Cabo Verde florido entre amores

Com Manhã Florida, o seu quinto disco, Nancy Vieira reaproxima-se das raízes musicais de Cabo Verde sem abandonar a universalidade sublimada em Lus. Leve e elegante como brisa fresca em terra ardente.

Foto
N’Krumah Lawson Daku

No texto que abria Lus, em 2007, Paulino Vieira chamava-lhe “princesa da voz de oiro”. E Nancy Vieira, em lugar de se perder na contemplação de tal título, preferiu continuar a dar-lhe razão com um trabalho paciente e sólido. Manhã Florida, o seu mais recente disco, levou mais tempo do que o necessário a ver a luz, porque já estava pronto desde 2016. Mas a espera (espinhos da edição) não lhe tirou fulgor. E se ela volta a nomes como Teófilo Chantre ou Mário Lúcio, grava pela primeira vez um autor da Boavista (Tiolino), canta um tema em francês (Les lendemains de Carnaval) e arrisca uma nova composição em seu nome, Porto inseguro (coisa boa). Isto além de gravar duas mornas clássicas, Mi sem bo amor, de Amândio Cabral e Vitorino Chantre (pai de Teófilo), e Mar di lua cheia, de Eugénio Tavares. O resultado é leve e elegante, dando força às raízes sem abandonar influências mais universais, de outras Áfricas ou do Brasil.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

No texto que abria Lus, em 2007, Paulino Vieira chamava-lhe “princesa da voz de oiro”. E Nancy Vieira, em lugar de se perder na contemplação de tal título, preferiu continuar a dar-lhe razão com um trabalho paciente e sólido. Manhã Florida, o seu mais recente disco, levou mais tempo do que o necessário a ver a luz, porque já estava pronto desde 2016. Mas a espera (espinhos da edição) não lhe tirou fulgor. E se ela volta a nomes como Teófilo Chantre ou Mário Lúcio, grava pela primeira vez um autor da Boavista (Tiolino), canta um tema em francês (Les lendemains de Carnaval) e arrisca uma nova composição em seu nome, Porto inseguro (coisa boa). Isto além de gravar duas mornas clássicas, Mi sem bo amor, de Amândio Cabral e Vitorino Chantre (pai de Teófilo), e Mar di lua cheia, de Eugénio Tavares. O resultado é leve e elegante, dando força às raízes sem abandonar influências mais universais, de outras Áfricas ou do Brasil.

“Houve um tempo que que estive um bocado ansiosa, mas tive outras coisas para fazer, muitos concertos, e o tempo foi passando”, diz Nancy Vieira ao Ípsilon para explicar por que não sofreu tanto com a espera. Ainda mais, porque o tempo de gravação “foi curto”, entre Cabo Verde e Paris. “O Bau gravou em Cabo Verde, o Teófilo gravou em Paris. Fizemos um trabalho prévio, com o Rolando Semedo. Da maqueta constavam mais temas, escolhemos onze e no caso do Mi sem bo amor, que abre o disco, foi muito espontânea a escolha. No fim de um dia de estúdio, estávamos mesmo a sair, já tínhamos desligado tudo, e o Teófilo disse-me: ‘conheces um tema que diz ‘nha coração é um jardim’? Disse-lhe que sim, que conhecia essa morna desde pequenina, na minha infância, cantada por uma cantora chamada Ima Costa (não sei se está viva). É uma morna lindíssima. Mas eu não sabia que era da autoria do pai dele [Vitorino Chantre] com o Amândio Cabral.” No dia seguinte, antes de recomeçarem a trabalhar nos temas que já tinham, arriscaram gravá-la. Foi a primeira música que gravaram nesse dia, e ficou registada à primeira. “Hão-de reparar que está numa tonalidade um pouco grave, baixa, porque a voz ainda estava adormecida. Mas assim ficou, ao primeiro take.”

Cantar Fé d’un fidju, de Tiolino (Adelino Baptista Livramento, que nasceu na Boavista, em João Galego) foi para Nancy uma estreia, com ligações à sua própria história e vida “A Boavista é a ilha das minhas raízes, a minha família é de lá. E é a primeira vez que gravo uma música de um compositor da Boavista, e cantada mais ou menos no crioulo de lá. Não sei falá-lo, mas tentei. Normalmente fala-se mais o 'sampadjudo' de São Vicente ou o 'badio' de Santiago. Este, que é um crioulo mais fechado, embora próximo do de São Vicente, do Barlavento, é o crioulo que eu ouço o meu pai falar.” E há a ilha em si, que muitos consideram o berço da morna. “É uma ilha muito turística, hoje cheia de hotéis e resorts, mas não se ouve falar muito dela. Tem uma grande representante, que é a Celina Pereira, que faz questão de falar, sempre que pode, da Boavista.”

Por Cesária, ao Sol

Nancy gravou ainda Lembrança, de Betu (“Eu já tenho cantado muitas canções dele, desde o primeiro disco”), Bela, de Kaká Barboza, Só um melodia, de António Pina Alves e Bocas di paiol, de Cesário Duarte, a par de Manhã florida, de Teófilo Chantre (responsável pela maioria dos arranjos no disco) e de Passion e Sunha dor, dois temas de Mário Lúcio, que a par da sua carreira a solo tem composto muito para outras vozes cabo-verdianas. “Ele já me mandou directamente canções, que eu ainda não gravei”, diz Nancy. “Ele tem, na verdade, um ‘banco’ de canções na Lusáfrica e confia que as entreguem bem. Meio a brincar meio a sério, já lhe disse que dia farei um disco intitulado ‘Nancy Vieira canta Mário Lúcio’, porque ele tem canções muito bonitas.”

A Manhã Florida do disco é uma manhã de amores. Que começa em Mi sem bo amor, dizendo “Nha coração é um jardim/ E bô sorriso é flôr” (o teu coração é um jardim e o teu sorriso uma flor) e fecha, em Sunha dor, com estes versos de Mário Lúcio: “Amor é prison ma també é liberdade/ Cada un naci intero, mesmo ki kel otu ê si metade” (amor é prisão mas também liberdade, cada um nasce inteiro mesmo se outro é a sua metade).

O disco, apresentado em Março nas plataformas digitais e só depois nas lojas, só será apresentado ao vivo em Cabo Verde e em Portugal depois do Verão. Mas a digressão já começou, em Abril, e em palcos inusitados: Lituânia, Letónia e Rússia (Moscovo, São Petersburgo, Nizhni-Novgorod e Volvogrado). E em todos eles teve boas recepções: “A reacção é muito boa. E no fim de cada concerto vêm dizer-me: ‘estamos à espera que voltes’. E compram os discos.’ Eu explico mais ou menos, no meu inglês possível, as letras, o que é que cada canção quer dizer. Já na Rússia fui aconselhada a falar em português, porque tinha um intérprete que ia explicando. Em inglês não entendiam.”

Nancy, que no Festival Sol da Caparica, em meados de Agosto, vai participar numa homenagem colectiva a Cesária Évora, junto com Elida Almeida, Lura, Lucibela e Teófilo Chantre (homenagem que já a levou recentemente à Turquia e à Alemanha), olha para este seu novo disco com orgulho: “É este o bom caminho. A música está aqui feita e cantada como eu cada vez gosto mais de fazer. Hoje, os jovens participam em concursos destemidamente e com ânsia, mas eu comecei muito a medo, foi tudo muito devagar. Acompanhei um amigo a um concurso, fui desafiada e aceitei. Depois fui contornando a timidez a ganhando gosto em estar em palco e em gravar. Hoje já me sinto confortável, até para compor músicas.”