A democracia não se defende sozinha
As nossas democracias nasceram contra o fascismo e essa história faz parte da sua razão de ser.
Para os deslembrados, a Europa teve uma coisa na primeira metade do século passado chamada fascismo. Numa dúzia de anos, de 1921 a 1933, da Itália à Alemanha passando por Portugal, colapsaram a maioria das democracias parlamentares europeias, com os seus estados de direito e as liberdades e direitos fundamentais dos seus cidadãos. Na dúzia de anos a seguir, de 1933 a 1945, colapsou tudo: a decência humana e a própria civilização, no continente que se julgava o mais civilizado de todos. De 1945 a 1957, mais uma dúzia de anos, e a Europa encontrou-se em escombros e, o que é mais, espartilhada entre duas superpotências, uma das quais dominada pelo totalitarismo estalinista. Depois de mais de uma geração perdida, a Europa redemocratizada começou a unificar-se e essa é a história que nos traz até hoje. A Europa do pós-guerra nasceu contra o fascismo e por isso não admira que o fascismo deteste o projeto europeu; é talvez a corrente política que tem verdadeiramente razões para isso, e ainda bem.
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Para os deslembrados, a Europa teve uma coisa na primeira metade do século passado chamada fascismo. Numa dúzia de anos, de 1921 a 1933, da Itália à Alemanha passando por Portugal, colapsaram a maioria das democracias parlamentares europeias, com os seus estados de direito e as liberdades e direitos fundamentais dos seus cidadãos. Na dúzia de anos a seguir, de 1933 a 1945, colapsou tudo: a decência humana e a própria civilização, no continente que se julgava o mais civilizado de todos. De 1945 a 1957, mais uma dúzia de anos, e a Europa encontrou-se em escombros e, o que é mais, espartilhada entre duas superpotências, uma das quais dominada pelo totalitarismo estalinista. Depois de mais de uma geração perdida, a Europa redemocratizada começou a unificar-se e essa é a história que nos traz até hoje. A Europa do pós-guerra nasceu contra o fascismo e por isso não admira que o fascismo deteste o projeto europeu; é talvez a corrente política que tem verdadeiramente razões para isso, e ainda bem.
Dada a dimensão da catástrofe moral e humana provocada pelo fascismo europeu, é natural que a sua impopularidade se tenha estendido para lá das imediatas gerações do pós-guerra, até que a memória coletiva se começasse a desvanecer. E por isso, se o tipo de políticos e políticas que fizeram o fascismo tiverem ambições de regressar ao poder, é previsível que o queiram fazer sob outro nome, outra aparência e outro estilo, ocultando a essência que permaneceu igual: o mesmo ódio ao outro, o mesmo culto da autoridade e a mesma vontade de poder. Acima de tudo, o fascismo europeu empregará a mesma estratégia de ontem: usar as ferramentas da democracia para destruir a democracia.
Não é por acaso que a constituição alemã proíbe a existência de partidos nazis ou que a Constituição da República Portuguesa contenha também uma proibição — ainda que pouco usada — contra a possibilidade de existência legal de organizações fascistas. É para não nos esquecermos de onde viemos. As nossas democracias nasceram contra o fascismo e essa história faz parte da sua razão de ser. Se nos esquecermos ou cansarmos desta história estaremos já a caminho da regressão. Ela é tão fundamental para as democracias europeias como a Declaração de Independência o é para a história dos EUA. Achar que o fascismo é só uma opção política como as outras seria o mesmo que os EUA acharem que reverter à monarquia britânica não significaria o fim do projeto americano ou Portugal achar que, depois de treze anos de guerra em África, ter ou não o anti-colonialismo e à autodeterminação dos povos na Constituição seria indiferente, porque já não teria nada a ver connosco. Os regimes e os países, tal como as pessoas, têm história. Se se esquecem de onde vieram, perdem-se.
Nada é mais inimigo da democracia do que a ideia de que ela é apenas um recipiente vazio a cujos valores podemos ser indiferentes porque, mesmo se deixado à mercê do acaso, produz sempre resultados aceitáveis. Não foi assim no passado, não é assim hoje. Se a democracia fosse só a expressão amoral da vontade da maioria acabaria por ser tão pouco sustentável, e tão auto-destrutiva, como o foi na Europa de entre-guerras. A democracia não é um recipiente sem conteúdo: para ela a tolerância tem de ser melhor do que a intolerância, a convivência mais desejada do que a exclusão, e o pluralismo não pode ser considerado senão moralmente superior ao absolutismo.
Acontece que nos encontramos hoje de novo na luta das nossas vidas pela democracia na Europa, luta essa que só é realista ganhar preservando o estado de direito democrático em cada um dos nossos países e construindo uma democracia à escala da UE. E acontece que há quem ache — na imprensa, na academia e na sociedade civil — que se pode normalizar os novos fascistas sem com isso arriscar a própria democracia. Grave erro. A democracia não se defende sozinha. A democracia defende-se com democratas que lhe conheçam a história e que não estejam dispostos a repetir os erros do passado. E entre todos os erros do passado, talvez sobretudo este: achar que que a democracia se pode salvar tolerando os intolerantes não é uma defesa da tolerância. É uma defesa da tolice.