Isabel Galriça Neto: “Considero que trabalho numa periferia”

Isabel Galriça Neto leva os dias a dedicar-se aos outros. Como deputada é autora de leis que protegem as pessoas no seu processo de morte, como responsável por uma unidade de paliativos cuida de diminuir o sofrimento do fim de vida.

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Isabel Galriça Neto é deputada há 9 anos e há 25 anos médica especialista em cuidados paliativos cuidados, área em que foi pioneira em Portugal Daniel Rocha

Nascida em Lisboa, define-se como “alfacinha de gema”. É deputada à Assembleia da República pelo CDS, tendo sido eleita como independente, em 2009, por convite de Paulo Portas, na sequência da sua participação na campanha pelo não no referendo sobre despenalização do aborto em 2007. Como deputada é co-autora da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, da Lei do Testamento Vital e da Lei dos Direitos das Pessoas em Fim de Vida — legislação para que foi determinante a sua formação e experiência profissional. Há 25 anos que trabalha em cuidados paliativos, tendo sido pioneira na concretização deste tipo de cuidados médicos em Portugal. Aos 57 anos, é professora assistente nos mestrados de Cuidados Paliativos da Faculdade de Medicina de Lisboa e da Universidade Católica. É, desde 2006, directora e fundadora da Unidade de Cuidados Paliativos e Continuados do Hospital da Luz e membro da direcção clínica desta instituição. Foi fundadora e presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (2006-2012) e fundou e coordenou os Cuidados Continuados do Centro de Saúde de Odivelas (1997-2006).

Foi eleita deputada pela primeira vez em Outubro de 2009. Como tem vivido esta experiência?
Interessante é talvez a palavra mais comedida, mas mais adequada. Eu vivo como um privilégio, com toda a humildade e genuinidade. Às vezes pergunto-me ao fim destes nove anos por que é que estou aqui. Porque considero um privilégio do ponto de vista do serviço, da responsabilidade, das pessoas que conheço, daquilo que tenho oportunidade de fazer e, portanto, vejo isto como uma exigência. Algumas vezes misturada com uma ponta de frustração, porque quem está felizmente formatado, como eu estou, para um processo de decisão diferente, que é o clínico, que é habitualmente rápido, sofre o choque com outro tipo de processo que é aquele que se vive no Parlamento.

É muito mais lento.
Sim. Quando faço essa notificação, ainda me dizem: “Havias de ver como é que isto era há 20 anos.” Tem sido um privilégio muito intenso. Bastante cansativo. Quando me dizem: “Os deputados não trabalham...”

Como lida com essa ideia feita?
É falso. Não se podem fazer generalizações. Dá jeito, talvez, olhar para o Parlamento como um palácio onde estão alguns eleitos. Não corresponde à realidade. Para mais estando num grupo parlamentar pequeno.

São as simplificações antipolítica próprias do populismo?
Sim. Há ideias feitas sobre os deputados, que ganham muito e não fazem nada, têm muitos privilégios. Aí sou muito crua —os privilégios existem em todos os grupos profissionais. E quando se está a olhar para os outros não se está a olhar para dentro. É a necessidade de pôr aos deputados o rótulo de que são uma casta. E eu acho que não são uma casta e que é perigoso fazê-lo.

Foi nas campanhas dos referendos à despenalização do aborto que lhe nasceu o bichinho da política?
Há muito tempo que o tinha em relação a causas relacionadas com aspectos da vida, muito mais em relação aos paliativos e do fim de vida. Nunca pensei enveredar por uma actividade política mais estrita. É por via disso que depois sou convidada por Paulo Portas para ir para o Parlamento, primeiro como independente.

Como vê hoje o seu envolvimento na campanha pelo não?
Provavelmente, hoje faria as coisas de uma forma diferente, mas não deixaria de estar envolvida. Envolvi-me mais plenamente no segundo, em 2007, contactando nessa altura com questões de organização, de estratégia. Fi-lo com coerência, para mim faz sentido. Prezo as pessoas que, independentemente dos seus valores, como acontecia com o João [Semedo], são coerentes e não têm receio de se envolver. Mais ainda quando não o fazem com arrogância e sobranceria. Fica também a minha homenagem ao João.

