Geoff Dyer está no lugar onde se perdem as fronteiras

Não faltam rótulos para classificar Geoff Dyer: melhor escritor cómico britânico, melhor autor de não-ficção... Ele contesta-os, nenhum lhe serve. Viajante, ávido de conhecimento, os seus livros estão na fronteira do ensaio, da viagem, da crítica, do conto. Areias Brancas é isso tudo. Em Nova Iorque ele fala disso, rindo da Califórnia dos seus sonhos.

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ENRIC VIVES-RUBIO

Há uma pergunta a atravessar o novo livro do britânico Geoff Dyer: o que nos leva até um lugar? A epígrafe a Areias Brancas dá, de algum modo, resposta a isso. “O objectivo de ir a um lugar como o rio Napo, no Equador, não é ver a coisa mais espectacular de sempre. É, simplesmente, ver o que lá está. Só passamos por este planeta uma vez, devemos aproveitar para conhecer o lugar.” As palavras são da escritora americana Annie Dillard e servem a Dyer para sublinhar o espanto que o planeta lhe continua a causar. “É maravilhoso que queiram explorar Marte e tragam informações de Júpiter, mas são lugares de merda comparados com este planeta incrível. É insano não o querer conhecer”, completa o escritor, abrigado do ar condicionado que desafia temperaturas polares no interior do hotel: está na rua, aproveita o sol que bate na pequena esplanada às onze da manhã de um dia quente em Nova Iorque. 

Hoje é este o lugar e Dyer está imerso nele. A conversa começa com ele a falar de livrarias independentes, uma delas ali próxima, a Spoonbill & Sugartown Books, no número 218 da Bedford Avenue, cinco minutos a pé do hotel onde se instalou, em Williamsburg, Brooklyn, para promover The Street Philosophy of Garry Winogrand, um catálogo com textos sobre um dos seus temas preferidos, a fotografia. Tem muitos e foi nessa dispersão de interesses e de territórios que construiu uma carreira enquanto escritor que lhe tem valido rótulos como o melhor escritor cómico inglês, ou o melhor escritor britânico de não-ficção.

“Bem,  contesto qualquer rótulo que me ponham”, diz, num acentuado sotaque britânico, olhos semicerrados — pode ser pela luz ou pelo riso sempre latente na sua expressão — enquanto brinca com um guardanapo de papel.

É uma contestação que tem ironia, mas também quer revelar que não há rótulos que lhe assentem na perfeição porque ele desafia fronteiras. Escreve sobre literatura, cinema, música, ioga, descreve lugares e fantasia, acções. É um escritor de viagens a indagar sobre o espaço e o tempo — e o que é um determinado lugar num determinado tempo. As personagens que encontramos no que escreve podem ou não ser reais. Vive no jogo. Ficção, não-ficção, pouco importa. Em Areias Brancas alerta para isso logo no início, comparando-o com Yoga para Pessoas Que não Estão para Fazer Yoga (Quetzal, 2013). “... Este livro é uma mistura de ficção e não-ficção. Qual a diferença? Bom, na ficção, as coisas podem ser inventadas ou alteradas. A minha mulher, por exemplo, chama-se Rebecca, enquanto nestas páginas a mulher do narrador se chama Jessica. (...) Mas Jessica também faz parte da não-ficção. O principal é que o livro não exige ser lido de acordo com a presumida distância a que deveria estar uma linha divisória — uma linha separando certos géneros e as expectativas que eles criam.”

“Eu não diria melhor”, sorri perante a sua própria definição do que vamos encontrar em Areias Brancas, conjunto de dez textos que cabem na classificação de viagem, mas que são também ensaios, reflexões sobre arte, crítica, escrita, sobre o quotidiano. Desde uma ida a Boston e depois à Polinésia para escrever sobre Gauguin, a visita à Cidade Proibida, na China, a casa de Adorno, em Los Angeles, uma viagem até El Paso — no texto/conto que dá nome ao livro — a uma trombose que teve pouco depois de se mudar de Londres para a Califórnia, em 2014. “... Algumas semanas após esta nova vida ter começado, dobrei-me para meter mais lixo no caixote já cheio. Quando me ergui, metade do mundo tinha desaparecido.” Não há spoilers. Geoff, sabe-se, sobreviveu, continuou a escrever, a visão voltou, e o excerto que se segue serve apenas para sublinhar o estilo de associações que caracterizam o britânico. “No rescaldo imediato da trombose, pensei muitas vezes na frase do filme Solaris, de Andrei Tarkovski: ‘Não sabemos quando é que vamos morrer e, por causa disso, somos, a cada momento, imortais.’”

