Sesinando e andando
Trinta anos depois, a singular arte humorística de José Sesinando volta a estar disponível. Em volume único, Obra Perfeitamente Incompleta, e conversámos com os três responsáveis pelo feito editorial - Abel Barros Baptista, Luísa Costa Gomes e Ricardo Araújo Pereira. O caso não era para menos.
Aos leitores que, lido o título, possam ter ido procurar o significado do verbo "sesinar" e, não o tendo encontrado, começam já a duvidar da bondade das fontes consultadas, solicitamos que suspendam a descrença. O verbo não existia. Inventámo-lo agora mesmo (ainda está quentinho e estaladiço), para trunfo inaugural desta entrevista. Entenderão alguns, porventura (ou mesmo sem ela), que sesinar e andar são actos impraticáveis simultaneamente. Ou se anda ou se sesina, dirão. Experimentem fazer a coisa (ou ambas) no gerúndio. Convirá não confundir sesinar e serrazinar. Embora brinque obsessivamente com o mesmo assunto – a linguagem nossa de cada dia –, Sesinando não maça. Muito pelo contrário, ou seja, a contrapelo da predominante inclinação literata, Sesinando diverte-nos sempre. Até mesmo quando já sabemos que nos vai divertir.
É sabido, sobretudo pelas televisões, que, quando fala um português, falam logo dois ou três. Nesta entrevista falaram três (o quarto não conta, até porque a conversa decorreu numa sala): o humorista e escritor Ricardo Araújo Pereira (que é também escritor e humorista), a escritora Luísa Costa Gomes (igualmente humorista ou, pelo menos, bem-humorada), e o professor universitário, ensaísta e (sem dúvida) humorista Abel Barros Baptista. Não fosse o entrevistador um mero valete, e teríamos feito, portanto, um full de ases. Assim, fizemos só uma entrevista (ou terão sido três duma vez?).
Nestes tempos em que é tão difícil encontrar responsáveis pelo que quer que seja, não deixa de ser importante sublinhar que encontrámos facilmente (dizemo-lo sem falsa imodéstia) os responsáveis por um dos feitos editoriais do ano: a publicação da Obra Perfeitamente Incompleta de José Sesinando. São eles os supercitados Ricardo Araújo Pereira, coordenador da colecção de literatura humorística da Tinta-da-China, e Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista, editores do volume, cabendo ainda ao último a autoria do prefácio (assim se comprovando mais uma vez que os últimos serão os primeiros).
José Sesinando Palla e Carmo (Lisboa, 1923-1995) foi também tradutor, crítico literário e ensaísta (além de quadro superior bancário). A Obra… coliga os três volumes de criação literária humorística que o autor organizou e publicou em vida : Obra Ântuma (Publicações Europa-América, 1986), compilação de inéditos e dispersos em prosa e verso; Olha, Daisy – 50 Variações sobre o “Soneto já antigo” de Fernando Pessoa e Heteropsicografia – 60 Variações sobre a “Autopsicografia” de Fernando Pessoa (estes dois saídos em 1985 em edição quase sigilosa e não comercial). Eis, portanto, finalmente reposto em circulação José Sesinando, nome que soará familiar a quem já sabia ler nos anos 80 do século passado, altura em que o autor assinou, na última página do JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, uma coluna memorável (daí que nos lembremos dela) intitulada "Escrituralismo". Diz o prefaciador que este livro é “um exercício vasto e diverso da destruição da conversa, com todas as vantagens da destruição e nenhuma das desvantagens da conversa”. Sesinar e conversar seriam também incompatíveis, portanto. Mas nós, talvez por estarmos sentados a uma mesa rectangular, lá conseguimos fazer a circulatura do quadrículo.
Ser original é bom e recomenda-se? E qual é, afinal, a originalidade da arte sesinandina? Responde Abel Barros Baptista: “Eu não sei se ser original é bom. Ocorrem-me duas ou três pessoas que são originais e que não têm piada nenhuma. A originalidade de Sesinando consiste em fazer literatura com base numa unidade mínima que é o trocadilho. Houve alguém que escreveu, a propósito deste livro, que o melhor humor não estava sempre no trocadilho. É a mesma coisa que dizer que as melhores cenouras não são as do Continente ou qualquer coisa do género. Neste livro, o ensaio Acerca de música é uma peça originalíssima e não há nele uma única frase que não seja construída com base no trocadilho. Depois, há a parte dos dois livros pessoanos, que são de pleno direito exercícios de arte poética. Sesinando é um poeta que consegue ser original através da repetição obsessiva.”
