Olhos de Água: da vida errante ao resort
Na monotonia do Pereiro, os campos mansos e ondulados fazem sonhar com uma vida na autocaravana, pela estrada fora. Mas às portas de Albufeira os turistas escolhem um caravanismo de pulseira, não querem sair dali. Do parque público ao privado, a autocaravana com e sem travões.
Do que Edmundo Santos gostava mesmo era de correr o mundo na autocaravana, ao estilo vamos-andando-e-vamos-vendo. “Só não o faço porque não posso”, diz ele, apontando para a filha de sete anos, Ana, acabada de dar uma volta de bicicleta junto à barragem, onde o alecrim cheira forte depois de uma chuvada de Verão. Ainda assim, há solução à vista. No posto de combustível onde o algarvio fornece gás a “centenas de caravanistas”, perto de Olhão, tem perguntado aos viajantes como fazem para andar com os filhos tantos meses na estrada. “Há alternativas, como a escola pela Internet, à distância. Estou a estudar isso”, entusiasma-se Edmundo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Do que Edmundo Santos gostava mesmo era de correr o mundo na autocaravana, ao estilo vamos-andando-e-vamos-vendo. “Só não o faço porque não posso”, diz ele, apontando para a filha de sete anos, Ana, acabada de dar uma volta de bicicleta junto à barragem, onde o alecrim cheira forte depois de uma chuvada de Verão. Ainda assim, há solução à vista. No posto de combustível onde o algarvio fornece gás a “centenas de caravanistas”, perto de Olhão, tem perguntado aos viajantes como fazem para andar com os filhos tantos meses na estrada. “Há alternativas, como a escola pela Internet, à distância. Estou a estudar isso”, entusiasma-se Edmundo.
O projecto de família não envolve parques de campismo. Edmundo Santos, de 58 anos, e Camila Araújo, de 30, preferem lugares como o parque de autocaravanismo e de merendas do Pereiro, onde há electricidade e água se for preciso, e o essencial – o horizonte – está garantido. Também aqui há lotes (para 16 autocaravanas) mas todos se ajeitam fora dos rectângulos demarcados, o mais longe possível uns dos outros, alguns junto à barragem, outros com preferência por tomadas. Ficar a dois metros do vizinho é que não.
É uma vida de acordar tarde, passear pelos serros do Barrocal e fazer churrascos, a do clã Santos-Araújo. Se for preciso (mas só se for preciso), vão até ao café da aldeia, passando pela igreja branca, ao compasso das cigarras. Pereiro, a aldeia menos populosa do concelho de Alcoutim, fica nas barbas do Alentejo, mas é tradicionalmente um lugar de pescadores, não fossem as ribeiras do Vascão e da Foupana, e a lentidão do tempo. Foram mesmo o tempo e o espaço que trouxeram para cá Camila e Edmundo. Para a semana, depois do trabalho, não há-de ser muito diferente: voltarão à estrada, “seja para onde for”. A caravana tornou-se numa nave que permite desaparecer da rotina que “acaba com tudo”. Ao mesmo tempo, materializa os sonhos da classe média: “Se queremos almoçar na serra, temos uma casa na serra. Se queremos ir para a praia, temos uma casa na praia”, conclui Camila.
Olho para o negócio
O parque do Pereiro foi inaugurado em 2012, sob um investimento de quase 175 mil euros (com o co-financiamento do Programa Operacional Regional do Algarve) do município de Alcoutim. Nos últimos anos, algumas autarquias têm investido (ou permitido o licenciamento a entidades privadas) em equipamentos de apoio ao turismo de autocaravana, alegando os benefícios económicos que o segmento pode trazer a zonas de baixa densidade, mas também com o objectivo de limitar (e proibir) o acampamento em zonas livres.
