Líbano sonha em resolver os seus problemas económicos com cannabis
Uma consultora sugeriu ao Governo libanês avançar com a legalização da exportação desta droga para enfrentar a delicada situação económica do país. A proposta está a ser recebida de braços abertos pelo poder político.
Para tentar resolver a cada vez mais complicada situação económica e financeira do Líbano, o Governo contratou os serviços da empresa líder mundial em consultoria empresarial, a McKinsey, para elaborar um plano de recuperação a cinco anos. A via proposta foi supreendente: apostar na legalização da cannabis para fins medicinais e para exportação.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Para tentar resolver a cada vez mais complicada situação económica e financeira do Líbano, o Governo contratou os serviços da empresa líder mundial em consultoria empresarial, a McKinsey, para elaborar um plano de recuperação a cinco anos. A via proposta foi supreendente: apostar na legalização da cannabis para fins medicinais e para exportação.
O relatório de 1000 páginas da McKinsey, que foi entregue ao Presidente libanês Michel Aoun em Julho, recomendava ainda o desenvolvimento do turismo, a criação de um hub bancário e o investimento na produção de abacates. Mas o que saltou à vista foi a recomendação da legalização da cannabis.
A ideia foi imediatamente acolhida de braços abertos por grande parte do poder político libanês, incluindo o Governo.
Para um país que é o terceiro mais endividado do mundo, cuja economia cresce apenas 2% (antes do início da guerra na vizinha Síria, em 2011, crescia 9%), e com poucos recursos naturais próprios para fazer face a este cenário, pode parecer que Beirute está disposto a tudo para inverter a tendência económica.
Mas a verdade é que já são apontados cálculos de receitas caso a legalização da cannabis, e a consequente exportação, avance. “Pode render cerca de 400 a 800 milhões de dólares ao país”, calcula o ministro da Economia libanês, Raed Khoury, em declarações à CNN.
“Muitos, muitos especialistas estudaram a qualidade desta cannabis e dizem que é uma das melhores do mundo”, disse ainda Khoury, tocando no ponto essencial que atraiu a atenção da consultora.
Made in Beqaa
O Vale de Beqaa, situado entre o Monte Líbano e a Síria, é há muito o centro nevrálgico do sector agrícola libanês. Porém, nos últimos tempos, a produção de produtos como batatas ou cebolas é cada vez mais difícil, devido às alterações climáticas. Mas há um produto que resiste a secas e à falta de água e que ainda é abundante: a cannabis.
Este é um dos factores que permitiu que se criasse no Vale do Beqaa uma autêntica indústria de produção e transacção ilegais de cannabis. Sabe-se que o produto cresce nesta zona desde os tempos do Império Otomano e que a crise provocada pela guerra civil libanesa (1975-1990) ajudou esta indústria a atingir um pico e a florescer.
O último boom deu-se com o deflagrar da guerra na Síria, visto que as autoridades ficaram mais interessadas em proteger as fronteiras do que em controlar a produção ilegal desta planta. O jornal The Guardian cita produtores locais que dizem que o comércio cresceu 50% desde 2012.
Estima-se que este negócio gere entre 175 a 200 milhões de dólares por ano (entre cerca de 153 e 175 milhões de euros).
O Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC, na sigla em inglês) lançou um relatório em 2016 onde dizia que o Líbano está entre os cinco maiores produtores mundiais de resina de cannabis, também conhecido como haxixe.
Além da qualidade do produto, que é consequência das condições meteorológicas ideias para a sua produção no Vale do Beqaa, há outro factor que permite a fama mundial da cannabis libanesa: “As pessoas de Beqaa sabem como cultivar [a cannabis]. São especialistas ”, explica à CNN Mustapha Haidar, professor de ciências na Universidade Americana de Beirute e director de um centro de investigação agrícola em Beqaa. “Não são bons no marketing mas são bons no cultivo desta planta. E se o Governo controlar a venda disto e der licenças para uso médico, penso que é óptimo”.
