Fogo de Monchique: pelo direito à indignação

Ninguém morreu em Monchique. Mas ele não deixa de ser o maior incêndio da Europa deste ano, em que parecem ostensivos os sinais de negligência quanto aos alertas de especialistas e de erros e falhas sérias na estratégia de combate.

1. A propósito do incêndio de Monchique veio ao de cima um velho vício da política portuguesa, muito conveniente ao poder instalado, normalmente bem disfarçado e embrulhado num discurso “moral” ou “politicamente correcto”. Digo “politicamente correcto” porque esse vício enraizado beneficia quase sempre (mas nem sempre só) a esquerda. O vício consiste nisto e apenas nisto: na presença de uma ocorrência trágica, deve calar-se qualquer crítica ou indicação de responsabilidade, por respeito às vítimas e aos prejudicados. Fazendo jus ao pragmatismo do Marquês de Pombal, diante de uma tragédia e de falhas aparentes da resposta pública, só se pode “enterrar os mortos” e “cuidar dos vivos”. Ninguém pode criticar, ninguém pode levantar dúvidas, ninguém pode indicar eventuais responsabilidades. Fazer perguntas, indiciar falhas, detectar possíveis negligências, erros ou incompetências é automaticamente relegado para o domínio do “moralmente repelente”. E se, por hipótese, o juízo crítico for suscitado por um político, então a reacção é exponenciada para o patamar do conhecido jargão “está a querer tirar dividendos políticos da tragédia alheia!”, “não tem pudor nem respeito!”. E com isto se dá continuidade a uma cultura de “respeitinho”, de alheamento e de branqueamento, com origens bem identificadas nas décadas da ditadura. Ou, para usar as palavras de José Gil, alimenta-se uma cultura de “não inscrição”. Tudo aconteceu, mas – por entre luto, inquéritos intermináveis e propaganda governamental – é como se afinal nada tivesse acontecido.

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1. A propósito do incêndio de Monchique veio ao de cima um velho vício da política portuguesa, muito conveniente ao poder instalado, normalmente bem disfarçado e embrulhado num discurso “moral” ou “politicamente correcto”. Digo “politicamente correcto” porque esse vício enraizado beneficia quase sempre (mas nem sempre só) a esquerda. O vício consiste nisto e apenas nisto: na presença de uma ocorrência trágica, deve calar-se qualquer crítica ou indicação de responsabilidade, por respeito às vítimas e aos prejudicados. Fazendo jus ao pragmatismo do Marquês de Pombal, diante de uma tragédia e de falhas aparentes da resposta pública, só se pode “enterrar os mortos” e “cuidar dos vivos”. Ninguém pode criticar, ninguém pode levantar dúvidas, ninguém pode indicar eventuais responsabilidades. Fazer perguntas, indiciar falhas, detectar possíveis negligências, erros ou incompetências é automaticamente relegado para o domínio do “moralmente repelente”. E se, por hipótese, o juízo crítico for suscitado por um político, então a reacção é exponenciada para o patamar do conhecido jargão “está a querer tirar dividendos políticos da tragédia alheia!”, “não tem pudor nem respeito!”. E com isto se dá continuidade a uma cultura de “respeitinho”, de alheamento e de branqueamento, com origens bem identificadas nas décadas da ditadura. Ou, para usar as palavras de José Gil, alimenta-se uma cultura de “não inscrição”. Tudo aconteceu, mas – por entre luto, inquéritos intermináveis e propaganda governamental – é como se afinal nada tivesse acontecido.

