Amamos a vida quando podemos
A ocupação israelita está a enfrentar uma população que ama a vida, representada por uma menina com cabelos dourados aos caracóis e um gelado na mão.
Uma das fotografias icónicas da memória palestiniana da Primeira Intifada é de uma mulher de saia travada e cachecol amarelo. A mulher descalça carrega os seus sapatos de saltos altos, igualmente amarelos, numa mão, enquanto lança uma pedra simbólica contra a ocupação com a outra. Nem a saia nem os saltos altos lhe travam a resistência, nem a resistência lhe impede de saborear os pequenos prazeres da vida quando pode. Lança o corpo, com elegância, contra a ocupação, para que a luta se torne numa espécie de dança. Talvez por isso esta foto tenha sido utilizada para inspirar o cartaz do Festival de Dança Contemporânea em Ramallah do ano passado. E sim, este tipo de festivais de dança existe numa terra ocupada, tal como existe um festival de cinema em Gaza, no meio dos escombros, entre muitos outros festivais culturais na Palestina, porque, como diz o poeta Mahmoud Darwish, “Também nós amamos a vida, quando podemos”.
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Uma das fotografias icónicas da memória palestiniana da Primeira Intifada é de uma mulher de saia travada e cachecol amarelo. A mulher descalça carrega os seus sapatos de saltos altos, igualmente amarelos, numa mão, enquanto lança uma pedra simbólica contra a ocupação com a outra. Nem a saia nem os saltos altos lhe travam a resistência, nem a resistência lhe impede de saborear os pequenos prazeres da vida quando pode. Lança o corpo, com elegância, contra a ocupação, para que a luta se torne numa espécie de dança. Talvez por isso esta foto tenha sido utilizada para inspirar o cartaz do Festival de Dança Contemporânea em Ramallah do ano passado. E sim, este tipo de festivais de dança existe numa terra ocupada, tal como existe um festival de cinema em Gaza, no meio dos escombros, entre muitos outros festivais culturais na Palestina, porque, como diz o poeta Mahmoud Darwish, “Também nós amamos a vida, quando podemos”.
Mas nem sempre podemos.
A menina Ahed Tamimi, cuja história já é conhecida por muitas pessoas, foi há poucos dias libertada das prisões israelitas, depois de ter sido aprisionada por ter esbofeteado um soldado que estava a disparar contra os habitantes da sua vila a partir da sua casa. O mesmo soldado tinha anteriormente atingido o seu primo com uma bala na cara. A bofetada foi filmada e divulgada pela sua mãe, e causou “indignação” na sociedade israelita.
A Lei do Estado-Nação aprovada no Knesset israelita há poucas semanas, que oficializa o apartheid israelita, pouco indignou a sociedade israelita, mas uma bofetada merecida que uma menina de caracóis dourados deu a um soldado mereceu um desejo do ministro da Educação israelita de Ahed “terminar a sua vida na prisão”. Com 16 anos então, foi detida na sua casa a meio da noite, foi interrogada por dois homens, que para além de ameaçá-la, a ela e aos seus familiares, assediaram-na, comentando o seu corpo de pele branca e olhos azuis. Ahed estava sozinha sem pais, sem advogados, nem sequer na presença de uma mulher soldada. Ahed passou oito meses nas prisões israelitas antes de ser libertada, deixando ainda para trás cinco meninas (entre os cerca de 350 menores actualmente nas prisões israelitas). Todavia, apesar deste pesadelo que a forçou a tornar-se numa adulta prematura, Ahed resiste e insiste em voltar a ser criança quando pode. A primeira coisa que fez quando saiu da prisão foi comer um gelado. A resiliência em viver os prazeres da sua idade é algo que ninguém lhe pode tirar, porque Ahed ama a vida quando pode.
Quando Ahed foi questionada sobre aquilo que a prisão lhe ensinou, respondeu: “A prisão ensinou-me amar a vida.” Mas não foi a única coisa que aprendeu na prisão, pois acabou o último ano da escola durante o período de cativeiro. Dentro da prisão, ao lado de outras mulheres palestinianas, também estudou textos jurídicos e decidiu formar-se em Direito Internacional. E porque ama a vida apenas quando pode, e nem sempre a ocupação deixa, abdicou do seu sonho de ser futebolista. Isto fica para uma outra vida, uma vida em que uma menor palestiniana não necessita de saber as leis internacionais.
Amando a vida, Ahed Tamimi acabou com vários mitos israelitas que desumanizam as palestinianas e que lhes molduram a imagem de terroristas ou vítimas. De repente, o “inimigo” que Israel tenta sempre criar é afinal uma criança com cabelos loiros soltos, sem armas na mão (sem ser um gelado quando pode), enfrentada por um soldado poderoso. Um artigo do jornalista israelita Gideon Levy, que foi escrito na altura do seu aprisionamento, afirma que a menina da vila Nabi Saleh conseguiu acabar com um outro mito israelita, o mito de masculinidade. Ahed acabou com a demonstração de machismo e com a manifestação da testosterona israelita, mostrando que um soldado de um dos exércitos mais poderosos do mundo é vencível por uma menina que afirma que a Palestina é livre e rebelde, tal como os seus cabelos. Ahed mostrou ao mundo quem é o forte e quem é o fraco neste conflito, e não é o soldado que invade a casa de outros, armado da cabeça aos pés, mas sim uma menina de cabelos aos caracóis, sem armas mas com razão. Uma menina que defende a sua casa com o seu amor pela vida. Amando a vida, Ahed jamais será vencida.
A ocupação israelita está a enfrentar uma população que ama a vida, representada por uma menina com cabelos dourados aos caracóis e um gelado na mão. Apesar da destruição, da expulsão, do aprisionamento e da morte, a resiliência no amor para a vida que o povo palestiniano tem talvez seja a sua arma mais forte. É a arma que mais perturba o seu ocupante. Um ocupante que é enfrentado ora com uma saia travada, ora com um gelado na mão e ora com uma dança ao ritmo de um poema: “Também nós amamos a vida, quando podemos.”