Luísa Costa Gomes acrescenta: “Nós, praticamente, não temos na nossa história uma tradição de literatura humorística. Foi o que nos atraiu no Sesinando, que é de cultura inglesa. É importante dizê-lo, porque a nossa cultura, até 1974, foi de matriz francesa. José Sesinando é, de certa maneira, um humorista antes do seu tempo. Não sei se o tempo de Sesinando será este, mas ele é e será sempre um escritor singular. Na cultura do seu tempo foi singular. Foi, por exemplo o nosso único poeta de limericks, e nós não temos essa tradição. O seu talento e a sua cultura literária são trabalhados e postos ao serviço do nonsense, que é uma coisa que nós também não temos. Ele introduziu uma série de parâmetros na literatura, na literatura como arte, que não existiam na cultura portuguesa e que continuam a existir pouco. Porque os humoristas, salvo os presentes [risos, evidentemente], normalmente são incultos e ignorantes e gabam-se da sua incultura e da sua ignorância literária. Alguém que escreva bem, que seja culto e que, ao mesmo tempo, escreva literatura de humor continua a não ser uma coisa muito comum. Podemos olhar para Sesinando como um fundador de uma corrente não existente.”
Ricardo Araújo Pereira, que teve “a sorte de ficar com boa parte da biblioteca de José Sesinando”, através da qual é possível “fazer uma espécie de arqueologia dos interesses e da formação” do autor, comenta: “Há uma entrada no Diário de José Gomes Ferreira, aí por volta de 1966, quando o país está todo muito entusiasmado com a carreira de Portugal no Mundial [de futebol], em que ele diz: O Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema sobre o Pelé. Se eu escrevesse um poema sobre o Eusébio toda a gente me chamava maluco. Curiosamente, na entrada seguinte, que é sobre uma reunião de escritores, a Lygia Fagundes Telles diz: Vocês, portugueses, são tão sérios, tão circunspectos. José Sesinando é um autor erudito que se interessa ostensivamente pelas questões da comédia. Essa talvez seja uma primeira originalidade. A segunda talvez decorra dessa e é o facto de a linguagem ser um interesse central nele. É possível que esse seja outro modo de ser original. Os ingleses têm a expressão 'He knows too much for his own good'. É essa sensação que a gente tem quando lê o Sesinando, a sensação divertida de acharmos que ele sabe português de mais para o seu próprio bem. E, na verdade, é isso que acontece. Eu fui apresentado ao Sesinando pela última página do JL. Havia lá frases do género: ‘Quem não tem um Rolls, rói-se’. Todos nós sabemos, mesmo quando não sabemos que sabemos, que a segunda palavra da marca Rolls-Royce, em português, também é uma forma do verbo roer, mas o que as pessoas normais fazem é passar por cima disso. O que uma pessoa como o Sesinando faz é, precisamente, deter-se nisso.”
Trata-se, como diz Luísa Costa Gomes, de “falar o português como se fosse uma língua estrangeira. É uma questão de estar desperto em relação à linguagem e caçar todo esse tipo de coisas. Depois é uma questão de talento, porque escrever não é coleccionar. Os textos de Sesinando são muito bem escritos porque têm ideias extraordinárias, que não são só humorísticas.”
O trocadilho tem as costas largas. Não tem também má reputação? Não é frequentemente objecto de preconceitos vários? “Quando dizemos trocadilho, as pessoas franzem o sobrolho, mas se dissermos calembour já fica mais passável. Par un calembour j’ais perdue ma vie… Fica melhor, não é?”, ironiza Abel Barros Baptista. “O trocadilho é um fenómeno de linguagem em que nós vemos acontecer ao mesmo tempo o que se espera e o que não se espera. A percepção é simultânea. Por isso é que muitas pessoas não apreciam o trocadilho, porque exige muito. Sesinando tinha uma facilidade enorme de fazer trocadilhos a propósito de tudo e conseguia mostrar como é que a própria linguagem está organizada para nos surpreender a qualquer momento, sendo que essa surpresa é um efeito positivo. Muitas vezes franzimos o sobrolho porque achamos o trocadilho uma coisa menor, mas não é. Comparem com o aforismo. Há muitos aforismos de grande prestígio que são muito mais ininteligíveis do que os trocadilhos de José Sesinando.” Lembra Luísa Costa Gomes: “Há um pequeno poema que acaba a dizer: ‘tudo o que se faz no planalto / se faz mais alto.’ É uma ideia extraordinária. De todos os pontos de vista. Não é mera coisa fonética, de impulso.”