Como é que chegou a este registo? “Gradualmente”, conta. “Talvez com o livro sobre jazz [Mas É Bonito, Quetzal, 2014], que saiu em 1991, quando eu não era tão qualificado quanto muitas outras pessoas para escrever sobre jazz. Mas senti que havia alguma coisa que podia dizer sobre o jazz que americanos mais qualificados não conseguem. Quando o fiz, isso deu-me muita confiança. Eu estava bastante nervoso por razões óbvias. E devia estar mais nervoso agora com esta coisa das políticas de identidade, pessoas que me vêm dizer que não posso escrever sobre escritores negros americanos sendo um escritor inglês. É nonsense. O livro sobre jazz é a minha resposta a isso. Não toco jazz, não componho jazz, não sou americano. Mas foi uma resposta que dei há 24 anos, quando não era tão ofensivo dar essa resposta.”

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Tem 60 anos e 17 livros publicados numa carreira que lhe tem valido rótulos como o melhor escritor cómico inglês, ou o melhor escritor britânico de não-ficção. “Bem,  contesto qualquer rótulo que me ponham” ENRIC VIVES-RUBIO

Dyer escreve e pensa muito no que poderia ser caso não fosse escritor. “O que acha?”, interpela. E volta ao guardanapo, tantas vezes dobrado e desdobrado, que mantém nas mãos em cima da mesa de ferro. “Interessa-me saber quanto pode durar uma vida criativa. Muitas pessoas escrevem um livro e é isso. Mas a dado momento escrevemos o nosso último livro. Acho que a razão pela qual tenho uma vida literária tão longa é por estar sempre a achar que acabei como escritor.”

O contrário de engraçado é...?

Tem 60 anos e 17 livros publicados. Além de ensaio, crítica, textos de viagens, o 18.º ainda vai sair este ano em Inglaterra. Está feito. E é um contraponto a Zona, original de 2012 centrado no Stalker, de Tarkovski, que muitos críticos assinalaram como um dos melhores livros jamais escritos sobre um filme.

“O próximo é sobre um filme estúpido chamado Where Eagles Dare, de um tipo chamado Brian G. Hutton. Escrevi aquele livro sobre Tarkovski e sobre um filme muito sério; e este é sobre outro filme muito importante para mim. Estreou-se em 1968 ou 69, tinha uns dez anos, e é uma história de acção na II Guerra, com Clint Eastwood e Richard Burton. Foi importante em Inglaterra, toda a gente da minha idade o viu umas vinte vezes. Como é que um filme como Stalker e este podem ser dois filmes da nossa vida?” 

E é quase certo que nele, como em quase todos, há um narrador que se confunde com o autor, e um enorme sentido de autocrítica. Ele é sempre alguém que se olha enquanto anda pelo mundo. Ou enquanto olha uma obra de arte, vê um filme, escuta uma peça musical. Em Areias Brancas mantém esse sentido crítico, embora, se comparado com Yoga..., haja mais melancolia. “É possível porque a verdade biológica é que este é quase dez anos mais velho. Eu mudei.”

O facto é que há muitas coisas que permanecem. Como o humor, mesmo perante o trágico, ou sobretudo aí. “Acho que sou um escritor muito divertido. Sim, acho, mas — e voltando aos rótulos — não sou apenas um escritor de humor, porque a escrita humorística é uma forma de escrita, não é? Obedece a regras. Não me considero escritor cómico dessa maneira. Fico feliz por conseguir ser divertido. Mas há muito mais do que ser apenas engraçado. Gosto de usar a distinção fundamental feita por David Sedaris: o contrário de se ser divertido não é ser sério. O oposto de se ser engraçado é não ter graça ou ser desengraçado.”

Peregrinar e viajar

Num dos textos do livro, Peregrinação, fala disso ao contar como gosta de ir na rota de outros escritores. Adorno, e com ele seguindo Sontag, Mann; e também a forma como outros escritores vão no encalço de tantos outros. Parece uma peregrinação sobre peregrinação, infindável. E refere as cartas trocadas entre Mann e Adorno, interroga-se se o autor de Minima Moralia terá ido a algumas praias da Califórnia onde Dyer costuma ir, também em peregrinação, com a mulher. Salienta ainda a dificuldade e os mal-entendidos gerados quando se junta literatura e humor.

