A poesia para ouvir ganhou um lugar ao sol
Natália Correia dizia que a poesia era para comer. É verdade, e sem risco de indigestão.
Nas últimas três décadas, a poesia dita ao vivo ou gravada ocupou apenas um pequeno nicho, em salas quase clandestinas ou em ínfimas prateleiras das lojas. Mas o panorama tem vindo a mudar. Graças a projectos como a Lisbon Poetry Orchestra, por exemplo, que junta música e palavra dita numa bem conseguida simbiose (que já fizera escola no projecto Wordsong); ou ao renascimento da aposta discográfica em poesia, juntando aos discos resistentes nas prateleiras de casas como a CNM, ao Chiado (e lá estão Almada, Ary, Carlos de Oliveira, João Villaret), reedições que juntam às vozes dos próprios poetas leituras mais contemporâneas dos mesmos poemas. É o caso da série …Dizem os Poetas, da Valentim de Carvalho, que editou este ano, em CD, David-Mourão Ferreira e Alexandre O’Neill e tem na calha, para breve, Mário Cesariny, António Gedeão e depois Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Natália Correia e Ary dos Santos. Se não é tempo de edições mais luxuosas, como aquelas (da Presença, em livro-disco) em que Luís Miguel Cintra gravou Fernando Pessoa (a Mensagem) ou Ruy Belo, em 1993, é pelo menos um sinal de renascimento de um género que andou tantos anos arredado.
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Nas últimas três décadas, a poesia dita ao vivo ou gravada ocupou apenas um pequeno nicho, em salas quase clandestinas ou em ínfimas prateleiras das lojas. Mas o panorama tem vindo a mudar. Graças a projectos como a Lisbon Poetry Orchestra, por exemplo, que junta música e palavra dita numa bem conseguida simbiose (que já fizera escola no projecto Wordsong); ou ao renascimento da aposta discográfica em poesia, juntando aos discos resistentes nas prateleiras de casas como a CNM, ao Chiado (e lá estão Almada, Ary, Carlos de Oliveira, João Villaret), reedições que juntam às vozes dos próprios poetas leituras mais contemporâneas dos mesmos poemas. É o caso da série …Dizem os Poetas, da Valentim de Carvalho, que editou este ano, em CD, David-Mourão Ferreira e Alexandre O’Neill e tem na calha, para breve, Mário Cesariny, António Gedeão e depois Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Natália Correia e Ary dos Santos. Se não é tempo de edições mais luxuosas, como aquelas (da Presença, em livro-disco) em que Luís Miguel Cintra gravou Fernando Pessoa (a Mensagem) ou Ruy Belo, em 1993, é pelo menos um sinal de renascimento de um género que andou tantos anos arredado.
Não só nos discos. Até um festival popular como O Sol da Caparica reserva, este ano, aliado ao projecto Debaixo da Língua (coordenado por Rui Miguel Abreu), um espaço para poesia dita ao vivo, com música, assegurado pelo Poetry Ensemble (Alex Cortez, Filipe Valentim, Luís Bastos e Tiago Inuit), ligado à Lisbon Poetry Orchestra. E no Porto, no Pinguim Café, há anos que há sessões de poesia bastante concorridas, com vozes como as do actor, encenador e diseur Rui Spranger. Isto enquanto nos discos de cantores e compositores a atracção pelo universo dos poetas continua a revelar-se profícua. Ainda recentemente a RTP2 transmitiu a gravação de um espectáculo de Mísia (CCB, Maio de 2017) intitulado Mísia e os Seus Poetas. A lista, neste caso, se fôssemos inventariar os poetas musicados em discos nos últimos anos, era enorme. E qualitativamente muito interessante, com os altos e baixos do costume. Mas tem havido discos inteiramente dedicados a um só poeta. Exemplos recentes disso são Pérolas D’Alma, com Nuno Rodrigues (Banda do Casaco) a cantar Florbela Espanca; ou O Céu Como Tecto e o Vento Como Lençóis, com poemas de Manuel da Fonseca a darem corpo a canções de Paulo Ribeiro (cantor bejense ligado ao grupo Tais Quais).
Há ainda, mais recentemente, neste domínio, um regresso a Fernando Pessoa. O Trio Caixa de Pandora com o Quarteto Vocalónimus desenvolveram, com composições de Rui Filipe e Paulo Borges, o tema Apocalipse de Fernando Pessoa e Ofélia Queirós, que surgem na capa desenhados num fundo negro; e os professores da Escola Superior de Teatro e Cinema Armando Nascimento Rosa (também dramaturgo) e António Neves da Silva (pianista) passaram a disco o projecto de ambos O Piano em Pessoa (com Pessoa na capa, num conhecido desenho de Almada Negreiros aqui encimado pelas teclas de um piano). Factor de acrescido interesse neste último é o historial, feito por Nascimento Rosa no livrinho que acompanha o disco, dos “Primórdios de Pessoa musicado”. Onde se lembram “as várias criações pioneiras de Fernando Lopes-Graça (…) partir de 1934 (repare-se, ainda em vida do poeta)”, para depois assinalar que “a primeira composição original na música popular portuguesa, com um poema de Pessoa, é de José Afonso, em 1972: No comboio descendente.” Depois, a lista vai engrossando, dos brasileiros Secos & Molhados (de Ney Matogrosso) a várias fadistas (Maria do Rosário Bettencourt, Teresa Tarouca, Maria Teresa de Noronha), passando por nomes como António Variações, Rádio Macau, Janita Salomé ou João Braga, isto além dos discos brasileiros Mensagem (1986) e A Música em Pessoa (1985). Mas há mais compositores atraídos por Pessoa. Muitos no fado, como atesta o Livro-CD O Fado e a Alma Portuguesa (2103), com Pessoa cantado por várias vozes. Mas também musicaram Pessoa autores como Amélia Muge (Nevoeiro e Quinto Império), Ana Deus e Luca Argel ou o cantor sardo Mariano Deidda, que já dedicou quatro discos inteiros à obra de Pessoa e ainda não parou. Até a poesia em inglês de Pessoa já foi objecto, em Portugal, de pelo menos dois projectos: Alexander Search (do grupo formado por Salvador Sobral e Júlio Resende) e Echoes (da cantora Sofia Vitória). E há o belo documentário brasileiro (o vento lá fora), de Marcio Debellian, onde a professora Cleonice Berardinelli e a cantora Maria Bethânia lêem e discutem Pessoa ao vivo…
Natália Correia dizia que a poesia era para comer. É verdade, e sem risco de indigestão.
Rectificação: Neste texto cometeu-se um erro que é também uma injustiça. Ao citar, do disco O Piano em Pessoa, a afirmação de que “a primeira composição original na música popular portuguesa, com um poema de Pessoa, é de José Afonso, em 1972”, omitiu-se, por exclusivo erro do autor, que anos antes dessa composição (O comboio descendente), já um outro cantor e compositor português tinha gravado Fernando Pessoa. Trata-se de Luís Cília, à data no exílio, em Paris, que no disco La Poésie Portugaise de Nos Jours et de Toujours Nº 2 (1969) musicou o poema O Menino de sua mãe, de Fernando Pessoa. Luís Cília foi, também, um dos cantautores portugueses que mais gravaram, nos anos 1960 e 1970, nomes relevantes da poesia portuguesa e isso está patente na sua discografia, infelizmente não reposta no mercado. Aqui fica a justa rectificação.