Passar o trabalho de sal a sal para um corpo que dança

O espectáculo Saal, com direcção de Filipa Francisco, procura recuperar as vivências do labor nas salinas da Figueira da Foz.

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CARLOS GOMES

O ciclo do sal tem início na Primavera com a preparação das marinhas. A palavra para designar o homem ou a mulher que, à força dos braços, limpa e trabalha o terreno argiloso que há-de de ver cristalizar o sal varia: salineiro, marnoto ou marronteiro. É um trabalho pesado e pouco dado a grandes rendimentos, explica Gilda Saraiva, que tem uma salina na Figueira da Foz e dela extrai os montes brancos, tal como os seus pais antes dela, os avós ainda antes e os bisavós num passado mais longínquo.

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O ciclo do sal tem início na Primavera com a preparação das marinhas. A palavra para designar o homem ou a mulher que, à força dos braços, limpa e trabalha o terreno argiloso que há-de de ver cristalizar o sal varia: salineiro, marnoto ou marronteiro. É um trabalho pesado e pouco dado a grandes rendimentos, explica Gilda Saraiva, que tem uma salina na Figueira da Foz e dela extrai os montes brancos, tal como os seus pais antes dela, os avós ainda antes e os bisavós num passado mais longínquo.

Gilda Saraiva é uma das participantes de Saal, o espectáculo dirigido por Filipa Francisco que esta sexta-feira se estreia. Montado a partir de uma pesquisa sobre a história da labuta das salinas da Figueira, durante a qual foram recolhidos testemunhos de antigos e actuais trabalhadores do salgado de várias gerações, é, explica a coreógrafa, um exercício de tradução: “Como é que nós pomos isso no corpo? Como é que nós incorporamos na peça estas vivências e estes cheiros, este ecossistema e estes gestos?”, questiona. Sentada numa das cadeiras de plástico branco do salão de festas do Sport Club de Lavos, onde a peça terá três representações, Filipa Francisco conta que a equipa teve de ir para o terreno, acompanhando a transformação da paisagem do negro das lamas até ao branco do sal. “Estivemos dois meses nas salinas a aprender os gestos do trabalho”, diz. E a perceber como se passava deles “à fisicalidade, à corporalidade, à dança”. Saal não teve um texto de base, foi-se construindo, explica.

O resultado incorpora as reivindicações do sal enquanto património e momentos coreografados em que o gesto repetido e arrastado e a fita no chão remetem para o árduo processo de produção. As vozes dos trabalhadores entrevistados na pesquisa aparecem também, musicadas por Ricardo Freitas. À bailarina Susana Gaspar, juntaram-se oito pessoas de associações locais de teatro amador, duas das quais (como é o caso de Gilda) têm salinas. Saal fica no Sport Club de Lavos até domingo, com sessões diárias pelas 19h. Meia horas antes é reproduzido um documentário que ilustra o processo de criação do espectáculo.

Do sal ao SAAL

O nome da peça parte da matéria-prima e prolonga uma vogal para lhe conferir musicalidade. Tudo começou pela “sonoridade”, explica Filipa Francisco, para quem o espectáculo, ainda antes de o ser, poderia ser predominantemente “musical”. É no entanto difícil olhar para a palavra e não encontrar nela o acrónimo do Serviço de Apoio Ambulatório Local, o processo de realojamento que envolveu arquitectos e populações em situações precária no dealbar da revolução do 25 de Abril. E há também uma relação com esse período, embora o problema da habitação seja transportado para 2018. No processo de escuta de vozes e reivindicações – que não se cingiam ao léxico do sal, mas ao quotidiano –, emergiu a questão da “explosão dos preços”, explica a coreógrafa. Mesmo que isso não seja aprofundado na peça, acabou por se reflectir no título.

Na mesma linha das reivindicações ouvidas no início da peça, Gilda Saraiva, que também trabalha para o Núcleo Museológico do Sal, em Lavos, espera que Saal ajude a atrair atenção para uma actividade que viu a gente afastar-se dela por não ser rentável. Chegaram a contar-se cerca de 200 salinas na Figueira. Hoje sobram 42, embora o número tenha estabilizado nos últimos anos. “O nosso sal tem o mar lá dentro. É muito mais do que um negócio, é uma identidade de um povo”, aponta.

As salinas da Figueira da Foz foram, naturalmente, a primeira escolha para apresentação. Contudo, o trabalho insere-se na Rede Artéria, um projecto que junta várias companhias de teatro, associações locais e autarquias, sob a coordenação artística d'O Teatrão e a coordenação académica do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O mesmo é dizer que há um pressuposto de rotatividade e que cada peça circula por mais três das oito localidades da região centro envolvidas na rede. Por uma questão de adaptabilidade aos espaços que se seguirão, a opção foi por estrear o trabalho em terra firme.

Trabalhos paralelos

Um acaso fez com que o tema do sal da Figueira fosse matéria de dois trabalhos paralelos num intervalo de tempo semelhante. O Teatro do Vestido esteve dez dias no Núcleo Museológico do Sal e arredores a preparar Pontes de Sal ou As Mãos Gretadas, com direcção e dramaturgia de Joana Craveiro. Uma “primeira paragem” do projecto aconteceu a 10 de Agosto, incluída no programa da 40.ª edição do Citemor.

Para além da recolha de testemunhos, a directora do Teatro do Vestido refere que houve a tentativa de ir ao cancioneiro local, embora não tenham encontrado material nos arquivos do etnomusicólogo Michel Giacometti. O auxílio veio de José Craveiro, contador de histórias de Tentúgal, concelho de Montemor-o-Velho, que ajudou a recuperar uma música de trabalho das salinas.

Está previsto que a companhia volte ao festival de artes performativas de Montemor-o-Velho em 2019 para apresentar uma outra fase da peça. “Preciso de fazer mais trabalho de campo para acrescentar outras camadas”, explica Joana Craveiro ao PÚBLICO. E sintetiza: “Não sei o que será a segunda paragem, mas terá muito a ver com a questão de diário de campo, que me interessa explorar.”