Excepções e espantalhos
Ter um Governo a lamentar-se de que teve êxito em todas as ignições menos numa, como se as consequências destes fogos fossem um azar, e o Governo estivesse a sofrer uma inominável injustiça é deprimente.
Com a regularidade de um relógio suíço, os fogos respondem às condições meteorológicas que lhes são particularmente favoráveis, nos tais doze dias no ano em que se concentra 80% da área ardida desse ano.
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Com a regularidade de um relógio suíço, os fogos respondem às condições meteorológicas que lhes são particularmente favoráveis, nos tais doze dias no ano em que se concentra 80% da área ardida desse ano.
Com uma regularidade já menos suíça, a protecção civil anuncia, ao princípio do dia, que o fogo está a ceder aos esforços do combate e, ao fim da tarde, que reacendimentos e reactivações imprevisíveis afinal desfizeram o grande trabalho que antes estava a obrigar o fogo a ceder.
No entretanto, há sempre alguém que fala no estrondoso êxito que se materializa em 95% do perímetro dominado, ou na esmagadora maioria de ignições que foram resolvidas.
O fogo não é uma tragédia, embora alguns incêndios o possam ser, o fogo é um elemento natural com que temos de conviver, começando por compreender o que se está a passar.
Não, não é um problema do Governo, deste ou doutro qualquer, a única coisa um bocadinho mais específica deste Governo é a ridícula tendência para governar como se os governados estivessem sentados à espera de um espectáculo de ilusionismo, nos fogos ou noutra coisa qualquer.
O problema é nosso, da sociedade no seu todo, e não se resolve com pensamento positivo, resolve-se com conhecimento, organização e dinheiro, sabendo que resolver o problema não é eliminar o fogo mas integrá-lo de forma socialmente positiva, o que está muito longe de ser fácil.
O problema não é o despovoamento do mundo rural, é a falta de gestão das áreas marginais, aquelas em que a economia não garante que alguém tenha interesse no seu uso.
Aquilo que vale a pena discutir é como vamos conseguir trazer gestão para onde faz falta, sem termos a ilusão de que é possível refazer a economia de um mundo rural que morreu.
As áreas marginais eram a garantia da fertilidade das terras de pão e, por isso, o mato era cortado ou queimado frequentemente, impedindo a acumulação de combustíveis que alimentam estes fogos que nos custam os olhos da cara em perdas pessoais, económicas e de paisagem.
Ter um Governo a lamentar-se de que teve êxito em todas as ignições menos numa, como se as consequências destes fogos fossem um azar, e o Governo estivesse a sofrer uma inominável injustiça é deprimente.
E impede-nos de discutir se o ataque inicial musculado é melhor ou pior que uma estratégia rápida de contenção dos fogos, o que acontecerá sempre num dia ou noutro.
Impede-nos de discutir se o melhor é ter aviões pesados a despejar água, para apoiar camiões igualmente pesados a despejar água até onde chegarem as mangueiras, manobradas por centenas de voluntários esforçados e abnegados, mas mal preparados, ou se é preferível ter meios aéreos ligeiros para deslocar rapidamente pequenas equipas de bombeiros florestais sapadores altamente profissionalizados, carregando as suas ferramentas manuais, não para a frente de fogo, mas para onde estiver a oportunidade, previamente identificada, em que seja possível retirar da frente de fogo os combustíveis que o alimentam, com material adequado e uso profissional e sofisticado do fogo.
E, sobretudo, impede-nos a todos de discutir como pagamos a gestão destes territórios por parte de quem lá está, pastores, resineiros, agricultores, conservacionistas, produtores florestais, na parte em que a economia não garante o retorno dessa gestão e na medida em que dessa gestão resultar um benefício comum.
Um Governo que persegue os proprietários com a lei e a GNR, com base na ideia absurda de que os proprietários têm a obrigação de prestar serviços a todos, mas os beneficiários não têm nenhuma obrigação de lhes pagar, um Governo que colabora na invenção de espantalhos, actualmente o eucalipto, mas antes o imobiliário, os madeireiros e etc., para evitar tomar as decisões difíceis que são necessárias para garantir a gestão dos serviços de ecossistema que podem contribuir para construir paisagens mais ricas, diversas e socialmente mais úteis, é um Governo que não me merece respeito.
Felizmente, porque prefiro confiar nas instituições democráticas, sei que nada disso se passa com o actual Governo, nem com os anteriores.
O caso é bem mais grave: o esmagador domínio da ignorância da sociedade em relação ao fogo torna-a uma presa fácil de qualquer demagogo que se entretenha a contar histórias da carochinha sobre incendiários, interesses económicos, desordenamento do território e todas essas coisas que nos permitem dispensar o esforço de pensar e tomar decisões difíceis.