Negócio de clãs
Sendo um negócio ilegal, a maioria da produção de cannabis nesta região é controlada por poderosas famílias e grupos criminosos. A riqueza que têm acumulado confere-lhes cada vez mais poder, não fosse esta uma das regiões mais pobres do país.
“A cidade de Brital, no Vale do Beqaa, é um contraste dissonante de pobreza e riqueza ostensiva”, descreve-se numa reportagem do Guardian. “O desemprego é abundante e, no entanto, a paisagem é pontilhada por grandes mansões”.
Estas famílias e clãs são favoráveis à proposta lançada pela McKinsey. “Eles concordam totalmente com isto. É um passo sério em direcção à reforma da economia libanesa”, disse ao jornal britânico Qassem Tlaiss, residente da cidade de Brital e que fala em nome dos clãs produtores de cannabis.
Tlaiss culpa até o confronto entre autoridades e produtores para a crescente pobreza na região: “Essa é uma das razões pela qual a região é tão pobre. Ninguém pode trabalhar porque há tantos mandatos de captura contra nós. Quem quer que seja suspeito de qualquer coisa não consegue encontrar emprego”
O caminho político para tornar esta indústria ilegal num negócio multimilionário que contribua para resolver a grave crise económica do Líbano já começou, tendo sido já entregue uma proposta de lei para o efeito: “O Parlamento libanês está a preparar-se para estudar e adoptar a legislação necessária para legislar o cultivo de cannabis e o seu fabrico para fins medicinais, à maneira de muitos países europeus e estados norte-americanos”, anunciou o líder do Parlamento, Nabih Berri, em Julho.
Porém, a proposta já tinha sido feita antes e partiu de dentro. Antoine Habchi é deputado e já o tinha sugerido: “Propus esta lei para ajudar os agricultores. Eles têm sido as vítimas”, disse, em declarações à Al Jazira. “Eles não podem vender [a cannabis] abertamente porque é ilegal, pelo que os dealers beneficiam mais ao imporem um preço aos agricultores e vendem o produto por preços mais altos. E esses dealers têm protecção política”, continua.
Hezbollah é contra
Este manto político que protege os distribuidores ilegais de cannabis de que fala Habchi remete para as acusações de que o Hezbollah, a força política dominante na região do Beqaa, faz com que as autoridades tapem os olhos ao negócio ilegal que aí se pratica.
Aliás, há quem diga que a organização política e armada é contra este projecto de legalização: “O Hezbollah é contra. Eles querem manter a região pobre para poder atrair jovens para lutar com eles”, diz Tlaiss ao Guardian.
O Hezbollah, que conta há muito com o apoio do Irão, reforçou a sua posição a nível nacional nas eleições parlamentares de Maio, as primeiras em nove anos no Líbano. A organização aumentou assim o seu peso negocial sobre o primeiro-ministro, Saad Hariri, que terá de chegar a um acordo de coligação entre vários partidos rivais para conseguir formar Governo.
Quem ganha?
Apesar desta situação, que promete vários obstáculos ao executivo para fazer aprovar a legalização – isto se se confirmar que o Hezbolah é contra –, o ministro da Economia (que é neste momento interino) não tem dúvidas dos benefícios para o país: “O Governo não está a beneficiar [do comércio de cannabis] porque não é legal”, diz ao Financial Times. “Por isso temos de a legalizar e criar um mecanismo para a controlar. Podemos fazer quatro ou cinco vezes [mais dinheiro da] produção se a legalizarmos”.
Apesar de todo este optimismo, o facto de esta ser já uma indústria ilegal institucionalizada e controlada por poderosos grupos criminosos, há quem desconfie da viabilidade de uma legislação deste género. A escritora e jornalista Belén Fernandez destaca, num artigo publicado no site Middle East Eye, que “o Líbano ocupa actualmente a 143ª posição em 180 países no Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional”, pelo que, na sua opinião, “além de complicar as perspectivas de prosperidade económica equitativa, oferece algumas pistas sobre onde acabarão os lucros de uma indústria de cannabis (dica: não é nos bolsos dos agricultores pobres)”.