O néon da Grande Pensão Alcobia vai ser desligado
A pensão lisboeta ocupa um belo prédio situado no limite da Baixa pombalina, na sua parte mais popular, mesmo antes de chegarmos ao Martim Moniz. Brevemente será transformada num hotel.
Lembram-se do lettering curvo do Grande Budapeste Hotel, o filme de Wes Anderson sobre o fim de uma época na Europa Central? É essa imagem que nos vem imediatamente à cabeça quando olhamos para o nº 15 da Rua do Poço do Borratém, onde o néon azul da Grande Pensão Alcobia acompanha o arco da porta de entrada. Como estamos também em fim de época para as pensões, é provável que o letreiro já tenha sido desmontado no próximo Verão.
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Lembram-se do lettering curvo do Grande Budapeste Hotel, o filme de Wes Anderson sobre o fim de uma época na Europa Central? É essa imagem que nos vem imediatamente à cabeça quando olhamos para o nº 15 da Rua do Poço do Borratém, onde o néon azul da Grande Pensão Alcobia acompanha o arco da porta de entrada. Como estamos também em fim de época para as pensões, é provável que o letreiro já tenha sido desmontado no próximo Verão.
Aos poucos, a Grande Pensão Alcobia está a despedir-se de si própria. Há pouco tempo, no final do ano, desapareceram os porta-chaves em latão das mãos dos hóspedes. São agora exibidos, no seu amarelo reluzente, por trás de Manuela Reis, a recepcionista com uma década desta casa e outros 30 da empresa hoteleira do norte, a Alcotel, que neste momento é proprietária da pensão lisboeta.
“Nós não podemos continuar a ser pensão”, explica Luís Pedro, um dos quatro sócios da Alcotel que neste momento só tem a Grande Pensão Alcobia entre os seus negócios. “A designação desapareceu na legislação. Passámos a ter hotel, apartamento-hotel, alojamento local, turismo rural... O nosso alvará caducou em 2012 e quando pedimos a reclassificação optámos por ser hotel.” De facto, como nos confirma o Turismo de Portugal, com as pensões a serem extintas enquanto tipologia de empreendimento turístico pelo Decreto-Lei 39-2008, todas as que existem têm que ser reconvertidas de acordo com as suas especificidades. A Pensão Nova Goa, por exemplo, situada mesmo ao lado da Grande Pensão Alcobia, já exibe a placa de “Alojamento Local” junto à porta, embora tenha optado por manter o nome pelo qual sempre foi conhecida.
Aqui, na Grande Pensão Alcobia, é uma questão de meses até que o néon seja desligado ou retiradas as letras “G. P. Alcobia” do balcão de madeira, onde está agora a recepcionista que nesta manhã movimentada dá informações a duas turistas espanholas sobre como chegar à estação de camionetas de Sete Rios. O nome do novo hotel ainda não está decidido, diz Luís Pedro, mas a recepção continuará no mesmo sítio, encaixada no vão de escada.
Este, no entanto, não é um vão de escada normal e o charme da pensão passa actualmente pela beleza das escadas deste edifício de cinco andares. Como não têm a parede central mais típica das escadas pombalinas, conseguimos vê-las a enrolarem-se até ao último piso, sempre com o ferro forjado trabalhado e um belo corrimão de madeira. No quinto andar, as escadas são cobertas por uma grande clarabóia de vidro, capaz de inundar os degraus de luz.
A entrada da pensão, que dá directamente para a rua e se faz através de uma porta com duas folhas de madeira e vidro cheia de ferragens de latão, também constrói um espaço muito cenográfico. Com um primeiro patamar quase inexistente, a distância entre a soleira da porta e o patamar da recepção vence-se com um único lanço de escadas com dois metros de largura e meia dúzia de altura.
Quando a actual empresa comprou a Grande Pensão Alcobia em 2004, o estabelecimento esteve fechado dois anos para renovação, tendo nesse ano reduzido o número de quartos de 65 para os actuais 42. Luís Pedro não sabe quando é que a pensão foi inaugurada e não há ninguém com essa memória neste momento a trabalhar na empresa. “Sei que começou com uma coisa pequena e aos poucos foram alugando mais andares. Depois o prédio foi comprado”, afirma. A Grande Pensão Alcobia terá começado a receber hóspedes nos anos 50 ou 60, defende.