A propósito, podemos dizer aos nossos leitores (e aos leitores alheios, já agora) que o referido poema é tão pequeno que chega a ser mais curto do que o título respectivo: “Meditação invejosa de quem, em vez de ir para a serra da Estrela, ficou nas lezírias de Santo António da Caparica”. Podíamos ainda dizer outras coisas, mas não viriam a propósito. Ouçamos, antes, Abel Barros Baptista: “A má fama do trocadilho é justificada, porque o trocadilho chateia. As pessoas que são propensas ao trocadilho, não se consegue conversar com elas. O trocadilho tem um efeito fantástico: do ponto de vista filosófico é muito interessante, mas do ponto de vista da conversação não é, porque transforma aquilo que as pessoas dizem no contrário do que elas queriam dizer.” Luísa Costa Gomes concorda: “É um conversation-stopper. Não encoraja a comunicação.”
Abel Barros Baptista, de novo: “Eu costumo citar um exemplo de um escritor americano que tem uma cena clássica fantástica para explicar isso. Um professor chega a uma universidade e o chefe do departamento convida-o para ir jantar a casa dele. Ele vai e a certa altura aparece [atrasada] a mulher do anfitrião e diz: ‘Desculpe, fui à equitação, ando muito a cavalo’. Sentou-se e perguntou: ‘O senhor monta?’ E ele diz: ‘Não, nunca experimentei.’ ‘Ah, então tem que experimentar um dia, comigo.’ E ele diz: ‘É capaz de ser melhor experimentar consigo antes de tentar com um cavalo.’ [gargalhada geral] Este é um género de intervenção que transforma o que a senhora diz numa coisa completamente diferente do que ela queria dizer, ao mesmo tempo que sublinha a diferença em relação ao que ela queria dizer. A humilhação não podia ser maior. Cria-se uma situação de grosseria desagradável e que, do ponto de vista conversacional, não é recomendável. Há também uma tradição antiga do dito de espírito, que os franceses faziam muito, e faziam-no com arte, a guerra de palavras, o duelo de palavras. Transpor isto para a literatura é uma grande ousadia. Por que é que uma pessoa há-de pôr em literatura formas linguísticas que são consideradas contra a conversação, contra a inteligência, contra a polidez social, que são agressivas ou que podem ser desagradáveis? A razão é simples: é porque são formas e a literatura trabalha com isso. O trocadilho não tem distinção estrutural do aforismo, que também interrompe a conversa.”
E enquanto nós tentávamos que Ricardo Araújo Pereira dissesse mais alguma coisa, Abel Barros Baptista prosseguiu: “Mesmo hoje, as pessoas que se dedicam à literatura, quando têm uma propensão para o humor, têm que compensar com qualquer coisa séria. Ou escrevem um romance sobre um místico, como é o caso da Luísa [Costa Gomes] ou escrevem uns ensaios densos que ninguém consegue ler. Quando um escritor só tem piadas é como se não fosse escritor. A audácia de José Sesinando foi ele ter conseguido fazer uma obra, que é uma obra extraordinária, absolutamente invulgar, sem ter a pretensão de dizer: Olhem que isto aqui é uma coisa inteligentíssima, vocês não conseguem perceber porque são basicamente uns mentecaptos. Não, ele, simplesmente, fez o livro, gozando com o próprio livro, escarnecendo do próprio livro.”
O humor (ou pelo menos algumas das suas modalidades, como a sátira) vive muito da circunstância. A obra de José Sesinando resistiu bem ao tempo (“Sesinando não é satírico, não é moralista, não é preconceituoso”, interpõe Abel Barros Baptista) Estará isso relacionado com o facto de ele trabalhar, substancialmente, sobre a própria linguagem? “Essa pergunta tem de ser respondida pelo Ricardo [Araújo Pereira], que é o nosso único escritor de humor”, disse imediatamente Luísa Costa Gomes, como que vindo em nosso auxílio.
Seguiu-se o diálogo que reproduzimos na íntegra, aproveitando para ir dar uma ajuda a um dos “grupos de repouso” que estão já catando inéditos nas “caixas de fósforos” legadas por José Sesinando à posteridade (nem toda a gente tem arcas, é o que é):
R. A. P. – Tem razão na sua observação. O trabalho sobre a linguagem provavelmente resiste mais no tempo. Por exemplo, a gente hoje lê uma comédia do Aristófanes e há muitas partes às quais não achamos graça porque se perdeu a referência. Quem é aquela pessoa de quem ele está a falar? Mas continua a ser divertida a ideia de mulheres fazerem uma greve de sexo para fazer com que a guerra pare, ou que um pai queira pôr o filho a aprender a discutir para se livrar de dívidas.
A. B. B. – Ainda relativamente ao trocadilho e ao humor depender das circunstâncias. É mais radical do que isso. O humor é sempre um acontecimento. Não podemos ter um workshop de trocadilhos, por exemplo, porque não há regras para fazer um trocadilho, que também é sempre um acontecimento. No Sesinando, o acontecimento é linguístico, é o facto de aquilo ser dito. O exemplo mais maravilhoso de todos, e que é a obra-prima do trocadilho em qualquer língua, é: “A Vénus de Milo não tem mãos a medir.” Isto é rigorosamente verdade do ponto de vista lógico, mas o que é que uma pessoa está a dizer quando diz isto? É completamente literal, mas é infalível. Não há ninguém que não se ria. Já experimentei.
R. A. P. – A gente lê o texto sobre música e a imagem que nos ocorre é que o texto está a ser dito por um maestro em cuecas. É um maestro impecável em tudo, excepto no facto de estar em cuecas. Essa ideia, provavelmente, é perene, no sentido em que a gente acha graça hoje à ideia de um maestro em cuecas e achará daqui a 50 anos. Talvez seja isso, e o facto de a matéria-prima ser a linguagem e não um determinado costume das pessoas. Há um livro chamado Philogelos que reúne as mais antigas histórias humorísticas, histórias com milénios. A uma boa parte dessas histórias, a gente não lhes acha graça. Muitas são sobre eunucos, achavam muita graça a eunucos. Como a gente agora não se cruza com eunucos assim com tanta frequência, não acha tanta graça. Portanto, concentrar-se na linguagem provavelmente tem a vantagem de manter a comédia actual.
Vemo-nos forçados a fazer aqui outra pergunta, que é para isso que nos pagam (embora mal): a que se deve a histórica desvalorização do humor na literatura portuguesa? “Se fosse só a comédia, eu não tinha problema nenhum com isso” – responde Luísa Costa Gomes: “Mas, em geral, a cultura portuguesa é anti-intelectualista. Os portugueses são anti-intelectuais. Quando vêem um intelectual fazem como o outro [um senhor de cujo nome não nos queremos lembrar] e puxam da pistola.” Abel Barros Baptista vai mais longe (fórmula muito usada em jornalismo, e ainda bem, pois é sempre conveniente ir mais longe, sempre se passeia mais): “Há um humor que é culto, inteligente, e que obriga as pessoas a pensar, e há outro que é grosseiro. Não há como fugir disso. O texto mais lamentável sobre o riso foi o Eça que o escreveu, um artigo chamado ‘A decadência do riso’, em que diz que só o homem negro em África ainda ri. É aquela ideia de que a civilização matou o riso, estamos tão sofisticados que já não nos rimos, porque é preciso um certo lado primitivo…” E Ricardo Araújo Pereira diz que Eça diz “que já não se lembra de uma verdadeira gargalhada desde a infância.” Remata Abel Barros Baptista: “A verdade é que a sofisticação intelectual leva a gargalhadas maravilhosas. É o caso de José Sesinando.”
