A difícil reconciliação, dez anos depois da guerra com a Rússia

Há dez anos, a Europa voltou a ver tanques russos a rolarem sobre um país independente, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, para reforçar a ocupação de parte da Geórgia. Hoje a ambição em reaver os dois territórios mantém-se em Tbilissi, mas a estratégia não envolve soldados.

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Homem chora ao pé do corpo de um familiar após um bombardeamento em Gori, durante a guerra entre a Geórgia e a Rússia, em Agosto de 2008 Gleb Garanich / Reuters

Estamos a pouco mais de cem quilómetros de Tbilissi. A paisagem pouco mudou. As montanhas que rodeiam a capital georgiana não são muito diferentes das que parecem engolir aldeias inteiras, que não são mais do que um punhado de casas humildes e isoladas. Mas há precisamente dez anos, o mundo susteve a respiração e concentrou aqui a sua atenção, quando o Verão europeu foi interrompido por uma guerra aberta entre duas nações independentes. Morreram 850 pessoas e mais de dez mil fugiram de suas casas. Politicamente, o conflito continua por resolver. À superfície, tudo parece ser por causa destas aldeias de que ninguém ouviu falar. Mas, na verdade, é muito mais do que isso.

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Estamos a pouco mais de cem quilómetros de Tbilissi. A paisagem pouco mudou. As montanhas que rodeiam a capital georgiana não são muito diferentes das que parecem engolir aldeias inteiras, que não são mais do que um punhado de casas humildes e isoladas. Mas há precisamente dez anos, o mundo susteve a respiração e concentrou aqui a sua atenção, quando o Verão europeu foi interrompido por uma guerra aberta entre duas nações independentes. Morreram 850 pessoas e mais de dez mil fugiram de suas casas. Politicamente, o conflito continua por resolver. À superfície, tudo parece ser por causa destas aldeias de que ninguém ouviu falar. Mas, na verdade, é muito mais do que isso.

Na noite de 7 de Agosto de 2008, o exército georgiano começou a bombardear a cidade de Tskhinvali, capital da Ossétia do Sul, após meses de provocações e pequenas escaramuças, e perante uma forte intensificação da presença militar russa no território. A resposta russa foi avassaladora. Com a justificação de uma intervenção humanitária, Moscovo expulsou rapidamente as forças georgianas da Ossétia do Sul, abriu uma nova frente na Abecásia, outro território separatista, bombardeou um porto no Mar Negro, entrou em Gori, a cidade natal de Estaline, e, em menos de uma semana, parecia ameaçar Tbilissi.

As capitais europeias entraram em sobressalto. Horrorizados com a perspectiva de uma nova guerra em solo europeu, tentaram alcançar uma solução diplomática para terminar com os combates. Humilhada, a Geórgia aceitou os termos de uma declaração de cessar-fogo que, na prática, viabilizou a presença militar russa nos territórios da Ossétia do Sul e da Abecásia, que semanas depois eram reconhecidos por Moscovo como Estados independentes.

“Paz” na zona de guerra

Subimos a uma das colinas, acompanhados de membros da Missão de Monitorização da União Europeia (UEMM), que desde 2008 patrulha a “linha de demarcação” entre a Geórgia e a Ossétia do Sul. Como em quase tudo neste conflito, não é fácil definir o local onde nos encontramos. Não é uma zona de conflito, não é uma fronteira, não é uma “terra de ninguém”. Desmond Doyle, o irlandês que é o porta-voz da missão, usa expressões que retirem ao máximo a carga política, tal como “linha de demarcação administrativa” – e não fronteira, como faz a Rússia, ou linha de ocupação, como se diz em Tbilissi.

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Coluna de tanques russos rumo à cidade de Tskhinvali, na Osssétia do Sul Vasily Fedosenko/REUTERS

A UEMM está aqui sobretudo para resolver problemas operacionais e, por isso, sublinha a sua imparcialidade sempre que a política se intromete. A vida nesta zona está longe de ser fácil, apesar de o cessar-fogo ser amplamente respeitado. “Tentamos assegurar que o conflito não regresse e que as pessoas tenham uma vida tranquila”, diz Doyle.

As forças separatistas não permitem a entrada na Ossétia do Sul, apenas a quem tenha um documento emitido pelas autoridades que controlam a área – nem mesmo a UEMM é autorizada a operar no território. Ainda assim, há uma média de 400 pessoas a atravessar a linha de demarcação todos os dias na zona de Odzisi, onde estamos, de acordo com os cálculos da UEMM.

Para além das patrulhas – desarmadas, especifica Doyle –, uma parte crucial do trabalho da missão passa pela gestão de uma linha de emergência entre os dois lados. A hotline é accionada sempre que alguém queira reportar uma anomalia que diga respeito à linha de demarcação. “A maioria das vezes as questões que são tratadas pela hotline dizem respeito a pessoas desaparecidas ou situações que envolvem os agricultores”, diz o porta-voz. Em 2017, este mecanismo foi accionado em 1648 ocasiões e é provável que este número seja ultrapassado até ao fim do ano.

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Fronteira no quintal

Esta gestão torna-se ainda mais complexa pela natureza pouco fiável da demarcação da fronteira. O acordo de cessar-fogo deixou esta questão por resolver: a Geórgia recusa-se a fixar uma linha de divisão num território que considera seu. A Rússia aproveita essa ambiguidade para mudar a sua fronteira – uma das últimas “actualizações” atravessa literalmente um quintal de um habitante, contam-nos.