Recordando como Mann pretendia que A Montanha Mágica fosse um “complemento humorístico” a Morte em Veneza, e o modo Susan Sontag achava Mann “engraçado”, Dyer escreve: “Estou sempre na iminência de dizer ou achar que qualquer pessoa sem sentido de humor é estúpida, e em certa medida acredito nisto, embora seja uma coisa estúpida de dizer ou pensar, uma vez que Sontag, embora não fosse engraçada, era muito inteligente, algo que era óbvio — para ela — quando tomou chá com Mann em 1947”, tinha ela 14 anos.

Sontag fez a sua peregrinação até Mann, como Dyer fez até Adorno, e, também nesse capítulo, o escritor estabelece a diferença entre viajar e peregrinar. Exemplo: o potencial de frustração está menos associado à peregrinação do que à viagem. “A peregrinação religiosa nunca é frustrante porque, como brinco no livro, nenhum muçulmano que vá a Meca regressa frustrado. A peregrinação secular tem mais potencial de frustração, em particular a peregrinação literária, quando se vai a um lugar associado a um escritor e preservam o quarto, de modo a parecer um mausoléu ou um museu; há esta horrível característica mórbida... Além disso, é muito difícil ir a um lugar e dizer, ‘ah, agora sinto o que D.H. Lawrence sentiu’. Por isso estava interessado no oposto a esse tipo de peregrinação quando visitei a casa de Adorno. Em Los Angeles não fazem muitos memoriais e gosto da falta de marcas históricas. É um modo de dar propósito, sentido, à viagem. Estou sempre disponível para uma peregrinação literária. Mesmo sabendo que invariavelmente nunca é o que pensamos que será”, observa Dyer, que em tempos pensou escrever a biografia, justamente, de D.H. Lawrence, mas abandonou o projecto.

“Não há como escrever uma outra biografia de Lawrence, pelo menos à minha maneira”, justifica, tendo em mente que uma biografia também obedece a regras que não são as da sua escrita. Ele viaja no sentido mais metafórico do tema, ciente do potencial de decepção, mas concentrando-se “sempre no facto de alguns sítios não serem decepcionantes. Como os parques nacionais da América. Têm uma reputação incrível! Ninguém regressa do Grand Canyon a dizer que aquilo está sobrevalorizado. Há um punhado de coisas que desiludem, mas, mesmo quando desiludem, o ponto-chave para mim é que a frustração é o produto de uma qualquer expectativa romântica. Isso revela o grau de fé que ainda tenho no mundo e que a minha capacidade de maravilhamento continua intacta. Significa que não me resignei e que não estou pronto para calçar as pantufas e ficar em casa.”

E há uma sugestão de romance na visita à Cidade Proibida e um encontro que podia ter corrido mal no texto Areias Brancas. “O romantismo está muito ligado à viagem e a um tipo particular de paisagem. Há romantismo no sentido literário e o potencial para romance do tipo amoroso quando se viaja”, concede. Continua: “Não tenho muito interesse em viagem, mas muito, muito interesse em lugares e no modo como se experienciam esses lugares. A viagem é sempre uma coisa que é preciso fazer para se chegar a um lugar. Muitos dos meus livros são acerca de lugares, e do que gosto realmente é do sentimento de estar num lugar no sentido em que se chega lá e temos essa sensação, ‘aqui estou eu neste sítio, agora’. Gosto dessa combinação de geografia e de tempo. E outra coisa: ‘Aqui estou eu no mundo, sou o centro da minha vida.’ Para mim, o capítulo chamado Cidade proibida é sobre esse lugar estupendo, mas há nele o tipo de romance que acontece num momento particular. É o sentido da vida a convergir. Gosto da sensação de convergência e de chegada.”

O potencial narrativo de uma paisagem

Regressamos a outro ponto: terá Dyer conhecido mesmo a pessoa que atravessou com ele o deserto em El Paso? Não vai responder a isso. Não nos esqueçamos de que estamos na fronteira entre realidade e ficção. Um relato de uma viagem nunca é apenas só isso. Não descreve um lugar, uma paisagem, descreve um encontro ocasional. Esse encontro pode ou não ter ocorrido na vida real, mas quando se lê o livro parece que aconteceu realmente. Ao mesmo tempo não é um encontro que esteja a acontecer em frente daquela paisagem do Oeste americano. O encontro parece ter sido provocado pela paisagem. É uma jornada ao potencial narrativo da paisagem, da mesma forma que na história da Cidade Proibida. Estamos diante de um cenário teatral onde pode acontecer um romance. A Cidade Proibida é uma personagem, é a Cidade Proibida que provoca tudo aquilo.

Dito isto, o lugar é a personagem destes textos, de muitos livros, de quase todos os textos de Dyer, que nunca evita os encontros. No cinema somos sempre levados para a ameaça que os encontros podem trazer, aponta, mas nos seus livros esses encontros são geradores de tensão, de suspense, de possibilidades.