Por outro lado, dissemos nós, assim como quem quer contribuir para as despesas da conversa sem gastar muito dinheiro, não é verdade que existe hoje uma predisposição tão desregrada para o riso que não é incomum ouvir gargalhar durante a representação de uma tragédia (sem que possamos atribuir isso, sempre, à qualidade dos actores ou da encenação)? Abel Barros Baptista: “Isso é o que diz o Jerry Lewis numa conversa com o Seinfeld. Aqueles comediantes de que ele gosta são os bons. E os maus? Esses, ele queria matá-los a todos. E matava os pais deles! Porque o grande problema do riso é que não é defensável. Um idiota diz uma grosseria, as pessoas riem-se e pronto. Não é possível defender o riso em abstracto. Rir é sempre bom? Não! Há pessoas que se põem a rir porque estão nervosas, porque têm prisão de ventre, porque sofrem de qualquer coisa. Uma pessoa não pode rir-se quando ouve num comboio, como me aconteceu a mim, uma senhora ao telefone a dizer: ‘Olha, é no recto, a dois centímetros do ânus, mas tem tudo para correr bem!’ Uma tragédia pode ser má, mas nós dizemos: é o sentido trágico da vida, a morte calha a todos, e não sei quê. Quando uma comédia é má, é toda a tradição da comédia que é ofendida. Os verdadeiros comediantes deviam manifestar-se contra aquilo. Que é o que Jerry Lewis diz. Quando o humor é mau, quem aprecia o riso fica num fúria terrível porque não tem nenhuma arma segura para defender o humor daqueles que o usam. Porque é muito fácil fazer uma pessoa rir.”
E Ricardo Araújo Pereira concede: “A objecção que fez está certa, mas aquilo que estava a objectar também está correcto. É uma coisa que acontece muito quando se fala de comédia: duas pessoas estão a dizer o contrário do que a outra disse e têm as duas razão. De facto, a gente sente que hoje há uma compulsão para uma certa leveza, para o riso. Ter sentido de humor é considerado uma qualidade, ninguém quer que lhe digam que não tem sentido de humor, é fundamental. O riso tem um valor…” Irrompe Luísa Costa Gomes: “Um valor de mercado.” Sim, confirma Ricardo Araújo Pereira: “Um valor de mercado. É possível humoristas alimentarem as suas filhas não fazendo outra coisa e, portanto, tudo o que disse está correcto. Por outro lado, eu também acho que está correcto que o riso continue, em certa medida, a ter má reputação. Não sei se é por ser um fenómeno do corpo, se é porque estraga uma certa solenidade. Provavelmente, hoje ainda, não encontramos em muitos escritores portugueses isso que vemos no Sesinando, essa inclinação para ser faceto, digamos assim. Noutra entrada do Diário, José Gomes Ferreira fica surpreendidíssimo porque o Vergílio Ferreira está a contar anedotas e a rir-se muito… Há um momento num livro muito curto de Ian McEwan que se chama Na Praia de Chesil, quando um casal em noite de núpcias, um casal com uma educação muito religiosa, chega a um hotel. Ela vai à casa de banho, ele senta-se em cima da cama. E a cama range. E ele põe-se a imaginar a quantidade de jovens que ao longo do tempo fizeram ranger aquela cama e esse pensamento dá-lhe vontade de rir. E a personagem diz: Tenho de afastar imediatamente este pensamento da cabeça porque o riso é inimigo do romance. Provavelmente, porque o romance precisa também de uma certa solenidade que o riso estraga.”
Luísa Costa Gomes – O romance precisa da ilusão.
Ricardo Araújo Pereira – Ora, aí está! Eu acho que essa é a questão. O riso e o humor são, precisamente, o oposto da ilusão.
Pareceu-nos uma bela maneira de dar a entrevista por finda. Mas o gravador ainda registou uma fala de Luísa Costa Gomes que nós, por escrupuloso respeito pela verdade humorística, não quisemos cortar e colar noutra parte do texto (os leitores sendo no entanto livres de o fazerem): “Nós estamos sempre a deixar cair o bebé. O amor e o sexo vivem dessas ilusões, dessas codificações culturais muito ténues. O humor faz-nos ver a situação em que estamos, e nós não gostamos de ver a situação em que estamos. Porque é incontrolável, normalmente.”