Trudeau resiste à intimidação saudita e renova defesa dos direitos humanos

A rajada de decisões da Arábia Saudita contra o Canadá parece ainda não ter terminado. Riad pode ter desistido do país ou então não sabe recuar. Também é possível que estas sejam as regras do príncipe Mohammed bin Salman.

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O primeiro-ministro canadiano repetiu que o seu país falará "sobre direitos humanos sempre que necessário" Christinne Muschi/Reuters

Um post no Twitter a pedir a “libertação imediata” de activistas foi o suficiente para o regime saudita se lançar numa escalada diplomática contra o Canadá, rompendo relações com o país. A ideia será enviar um aviso, duro e assertivo, como tudo o que faz o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (tratado por MBS no reino): ninguém nos critica sem sofrer consequências. Se nenhum líder falar em defesa do Governo de Justin Trudeau a mensagem pode funcionar.

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Um post no Twitter a pedir a “libertação imediata” de activistas foi o suficiente para o regime saudita se lançar numa escalada diplomática contra o Canadá, rompendo relações com o país. A ideia será enviar um aviso, duro e assertivo, como tudo o que faz o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (tratado por MBS no reino): ninguém nos critica sem sofrer consequências. Se nenhum líder falar em defesa do Governo de Justin Trudeau a mensagem pode funcionar.

“O Canadá está gravemente preocupado com as novas detenções de membros da sociedade civil e activistas dos direitos humanos na Arábia Saudita, incluindo Samar Badawi. Instamos as autoridades sauditas a libertarem imediatamente estas e todos os outros activistas dos direitos humanos”, foi o post publicado na sexta-feira no Twitter do Ministério dos Negócios Estrangeiros canadiano.

Samar Badawi foi detida a 30 de Julho com Nassima al-Sadah. São as últimas numa vaga de prisões iniciada em Maio, em antecipação da entrada em vigor da autorização para as sauditas conduzirem, a 24 de Junho. Samar é irmã de Raif Badawi, blogger preso desde 2012 – a sua mulher e filhos vivem no Quebeque e receberam recentemente nacionalidade canadiana.

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Samar Badawi é uma premiada activista, defensora do direito das sauditas a conduzirem e do fim do sistema do "guardião masculino" Gary Cameron/Reuters

O regime totalitário dos Al-Saud, dominado agora pelo ambicioso MBS, um autoproclamado reformista, não quis permitir às mulheres que lutaram por esse direito a possibilidade de receberem quaisquer créditos pela mudança. Três dias depois foram detidas mais três activistas, incluindo Hatoon al-Fassi, professora de História das Mulheres de 54 anos, que terá deixado entrar jornalistas no seu carro para a acompanharem enquanto conduzia.

O post citado não é assim tão diferente de outras críticas dirigidas no passado ao reino dos santuários do islão por líderes europeus ou pelas Nações Unidas. O que parece ter tirado MBS do sério é a expressão “imediatamente” e o tom, mais forte do que o habitual apelo.

A reacção foi em espiral: o embaixador canadiano foi expulso de Riad e o saudita em Otava chamado a casa; o regime decidiu retirar uns 16 mil estudantes actualmente no Canadá, incluindo milhares de enfermeiros que habitualmente acabam o seu treino no país; começou ainda a tirar dos hospitais canadianos todos os pacientes sauditas, transferindo-os para outros países; e suspendeu os voos entre a Arábia Saudita e o Canadá.

Isto só até segunda-feira. Entretanto, a agência estatal que compra cereais informou os exportadores que não aceitará mais cereais de origem canadiana. E segundo o Financial Times, o Banco Central saudita instruiu as suas delegações estrangeiras para se desfazerem de depósitos, acções ou obrigações canadianas, “independentemente do custo”.

Petróleo e acordo de armas

O petróleo, que o Canadá importa do país, está a salvo – a política do reino é nunca misturar crude com diplomacia. Incerto é o destino de um contrato de venda de armas, incluindo centenas de viaturas blindadas, no valor de 15 mil milhões de dólares canadianos (dez mil milhões de euros).