A travessia da linha de demarcação sem a devida autorização é punida com uma detenção pelas forças de segurança ossetas – em Tbilissi chamam-lhes “raptos”. Esse é um receio real entre a população. Doyle conta o caso de um agricultor de 80 anos que tinha uma vaca presa a um poste e que se soltou, obrigando o idoso a correr para a impedir de atravessar para o outro lado. “Provavelmente nada de grave lhe teria acontecido se a vaca atravessasse a linha de demarcação, mas ele estava aterrorizado só por essa ideia”, diz o porta-voz, entre gargalhadas.

Outras vezes, porém, estas detenções podem ser bem mais trágicas. Em Março, as autoridades ossetas entregaram à Geórgia o corpo de Archil Tatunashvili, um homem que tinha sido detido semanas antes pelo KGB – os serviços secretos locais – na zona fronteiriça, por suspeita de preparar “actos terroristas”. Os responsáveis ossetas afirmaram que Tatunashvili, um ex-soldado do Exército georgiano, tinha morrido depois de sofrer um ataque cardíaco, mas Tbilissi garante que o homem de 35 anos foi alvo de tortura durante a detenção e que isso lhe custou a vida.

Da colina onde estamos, à primeira vista nada nos faria crer que o monte que se encontra à nossa frente está já fora do controlo georgiano. Mas um olhar mais atento permite vislumbrar, no meio da paisagem rochosa e da vegetação, os edifícios que compõem uma pequena base militar construída pela Rússia. As estimativas apontam para a existência de 19 instalações deste tipo em todo o território da Ossétia do Sul. A mensagem que pretendem enviar parece simples: a Rússia está aqui para ficar.

Rumo à UE

No Palácio Presidencial, no topo de uma das colinas de Tbilissi, o Presidente Giorgi Margvelashvili abre a sua intervenção num encontro com jornalistas estrangeiros com uma frase que não deixa nenhuma intenção escondida: “Em breve faremos parte da União Europeia.”

Este é o rumo aparentemente inabalável que tem regido a política georgiana desde a independência em 1991 e que a “agressão russa” sofrida há dez anos apenas veio fortalecer. Uma sondagem recente mostrava que apenas 5% da população tem uma imagem negativa do bloco comunitário.

A guerra com a Rússia é vista em Tbilissi como apenas mais uma tentativa do Kremlin em manter a Geórgia na sua esfera de influência. “A ocupação russa não começou em 2008”, diz Margvelashvili, “mas sim nos anos 1990, com aquilo que agora se chama de guerra híbrida”.

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O então Presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, de visita a uma unidade militar em Tbilissi, Irakli Gedenidze/REUTERS

Logo após declarar a independência, a Geórgia viu-se confrontada com rebeliões nas duas províncias habitadas por maiorias étnicas não georgianas, primeiro a Ossétia do Sul e depois a Abecásia. Nesses conflitos, as forças separatistas contaram com apoio russo, impedindo a Geórgia de exercer controlo efectivo sobre esses territórios.

Para Margvelashvili, em 2008 a Rússia estava a responder aos desenvolvimentos da cimeira da NATO, quando foi recusado o pedido da Geórgia e da Ucrânia para serem incluídas no plano de adesão à Aliança Atlântica. Ao ficar expresso o desejo de duas antigas repúblicas soviéticas pertencerem ao bloco que Moscovo continua a encarar como uma ameaça, o Kremlin teve de agir. “As intenções da Rússia foram sempre tentar influenciar de alguma forma a Geórgia”, diz o Presidente.

Dez anos depois da guerra, a situação parece não ter uma solução óbvia à vista. A Rússia continua a negar que esteja a ocupar território da Geórgia, mas justifica a sua presença militar como uma missão humanitária para defender os interesses das minorias étnicas na Ossétia do Sul e na Abecásia. A Geórgia garante que não vai abandonar a pretensão de reaver o controlo sobre esses territórios, que diz serem parte inalienável do país, e acusa a Rússia de apenas querer limitar a sua soberania.

Sem soluções permanentes, o que é transitório torna-se normal e todos tentam adaptar-se. Apesar dos problemas políticos, a Rússia continua a ser um parceiro comercial importante para a Geórgia (7,5% das suas exportações seguem para Norte) e a zona vinícola georgiana continua a atrair milhares de turistas russos todos os anos.

Em Tbilissi, a palavra que define a política em relação aos territórios ocupados é reconciliação. O Governo lançou recentemente um programa para intensificar os laços comerciais com os dois territórios e fomentar a inclusão de estudantes dos dois locais em instituições georgianas. O objectivo é tentar mostrar aquilo que é a Geórgia aos habitantes da Abecásia e da Ossétia do Sul, que para as autoridades georgianas mais não são do que satélites de Moscovo.

O programa de reconciliação evita, no entanto, qualquer forma de reconhecimento político das entidades que governam as duas repúblicas separatistas. “A vantagem desta iniciativa é que o Governo georgiano pode alcançar boas coisas sem depender da outra parte”, explica ao PÚBLICO o presidente do Centro para o Desenvolvimento e Democracia, um think tank sedeado em Tbilissi, Mikheil Mirziashvili.

Em termos simples, trata-se de avançar com alterações legislativas que facilitem os dois objectivos e resolvam problemas práticos. A Geórgia não reconhece os documentos de identificação emitidos pelas autoridades separatistas, mas uma mudança legal ao abrigo desta iniciativa permite que sejam usados como “base para iniciar o processo de registo da pessoa” numa escola ou para fundar uma empresa, diz Mirziashvili.

Ninguém esconde que a reconciliação será um processo longo e com poucas garantias de sucesso. Mas o discurso dos georgianos é marcado pela esperança na sua própria resiliência. Acima de tudo, a memória dos tanques e dos bombardeamentos é demasiado fresca para que o arame farpado e algumas bases desencorajem os georgianos. “Já sobrevivemos em condições bem piores”, afirma o Presidente do país.

O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia