pessoas que foram excluídas, a maior parte muçulmanos.

O ministro do Interior indiano Rajnath Singh disse que os cidadãos indianos que ficaram fora da lista vão ter oportunidade de provar a sua nacionalidade, mas estas declarações não tranquilizaram as minorias, em especial os muçulmanos, que se sentem perseguidos.

Casos chocantes

Os habitantes de Hathishola, uma aldeia verdejante cheia de arrozais a cerca de 60 km da capital do estado, abordaram o assunto recentemente e falaram com Akram Hussein, o ex-presidente da povoação.

Cerca de um terço da aldeia com 4886 habitantes, maioritariamente muçulmanos, está sob escrutínio por ter provas insuficientes de ter nacionalidade indiana. Analisando os papéis, Hussein tentou identificar as falhas nos documentos: um homem escreveu mal o nome do pai, reparou; outro não tinha certidão de nascimento, e por isso não podia provar a sua ligação ao pai, o que suscitava questões sobre a sua ascendência.

Alguns casos chocaram-no. Um par de gémeos que entregou documentos quase idênticos foi informado de que um havia ficado na lista e outro não.

Hussein disse que o registo estava a ser utilizado para legitimar abusos racistas contra falantes de bengali e muçulmanos, que se tornaram alvos de abusos xenófobos.

“Nascemos em Assam, praticamos a cultura de Assam,” disse. “Mas eles chamam-nos bengalis. Muitas pessoas começaram a falar apenas assamês fora de casa por medo de serem gozadas.”

Muitos indianos poderão perder os seus direitos como cidadãos por causa de erros administrativos ou falta de documentação, disse Aman Wadud, um advogado de direitos humanos. Isto também quer dizer que o Bangladesh – que acolhe mais de um milhão de refugiados rohingya da Birmânia na sua fronteira a sul – poderá assistir a um novo fluxo de migrantes apátridas vindos do norte.

A Índia precisaria da cooperação do Bangladesh para deportar os migrantes, e não houve quaisquer conversas oficiais entre os dois países sobre o assunto. Numa entrevista para o canal televisivo News 18, o ministro dos Assuntos Internos do Bangladesh Asaduzzaman Khan afirmou que o país estaria disposto a aceitar migrantes se se provasse que são cidadãos daquele país.

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Razia Bibi (à esquerda) e a sua nora Sajida Begum (à direita) ficaram também excluídas do registo Adnan Abidi/REUTERS

A eleição de Modi

“Temos uma relação muito boa com a Índia, e devido a essa excelente relação, acreditamos que a Índia não se apressará a enviá-los para o Bangladesh,” disse.

Em Assam, os esforços para deportar bengaleses já ocorrem há décadas. Em 1985, o Governo indiano assinou o Assam Accord, que tornou ilegais todos os imigrantes sem documentação naquele estado. Ao longo dos anos, os falantes de bengali têm enfrentado inúmeras situações de violência xenófoba.

“Não podemos comprometer a nossa identidade,” disse Samujjal Bhattacharjya, conselheiro principal da organização All Assam Students Union, que tem conduzido uma campanha anti-imigrantes no estado. “Não nos podemos sentir como cidadãos de segunda.”

A eleição do primeiro-ministro Narendra Modi em 2014 deu um novo vigor ao movimento para expulsar os estrangeiros de Assam. Amit Shah, presidente do actual partido nacionalista hindu Bharatiya Janata Party, chamou aos quatro milhões excluídos da lista de “intrusos.”

Desde 2015, mais de 62 mil funcionários do governo analisaram 66 milhões de documentos dos 33 milhões de requerentes que clamam ter cidadania indiana. Mas determinar a cidadania de alguém é bastante difícil nas zonas mais pobres da Índia, e a lista que têm feito tem sido continuamente criticada. De acordo com os meios de comunicação locais, até os familiares de um antigo Presidente indiano foram incapazes de mostrar documentos que comprovassem ser indianos.

A data-fronteira 1971

O Governo exigiu documentos comprovativos de propriedade de terras, recenseamento ou residência na Índia desde antes de 1971. Aqueles que nasceram na Índia depois de 1971 ou que não tenham documentação comprovativa de cidadania indiana tiveram de comprovar a sua ligação a pais ou familiares que passaram no teste de cidadania – e é nesta parte que muitas pessoas, especialmente as mulheres, falham.

Muitas mulheres que procuraram a ajuda de Hussein tinham provas de que os seus pais tinham votado numa eleição em 1966 mas não tinham certidões de nascimento que comprovassem que eram filhas dos seus pais. As mulheres estão particularmente vulneráveis, porque geralmente as terras são transmitidas aos herdeiros homens e por isso elas não aparecem nos documentos que comprovam propriedade ou herança.

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Formulário para apresentar queixas e reclamações sobre o registo EPA

Assam tem assistido a levas de migração oriundas do actual Bangladesh há muitas gerações, antes da Índia e o Bangladesh existirem como nações independentes. Muitos muçulmanos assameses, cuj língua bengali é semelhante à falada no Bangladesh, afirmam que os seus antepassados migraram durante a Segunda Guerra Mundial devido a uma campanha dos governantes das colónias britânicas para aumentar a produção nas fazendas.

Outra leva de migrantes teve direito a refúgio na Índia durante a guerra do Bangladesh para obter a independência do Paquistão em 1971, cujo exército se calcula que terá morto mais de 300 mil pessoas.

Prateek Hajela, coordenador mandatado do Registo Nacional de Cidadãos pelo Supremo Tribunal, disse que a lista não havia sido criada para prejudicar muçulmanos e que muitos hindus também ficaram excluídos.

“Quem ficou de fora tem a oportunidade de recorrer,” afirmou, acrescentando que o processo não tem falhas mas que está “incompleto.”

“Aquilo que fizemos foi para que fosse possível a identificação dos cidadãos,” disse. “É o resultado das questões anti-imigração levantadas pelo povo de Assam."

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Tradução de Ana Silva