O argumento económico não foi indiferente ao sector privado, que se lançou nesta área legal e ilegalmente. A Rede de Acolhimento ao Autocaravanismo na Região do Algarve, criada em 2015, integra 28 parques e áreas de serviço. Mas, numa breve pesquisa, encontram-se mais de 80 “lugares amigos dos autocaravanistas”. Alguns terrenos baldios foram transformados em negócios amadores pelos proprietários, com a cobrança de tarifas à entrada; outros ainda não estão licenciados porque andam nos túneis da burocracia. Em muitos casos, não há diferença à vista desarmada, e o viajante não sabe muito bem por onde anda.
Junto à praia da Falésia, em Olhos de Água (Albufeira), 115 km a sudoeste do Pereiro, o Algarve MotorHome Park demorou um ano a obter as licenças necessárias para iniciar a actividade. “Nesta zona não se pode construir em altura, mas não há entraves a este tipo de negócio”, diz Laurentino, que trabalha aqui desde o início, em 2013, quando o espaço tinha 55 lotes. Entretanto foi ampliado para 90 e, “mesmo assim, não é suficiente para a procura”.
O caminho para o park é o mesmo do que para o hotel de cinco estrelas da zona, a praia é a mesma, o céu é o mesmo. Eventualmente, o poder de compra dos clientes também é o mesmo. “Ainda ontem saiu daqui uma autocaravana de 13 metros, com garagem” incluída, que custará cerca de um milhão de euros. Laurentino explica como a porta se abria, uma plataforma descia até ao chão e de lá deslizava misteriosamente um automóvel. “Já vi coisas muito fora do comum”, conta o funcionário.
Se na filosofia de Edmundo, o técnico de gás de Olhão, “a caravana não é para estar parada”, aqui, a abordagem é outra; troca-se bem o acelerador pela quietação. Veja-se este “chão em condições”, realça Gilles, para quem o facto de não haver pó a barafustar no ar é condição de referência num parque de autocaravanismo.
Gilles e Monique Voyer andaram 2000 quilómetros desde Lisieux, na Normandia, para testar o Algarve. Se gostarem, vêm cá passar o Inverno. Já viajaram com tendas, furgões, caravanas, autocaravanas e, há um mês e meio, compraram este “camping-car” de luxo. “Precisamos de espaço se quisermos ficar três meses aqui”, justifica Monique, reformada e visivelmente menos entusiasmada com a história da caravana do que o marido, que não sai de lá de dentro.
Não só por estar a brilhar à luz do sol de Albufeira, a Le Voyageur branca, gama Liner, da família Voyer salta à vista entre os 90 lugares do parque. Depois de limpar os pés ao tapete da entrada, o casal senta-se nos bancos largos a apreciar o conforto. Sorriem emoldurados por uma cabine em que os assentos flutuam pela acção dos amortecedores. Há uma televisão dissimulada atrás de uma das portas e, dentro do armário lacado de branco, três fileiras de copos de vinho anunciam a possibilidade de festa rija no lote dos Voyer. Como haveria de comentar Anne Dumont, a utente instalada no lugar 52, “bebe-se um pouco de mais aqui no campismo, n’est-ce pas?”
Sendo a francesa uma das nacionalidades mais fortes no parque da Falésia, há um campo de petanca não muito longe da entrada, mesas de pingue-pongue e de piquenique. Mas o maior atractivo é a praia, aonde se chega por um trilho de 400 metros de areia e pinheiros mansos, os últimos partilhados com os clientes do hotel de cinco estrelas. Para estender a toalha, não é preciso atravessar as luzes de Albufeira; na “pior” das hipóteses, sai-se do park para comprar peixe fresco no Mercado dos Caliços. A primeira faixa da Falésia, onde chapéus de palha convivem bem com as Bolinhas do Vítor – com creme ou sem creme – é o reduto tropical dos autocaravanistas. “Pelo meu marido até vivíamos aqui. Vamos à praia, caminhamos, voltamos, cozinhamos… Estamos velhos”, resume madame Dumont.