O acordo foi assinado pelo anterior Governo conservador, antes da chegada de Trudeau ao poder, em 2015, mas este podia ter-lhe posto fim e não o fez. Em causa, se o contrato for rasgado, podem estar postos de trabalho no Canadá.

Às notícias de que o Canadá estaria à procura de mediação para esta crise junto dos Emirados Árabes Unidos (aliados de Riad no Golfo) e do Reino Unido, a Arábia Saudita reagiu mantendo o mesmo tom intimidatório. “Não há nada para mediar. O Canadá cometeu um grande erro e esse erro tem de ser corrigido”, afirmou quarta-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros, Adel al-Jubeir. Riad “está a considerar medidas adicionais” contra Otava, acrescentou sem elaborar.

Até agora, tinha sido a chefe da diplomacia canadiana, Chrystia Freeland, a comentar as decisões sauditas, insistindo que o Governo “está muito confortável com as suas posições” sobre “direitos humanos e direitos das mulheres”. Era madrugada de quinta-feira em Portugal quando Trudeau falou finalmente. “Vamos continuar a relacionarmo-nos diplomática e politicamente com o Governo da Arábia Saudita”, disse aos jornalistas. “Vamos, em simultâneo, continuar a falar clara e firmemente sobre questões de direitos humanos no Canadá e no estrangeiro, sempre que o considerarmos necessário”.

Impulsividade ou novas regras

E aqui estamos. Horas antes, o ministro Jubeir tinha descrito a crise como “um assunto de segurança nacional”, evocando a linguagem das primeiras reacções, ao longo do fim-de-semana. A ingerência canadiana, disseram os sauditas, “viola as normais internacionais mais fundamentais”, “é uma violação grave e inaceitável das leis e procedimentos do reino” e “uma violação do princípio da soberania”.

Há duas possíveis explicações para esta resposta desmesurada. A menos preocupante, apesar de tudo, é a inexperiência de MBS, com os seus 32 anos e vontade de fazer tudo e tudo ao mesmo tempo, a mesma ausência de habilidade por trás da trágica guerra saudita no Iémen ou da crise que virou vários países árabes contra o Qatar. MBS está bêbado de poder, comentam alguns analistas – na verdade, nunca um rei concentrou tanta autoridade no país – e é demasiado impulsivo. “Já vimos isto antes. Reagem de forma exagerada e depois não encontram forma de recuar sem perder a face”, diz um diplomata na região citado pela agência Reuters.

A segunda opção é a que conta com mais adeptos: MBS está a usar o Canadá, um parceiro económico de pouca importância, para enviar uma mensagem, aproveitando a presença de Donald Trump na Casa Branca – o príncipe tem conseguido facilmente o consentimento de Washington para as suas decisões de política externa e está convencido que tem o Presidente americano “no bolso”, diz Nader Hashemi, especialista em Médio Oriente. Agora, “MBS traçou uma linha na areia”, estabelecendo novas regras para os países nas suas relações com a Arábia Saudita.

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O príncipe herdeiro tem apenas 32 anos e quer exibir o seu poder Charles Platiau/Reuters

E a Europa?

O diário britânico The Guardian concorda com esta interpretação e no seu editorial desta quinta-feira diz ao resto do mundo que “é tempo de apoiar o Canadá”. “Esta absurda reacção reflecte a agressividade do homem que liderou a cavalaria na guerra no Iémen e o bloqueio que fracassou em deixar o Qatar de joelhos, como esperado. Certamente encorajado pelo apoio de Donald Trump, e pelos ataques deste ao Canadá”, escreve o jornal sobre MBS. Recordando que o Departamento de Estado disse que não se envolveria no assunto, lamenta que o Reino Unido se tenha limitado “a pedir contenção aos seus dois ‘parceiros próximos’”.

Para já, é tudo. Países como a Rússia, o Egipto ou a Somália falaram em defesa de Riad.

A União Europeia condenou a detenção das activistas sem comentar o que os sauditas estão a fazer ao Canadá. Má ideia, defende o Guardian: “É do interesse dos países europeus mostrarem-se unidos e dizerem ao príncipe herdeiro que estas acções não são isentas de custos para a Arábia Saudita”.