Quando reabriram em 2006, não pensaram em rebaptizar a casa do Poço do Borratém, embora o gerente pense que as gerações de clientes mais novas já não reconheçam o charme de uma pensão e a maioria dos turistas estrangeiros não tenha mesmo ideia do que seja uma pensão. “‘Pensão’ é um termo que está associado a um estabelecimento que dava dormida e comida”, continua o sócio. Normalmente com uma confecção caseira e uma gestão mais familiar do que se encontrava num hotel. Nalguns casos, lamenta, “podia ter conotações negativas”, porque associada a realidades como a prostituição.
Hoje, na Grande Pensão Alcobia, já só se servem pequenos-almoços, numa sala que exibe nas paredes painéis de azulejos com os percursos de eléctrico mais famosos da cidade de Lisboa, e há um pequeno bar situado mesmo ao lado da recepção. Luís Pedro reconhece que “um certo ar vintage” que a pensão mantém pode ter os seus atractivos e benefícios, mas defende que hoje os clientes estão sempre à espera de inovação e é difícil optar por deixar o tempo fazer o seu trabalho de decorador. “Se eu voltar a um hotel passados uns anos e encontrar a mesma mobília, provavelmente vou achar estranho. Se é melhor ou pior, não é isso que está em questão, mas é o que as pessoas procuram.”
Um ar um pouco “démodé” é o que tem a decoração roxa e prateada da suite do quinto andar renovada pela última vez em 2006, que ocupa parte das águas-furtadas, mas o ambiente inesperadamente “kitsch” é compensado pela vista frontal do Castelo de São Jorge que descobrimos da janela. No piso inferior, num dos quartos que já apresenta a renovação feita a pensar na reclassificação como hotel que está para breve, as cores clareiam num interior que já procura um certo gosto “vintage”. É possível escolher a vista que continua a valer muitas estrelas optando por uma das três janelas de sacada que abrem para uma espectacular varanda que curva em ângulo recto uma das esquinas do prédio (mas infelizmente é possível descobrir igualmente os armazéns improvisados das lojas do quarteirão a ocupar todo o saguão interior do quarteirão).
O rés-do-chão do edifício da pensão é actualmente ocupado por um dos mais célebres armazéns lisboetas, o Braz & Braz, fundado em 1777, data orgulhosamente exibida no letreiro da loja. O Poço do Borratém é, aliás, um mostruário da Lisboa comercial em extinção: a Lisbonense (limpeza de chaminés), o Hospital das Camisas (transformação de punhos e colarinhos), a Casa Forra (especializada em todo o tipo de peles), a única destas três lojas que consta do programa “Lojas com História”.
Da porta da Grande Pensão Alcobia, vemos ainda a Tasca do Zé dos Cornos, situada já no Beco dos Surradores, a entrar na Mouraria, um restaurante com uma grelha e um entrecosto (com respectivo arroz de feijão) muito recomendados, inclusive pelo nosso suplemento “Fugas”, um dos inúmeros sítios que os hóspedes da Grande Pensão Alcobia têm à mão para comer.
Neste momento, mesmo em frente à pensão, os turistas podem debruçar-se sobre uma escavação arqueológica que encontrou um cemitério do fim da Idade Média no Poço do Borratém, dos séculos XIV e XV, já dentro da muralha fernandina, como nos informa um dos arqueólogos que aí está a trabalhar. Descobrir sepulturas e esqueletos, que estarão à vista até que tudo seja novamente tapado para aí instalar um Ecoponto, que são uma boa metáfora do futuro que está reservado às pensões — farão parte da nossa História. Palavras como “meia pensão” ou “pensão completa” vão precisar de um dicionário etimológico para serem descodificadas, se as que têm resistido a mudar de nome capitularem também. Restará a Pensão Estrelinha, que Herman José imortalizou num réveillon de 1990 para 1991.