Afeganistão, o país esquecido
Hoje, nenhum líder mundial o assume, mas o Afeganistão é uma causa perdida. Nada correu como se esperava e, numa determinada óptica, o país está pior do que, por exemplo, estava em 2000.
Quando os conflitos militares saem da agenda mediática, instala-se a sensação junto da opinião pública de que foram resolvidos ou atenuados. Se isso pode ser verdade em muitos casos, outros há em que o que acontece é puro esquecimento ou desinteresse da comunidade internacional face a realidades que perduram no terreno, por vezes, com mais intensidade. É isto precisamente que se está a passar no Afeganistão, uma guerra intestina mortífera, que continua a opor os taliban ao frágil Estado central.
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Quando os conflitos militares saem da agenda mediática, instala-se a sensação junto da opinião pública de que foram resolvidos ou atenuados. Se isso pode ser verdade em muitos casos, outros há em que o que acontece é puro esquecimento ou desinteresse da comunidade internacional face a realidades que perduram no terreno, por vezes, com mais intensidade. É isto precisamente que se está a passar no Afeganistão, uma guerra intestina mortífera, que continua a opor os taliban ao frágil Estado central.
Só nos últimos dias, os fundamentalistas islâmicos tentaram tomar de assalto a importante cidade de Ghazni, capital da província com o mesmo nome, envolvendo-se em confrontos com as forças de segurança, que provocaram, pelo menos, a morte de cerca de 100 polícias e 20 civis. Os combates continuam, embora as autoridades afegãs informem que a situação está controlada. Sabe-se também que na Sexta-feira (9) “conselheiros” americanos estacionados no Afeganistão foram para o local ajudar os militares afegãos e que aviões norte-americanos lançaram ataques aéreos, matando cerca de 140 insurgentes taliban. É importante lembrar que, formalmente, desde 2014, a intervenção bélica massiva dos EUA terminou no Afeganistão, tendo ficado para trás apenas cerca de nove mil soldados militares americanos para dar formação e apoio técnico às forças de segurança afegãs.
Seja como for, o New York Times, que tem um corresponde no Afeganistão, escrevia que quase todas as zonas suburbanas de Ghazni e as áreas rurais da província estão nas mãos dos taliban. Ghazni fica a 140 quilómetros a sudoeste de Cabul e a sua importância é estratégica, já que fica a meio da autoestrada que liga a capital afegã à segunda maior cidade do país, Kandahar. Entretanto, na Segunda-feira à noite (13), na mesma altura em que decorria a tentativa de ocupação de Ghazni, os taliban levavam a cabo uma outra operação no norte do Afeganistão, ao tomarem de assalto uma base militar na província de Faryab, matando 17 soldados. Os taliban informaram que muitos dos soldados da base Camp Chinaya se renderam, sendo que as autoridades desconhecem quantos foram feitos reféns.
Estes dois acontecimentos circunscrevem-se apenas nos últimos dias, mas, a verdade é que o Afeganistão continua a ser dilacerado quase diariamente pela violência taliban, mesmo depois de as forças nacionais terem assumido o comando militar das últimas regiões do país onde, até então, estavam os soldados internacionais. Estava-se em Junho de 2013 e um ano depois, o então Presidente Barack Obama retirava o grosso do contingente americano do Afeganistão, deixando apenas os tais nove mil soldados “conselheiros” no terreno. Chegava ao fim a presença internacional naquele país no âmbito da guerra declarada à al Qaeda e aos taliban, após os atentados de 11 de Setembro de 2001.
No entanto, todos os aliados estavam cientes de que o fim da missão no Afeganistão não correspondia a qualquer sentimento de euforia. Pelo contrário, o conflito estava num impasse e se era verdade que o Governo central era agora pró-ocidental e “amigo”, o país permanecia a “ferro e fogo”, com os insurgentes a reconquistarem áreas significativas.
Quando Donald Trump chegou ao poder, não deixou de perceber essa evidente realidade, embora, primeiramente, a sua preocupação estivesse focada no Estado Islâmico (ISIS), tendo, por isso, lançado em Abril de 2017 a “mãe de todas as bombas” sobre um complexo de cavernas na província Nangarhar, no leste do Afeganistão. O objectivo não eram os taliban, mas sim os terroristas do ISIS, numa altura em que se falava que este grupo estava a ganhar espaço no Afeganistão e a concorrer directamente com os taliban pelo controlo e influência naquele país.
