O negócio do vinho é feito a céu aberto, mas os preços são de fábrica
Pensar que o vinho, ou as batatas, ou a carne, ou o leite são produzidos sempre da mesma maneira e com custos mais ou menos certos, como numa fábrica, não nos ajuda. Quanto menos quisermos pagar, pior beberemos e comeremos. Não há milagres.
Você é o que compra vinho nas garrafeiras, nos supermercados, nos restaurantes? Um entre tantos que vão alimentando este negócio secular, cada vez mais tecnológico e impessoal mas, ainda assim, fascinante? Então permita-me que lhe fale em nome de todos aqueles que, ano após ano, se desdobram em trabalhos e rezas para que o vinho chegue até si.
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Você é o que compra vinho nas garrafeiras, nos supermercados, nos restaurantes? Um entre tantos que vão alimentando este negócio secular, cada vez mais tecnológico e impessoal mas, ainda assim, fascinante? Então permita-me que lhe fale em nome de todos aqueles que, ano após ano, se desdobram em trabalhos e rezas para que o vinho chegue até si.
Falo em vinho, mas podia falar de qualquer outro bem alimentar. Hoje, podemos comprar tudo num qualquer supermercado, mas os alimentos não são produzidos ali, como pensam algumas crianças citadinas. Continuam a vir do campo, de diferentes lugares e de produtores cujo nome e vida passam por nós com a mesma insignificância do que nos é totalmente distante e alheio.
Há dias vi na televisão uma produtora de gado da Austrália destroçada com a seca que está a matar os seus animais. Não pedia subsídios, nem a intervenção do Estado. Lamentava-se apenas da sua condição de empresária que depende dos humores da natureza. “As secas são como o cancro, comem-nos vivos. Às vezes sinto-me um pouco negligenciada. As pessoas da cidade não imaginam o que custa colocar comida nas prateleiras. Para essas pessoas [da cidade], uma cheia ou um engarrafamento podem ser um problema, mas se tiverem água e comida nas prateleiras está tudo bem. Para nós [produtores de gado], a única maneira de a vida ser melhor é Deus enviar-nos chuva.”
Passou-se na Austrália, mas vale para qualquer lugar onde se faça agricultura. Vale, por exemplo, para todos aqueles que, por cá, vivem das uvas e do vinho. É literalmente um negócio a céu aberto. Para ser bom, é necessário que o tempo se comporte de forma mais ou menos previsível e ter também muita sorte. Estou a lembrar-me dos produtores do Dão (e também do Douro) que no ano passado, apesar de terem as vinhas limpas e bem tratadas, foram vítimas dos incêndios florestais. Alguns incêndios só terminaram quando chegaram às vinhas.
Em 2017, quem escapou aos incêndios, penou com a seca. E, antes, muitos já tinham sofrido com a geada. Este ano não houve geada, nem há falta de água nos solos. Mas houve água a mais durante a floração, trovoadas violentas com queda de granizo, ataques severos de míldio e, nos últimos dias, uma onda de calor que dizimou inúmeras vinhas em quase todas as regiões de Portugal continental. As imagens que nos chegam de algumas vinhas de Setúbal, do Alentejo, do Tejo, do Dão ou do Douro são impressionantes. Parece que os cachos foram lambidos por uma gigantesca bola de fogo.
Coloco-me no lugar de quem foi atingido: só faltava mesmo esta onda de calor para acabar de queimar cachos já meio secos do granizo e do míldio. Só faltava mais este prejuízo, depois de fortunas gastas em fitofármacos para tentar estancar uma doença (o míldio) que não afecta a qualidade do vinho (até se diz que “ano de míldio é ano vintage”) mas que pode destruir completamente uma produção. A pressão foi tal que, a dada altura, as empresas de pesticidas entraram em ruptura de stock. Apesar do recurso massivo a fungicidas, as perdas são enormes. Será que os viticultores estão a ser vítimas do excessivo uso destes produtos, como acontece quando abusamos dos antibióticos, ou, como alguém dizia, as empresas químicas andam a vender “sulfato chinês”? Os produtos são vendidos com a mensagem de que são eficazes, mas então como se explica que produtores experimentados, fazendo o dobro ou o triplo dos tratamentos que fazem em anos normais, não tenham conseguido travar o míldio? É a tal margem de erro/prejuízo que os produtores de rolhas de cortiça também invocam em relação ao TCA (o famoso cheiro a rolha)? Os viticultores, esses, não têm direito a margens de erro. Se o vinho chegar em mau estado ao mercado, o consumidor exige, e bem, ser ressarcido.
A incerteza faz parte de qualquer trabalho agrícola, e não há mal nenhum nisso. Pode até ser virtuosa. Viver com a dúvida sobre como vai ser a colheita de cada ano é a adrenalina que faz os produtores teimarem ano após ano. A incerteza sobre a qualidade da colheita é ainda mais fascinante. Eu, pelo menos, não retiro qualquer prazer em beber vinhos que todos os anos cheiram e sabem ao mesmo.
Não há colheitas iguais. Umas são melhores do que as outras. Nas melhores regiões francesas, o preço do vinho reflecte as condições de cada ano. É normal encontrar num bom produtor de Bordéus, por exemplo, variações de preços de dezenas de euros num vinho de um ano para o outro. Isto faz todo o sentido. No Douro, por exemplo, os produtores de vinho do Porto fazem essa distinção nos anos “vintage” (aqueles em que a maioria das companhias engarrafam Porto Vintage com as marcas principais das respectivas casas). Nesses anos, o preço do Porto Vintage sobe em flecha (infelizmente, essa subida não é reflectida no preço das uvas pagas aos agricultores). Mas no grosso do vinho que se vende em Portugal não há qualquer oscilação nos preços, a não ser, de vez em quando, aqueles que decorrem do aumento dos preços das garrafas, das rolhas e de todos os produtos que o negócio incorpora. As condições particulares de cada colheita pouco ou nada contam. Um vitivinicultor que perde metade da sua produção este ano está condenado a vender o seu vinho ao mesmo preço do ano anterior, sob pena de perder distribuidor e clientes. O consumidor que compra vinho nas garrafeiras, nos supermercados ou nos restaurantes raramente pensa no que está por trás de cada garrafa, se ela custou mais ou menos a produzir do que as colheitas anteriores.
Mais do que manifestarmos comiseração pelas desgraças dos viticultores, mais do que sermos solidários com o pedido de ajuda ao Estado, não seria mais justo começarmos a pagar o vinho de acordo com as condições (quantidade e qualidade) de cada colheita? Bem sei que é uma utopia, que o mercado é global, que a concorrência é selvagem e não contempla lirismos e que as grandes superfícies não se distinguem propriamente pelos seus valores humanistas. Mas fechar os olhos e pensar que o vinho, ou as batatas, ou as couves, ou a carne, ou o leite são produzidas sempre da mesma maneira e com custos mais ou menos certos, como numa fábrica, também não nos ajuda. Quanto menos quisermos pagar, pior beberemos e comeremos. Não há milagres.