2. Mais uma vez, diante do desastre de Monchique e da ostensiva incapacidade de resposta do Governo, foram múltiplos os condicionamentos políticos, mediáticos e institucionais para atrofiar o legítimo direito de indignação, de denúncia e de escrutínio. O condicionamento é tal que leva muitas vozes da esfera pública e os políticos em particular a um mecanismo de “auto-censura”. Cabe a quem está na esfera pública (e também aos políticos) romper esse tecto de censura, usando naturalmente de prudência e de oportunidade, mas não cedendo ao condicionamento psicológico e pseudo-moral. Este mecanismo de controlo e contenção da função de escrutínio que cabe à sociedade civil, à opinião pública e às oposições tinha já sido particularmente claro no período que se seguiu aos fogos de Pedrógão Grande. O choque era imenso e não era compatível com “refregas” políticas, dizia-se à exaustão. O Primeiro-Ministro foi de férias, o que reforçava a normalidade. A Ministra titular não se demitia, o que aparentava a inexistência de responsabilidade. Todo e qualquer actor, especialmente político, que se atrevesse a questionar as mudanças da protecção civil, as cativações de meios, a negligência da primeira resposta, era imediatamente “fichado” e “rotulado”. O Presidente da República, verdade seja dita, nunca deixou cair o tema ao longo de todo esse Verão de 2017, usando de sensibilidade e sentido das proporções, mas evitando o esquecimento, com alertas cirúrgicos e claros. É verdade que era decerta o único em posição de o fazer sem que houvesse uma retaliação “condicionadora”. Lembro-me, aliás, das acusações e das qualificações com que foi brindada uma intervenção minha na Universidade de Verão do PSD, onde justamente se perguntava pela correlação entre os cortes e mudanças de chefias na protecção civil e a tragédia de Pedrógão. Como me lembro das reacções à minha insistência na necessidade óbvia de demissão da Ministra. Infelizmente, o manto de silêncio e a soberba e arrogância do Governo não contribuíram para evitar uma repetição da tragédia humana a 15 de Outubro de 2017. Nos dias subsequentes, recorde-se, o Governo ainda ensaiou a mesma táctica, só alterada por uma drástica e já absolutamente inevitável intervenção do Presidente.

3. Basta olhar para sociedades políticas tão diferentes como a britânica e a grega, para logo nos darmos conta de como a cultura de escrutínio e denúncia é radicalmente diversa. Poucos dias antes da tragédia de Pedrógão, Londres assistiu ao incêndio fatal da Torre Grenfell, uma torre residencial, de que resultaram mais de 70 mortos. Logo nos dias seguintes, os responsáveis políticos, dos mais variados quadrantes, os meios de comunicação social e a sociedade civil em geral foram capazes não só de evidenciar a sua indignação, mas de iniciar uma enorme operação de escrutínio. A ninguém ocorreu que o apuramento de causas e responsabilidades e a sua discussão fossem um desrespeito pelas vítimas. Ao contrário, esse apuramento é justamente imposto pelo respeito que elas e as suas famílias merecem. Na Grécia, num caso com muito mais paralelos com os nossos incêndios florestais, a opinião pública em geral, a imprensa e as forças políticas não hesitaram em denunciar as falhas (de prevenção e de resposta), em exigir responsabilidades, em confrontar directamente o Governo. Ninguém acha ali que isso seja um inaceitável aproveitamento político. Se as sociedades livres e democráticas não existem para o exercício do controlo sobre os responsáveis políticos, administrativos e operacionais, existem para quê?

4. Ninguém morreu em Monchique. Mas ele não deixa de ser o maior incêndio da Europa deste ano, em que parecem ostensivos os sinais de negligência quanto aos alertas de especialistas e de erros e falhas sérias na estratégia de combate. Indignar-se com isso, fazer denúncias e perguntas não é baixa política nem demagogia: é exercício de escrutínio, de cidadania, é imperativo do mandato político. É absolutamente reprovável, uma vez mais, a soberba e a arrogância do Primeiro-Ministro e do seu responsável pela Administração Interna. Também elas se destinam a criar “narrativas” de sucesso e de boa governação. Confirma-se pois a ideia de que o Governo, ao fazer as suas contas, trocou um Estado funcional por um Estado meramente salarial. Nos fogos, na saúde, na educação, no transporte público (ferroviário), na segurança rodoviária.

SIM e NÃO

SIM 

João Soares da Silva. Um dos grandes modernizadores da advocacia portuguesa. Inteligente, culto, irónico, acutilante, argumentava como poucos. A política era uma paixão latente.

NÃO 

Pedro Marques. O Ministro não fala, mas a situação da CP é surreal. De um país com comboios atrasados vamos em breve passar a ser um país atrasado sem comboios.