“Quando se guia pelas areias brancas, está-se na estrada; e está bem identificado que é uma estrada e, dos lados, há sítios que não são estrada. Quando nos aproximamos das areias brancas, a distinção entre estrada e não-estrada fica meio desfocada, e quando se entra mais profundamente, a estrada desaparece. Gosto de como isso pode circunscrever o livro como um todo, a perspectiva da narrativa, a nebulosa entre real e ficção e quando se está no meio das areias brancas ou no meio do livro não estamos certos do que estamos a ler; não sabemos onde estamos em termos de género literário. Por isso o livro se chama Areias Brancas”, conta.

E isso também é metafórico em relação à originalidade da escrita de Dyer, que gosta da ilusão de extensão de território quando pensa no país onde agora vive. A dada altura faz a comparação entre viver numa ilha como Inglaterra e estar neste território extenso, e mais precisamente no Oeste dos EUA. Em O tempo no espaço, outro dos textos, desenvolve o tema. “Talvez seja preciso ser-se britânico, proveniente de uma ilha ‘do tamanho de um quintal’ — a expressão de desprezo de D.H. Lawrence — para abranger propriamente a imensidão do Oeste Americano. Por isso não é de surpreender que Lawrence tenha considerado o Novo México ‘a maior experiência de mundo exterior que alguma vez tive’.”

O inglês que agora se recosta na parede de tijolo vermelho, pernas cruzadas, prefere falar no efeito psicológico que essa extensão lhe provoca: um enorme peso a sair dos ombros. Cumpriu o sonho de ir envelhecer para a Califórnia, mas o sonho não está a ser “o” sonho. Capítulo Peregrinação: “Passei a primeira década do século a contar a toda a gente disposta a ouvir que queria acabar os meus dias na Califórnia. Uma das pessoas a quem contei isto, em São Francisco, pôs-me rapidamente no meu lugar: não acabamos os nossos dias na Califórnia, começamo-los. Jessica e eu começámos a nossa vida californiana em Janeiro de 2014, mas não era propriamente a vida que eu sempre quisera. Imaginara-nos no Norte da Califórnia, em São Francisco, mas por causa do trabalho da Jessica, acabámos no Sul da Califórnia, em Los Angeles, em Venice Beach.”

Houve, já se sabe, a história superada da trombose, narrada num dos textos mais belos de Areias Brancas, que agora minimiza. “Foi quase um acidente. Não havia como ter um AVC. Conhecemos tantas pessoas gordas, com pouca saúde, que achei que a notícia do meu AVC era como uma carta que me chega por correio mas que é para outra pessoa, que houvesse um erro.”

“O pior agora talvez seja o próprio acto de escrever em LA. Escrever em LA é mais difícil do que pensava. Preciso da experiência da rua e da pressão da rua. Como disse Orson Welles, o problema de LA é que nos sentamos para almoçar e, entretanto, passaram 15 anos. Sinto falta da pressão de coisas que me distraiam. Preciso de sentir maior pressão do tempo do que aquela que sinto em LA. Sinto falta do abandono à distracção. Não estou a dizer que não há pessoas inteligentes em LA, mas não existe a atmosfera intelectual que existe em Nova Iorque. É tão óbvio gostar de Nova Iorque, não é? Isto assenta melhor em mim do que a vida suburbana em LA. É a energia. LA é um lugar muito solipsista. Se se estiver em Lisboa, está-se mais ou menos no coração da Europa. Sinto falta de estar próximo dos grandes acontecimentos da Europa, mesmos os trágicos; sinto-me retirado disso. Londres, Nova Iorque, Berlim continuam a ter um sentido de mundo que não existe em LA. LA é apenas o centro de LA.”

Vai a Londres duas vezes por ano, mas parece-lhe pouco e sublinha a contradição em que vive. “Quando vivia em Londres era tão frustrante e agora consigo perceber porque é que os turistas gostam tanto de Londres.” Do que sente mais falta? Há um grande sorriso no rosto, ri de si mesmo. “Viver em LA faz-nos gostar ainda mais de transportes públicos. Os transportes públicos em Londres são fantásticos, as estações do ano... sinto falta de todas as coisas que detestava em Londres. Em LA toda a gente é tão amigável, sinto falta da agressão de Londres, das caras zangadas. E é tão bom vir a Nova Iorque! Parte da essência da vida aqui é a impaciência. Em LA é tudo tão paciente e lento. É bom estar lá, mas é fantástico estar aqui com toda esta gente a correr, furiosa, impaciente.”