Os alarmes terão soado em Washington, mas rapidamente se percebeu que quem fazia valer a sua força no Afeganistão eram os taliban, como historicamente sempre tinha acontecido. Com o ISIS na mira, a Casa Branca tinha toda a estratégia focada para a Síria e Iraque, ficando o Afeganistão numa situação incerta, com Trump apenas a admitir que podia reforçar o número de soldados naquele país. Aliás, a 18 de Junho de 2017, o título de uma notícia do New York Times era revelador do desnorte face à estratégia a ser seguida: As US Adds Troops in Afghanistan, Trump’s Strategy Remains Undefined.
Trump não tem sido claro em relação ao Afeganistão, mas já disse que uma retirada total dependerá sempre das condições no terreno. Retirada, essa, que, para já, parece estar muito distante, já que Washington voltou a reforçar a sua presença militar no Afeganistão, intensificando o número de soldados americanos no terreno para dar “advise” às forças de segurança afegãs. Também os ataques aéreos norte-americanos aumentaram, especialmente contra as plantações de ópio, uma importante fonte de receita para os taliban. Convém sublinhar que, segundo o Office for Drugs and Crime’s das Nações Unidas (UNODC), a produção de ópio aumentou 87 por cento no ano passado. Um número impressionante, porque significa, por um lado, que a estratégia americana anti-narcóticos não está a resultar e, por outro, que os taliban vão tendo cada vez mais receitas para financiar a sua guerra.
Quem estiver atento às pequenas notícias que vão saindo na imprensa internacional, constatará que, dezassete anos depois do início da operação Enduring Freedom, não passa uma semana em que a insurreição taliban não faça mortes e feridos no Afeganistão. De acordo com os dados disponíveis, cerca de um terço do país está dominado pelos taliban, a produção de ópio aumenta e a corrupção está instalada no Governo central.
Realisticamente, não há perspectivas de melhoria e muito menos um modelo que possa devolver estabilidade àquele país. Ironicamente, a última vez que o Afeganistão teve paz, era dominado pelos taliban do mullah Omar, onde a sharia imperava e um senhor chamado Osama bin Laden teve total liberdade para montar uma estrutura terrorista complexa e sofisticada.
Hoje, nenhum líder mundial o assume, mas o Afeganistão é uma causa perdida. Nada correu como se esperava e, numa determinada óptica, o país está pior do que, por exemplo, estava em 2000. É uma afirmação dura, mas é a realidade, que aliás se pode aplicar a outros países que foram alvo de intervenções militares desastrosas, como o Iraque, a Líbia ou a Síria.
O Afeganistão é um assunto que convém ficar “esquecido” das agendas mediáticas e políticas, porque, simplesmente, não há solução à vista para resolver a trapalhada que ali foi feita. A revista The National Interest recuperava há semanas umas declarações de Obama, proferidas em 2010, onde este admitia que os EUA tanto podiam ficar no Afeganistão por mais cinco, oito ou dez anos, não por uma questão de estratégia, mas sim por “inércia”.
É um impasse num conflito sangrento, destrutivo e dispendioso. Trump foi surpreendentemente lesto a percebê-lo e “adormeceu” o assunto, sem se comprometer com grandes medidas, mas ciente de que seria preciso fazer algo, nomeadamente, aquilo que nunca ninguém quis fazer… negociar com o inimigo. No dia 23 de Julho, no Qatar, uma alta responsável do Departamento de Estado esteve reunida com quatro líderes taliban. Foi o primeiro encontro entre as partes em sete anos. Também o Presidente afegão Ashraf Gani já percebeu o quadro todo, tendo no passado dia 27 de Junho publicado um artigo de opinião no New York Times onde, de forma peremptória e bem audível, dizia: “I Will Negotiate With Taliban Anywhere” (curiosamente, Mário Soares, animal político da escola realista, tinha há uns anos referido que qualquer solução minimamente credível para o Afeganistão teria que passar por uma negociação com os taliban. Na altura, não só não foi levado a sério, como chegou a ser gozado pelos “especialistas” e líderes da nossa praça).
Quase dezassete depois dos atentados de 11 de Setembro, o Afeganistão voltou a ser um país esquecido. Deixou de estar no topo das prioridades da comunidade internacional e da agenda mediática. Obama, antes, e Trump, agora, resignaram-se ao “status quo” afegão, de autêntico falhanço na destruição dos taliban e na reconstrução de um país dilacerado. Neste momento, num gesto de quase desespero, mas ao mesmo tempo de algum realismo, resta a possibilidade de negociar com o inimigo. E por isso é que é importante que o Afeganistão continue a ser um tema “esquecido”, porque a humilhação é pesada.