Porque quis ser deputada?
Vi isso como um passo evolutivo. Não quis ser deputada, não andei à procura e digo isto com gosto. Para mim fez sentido, no sentido de desafio, gosto de desafios com responsabilidade. E é uma continuidade em relação a afirmar um conjunto de valores em relação aos quais acho que a vida deve ser vivida. Não foi com deslumbramento no sentido bacoco.

No segundo referendo estava ao lado de uma então também independente que hoje é presidente do CDS, Assunção Cristas. Creio que se conheceram então.
Sim, mas nessa altura mal. Conheci melhor a Assunção e com grande proximidade, quando entrámos ao mesmo tempo para o Parlamento e estávamos as duas na segunda fila da bancada.

Criaram vínculos de proximidade.
Muito grandes. Primeiro, porque há proximidade de formas de estar, afinidades, mas também porque estivemos muito tempo lado a lado. Nesses dois anos aproximámo-nos bastante [em 2011 Cristas integra o Governo].

Gostou mais de trabalhar no CDS com Portas ou com Cristas?
São pessoas diferentes. Sou particularmente suspeita porque gosto de Portas e confunde-se hoje em Portugal o gostar das pessoas com não lhe identificar defeitos. Portas é uma pessoa superiormente inteligente, vê antes do tempo as coisas acontecerem. E reconheço-lhe um conjunto de capacidades, o que não é igual a dizer que as pessoas não têm defeitos. Não endeuso ninguém. À Assunção reconheço-lhe uma capacidade de trabalho, de organização — ou seja, a Assunção não é o Portas. Tem inúmeros talentos e também a aprecio.

É menos centralizadora?
Sim. A Assunção gosta de envolver outras pessoas, mas não deixa nunca de se envolver. A Assunção chega num momento diferente, não é Portas, não tem a carreira dele. Estou muito à vontade e confortável com a liderança da Assunção.

No Parlamento fez amigos, criou relações pessoais?
Eu não tenho muitos amigos. Mas criei relações pessoais. É assim que gosto de estar na vida. É um privilégio conhecer pessoas. Na actividade do Parlamento conheci pessoas muito interessantes. Não quer dizer que concorde com elas. São pessoas com quem posso desenvolver laços de afectividade. Há pessoas que estimo, com quem converso. Ainda hoje converso com Maria de Belém, é uma pessoa que eu aprecio e reconheço, com um percurso. E tenho muitas saudades do Bernardino Soares, que conheci no trabalho parlamentar, é uma pessoa que aprecio bastante. Tenho saudades já do João [Semedo], já tinha antes. Tivemos muitas divergências como é evidente. Às vezes, dizem: “Eles andam para lá a insultar-se e depois são todos amigos.” É uma generalização. É assim em todo lado, as pessoas não podem manter níveis de tensão.

Creio que particularmente com Semedo esteve ligada à aprovação de dois diplomas, a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos e a Lei do Testamento Vital.
Sim, a Maria de Belém esteve também no testamento vital e foi a última lei em que a Maria José Nogueira Pinto se envolveu.

Estas leis são uma forma de aplicar a sua formação pessoal e experiência profissional?
Sim. Assim como há uma terceira lei que foi publicada recentemente, que é a Lei dos Direitos das Pessoas em Fim de Vida e que lamento profundamente que se fale tão pouco. Fico até um bocadinho zangada. Trabalho há 25 anos com pessoas em fim de vida e são das pessoas mais marginalizadas, fala-se — e bem — muito sobre preconceito em relação a tantas outras áreas. Estamos a falar das franjas, dos doentes mais vulneráveis e dos doentes mais mal-amados. Tenho vários “encanitamentos”, um é com esta ideia — disse-o no dia em que o João morreu — de que trabalho com pessoas que são derrotadas, foram derrotadas pelo cancro. O que é mentira, profunda mentira. Mas é um modelo bélico muito aplicado ao cancro. Há 25 anos que venho vendo o quanto na sociedade, na medicina, na política, na organização do sistema de saúde, estes doentes são deixados para trás. Uma outra visão deve-se a Portas, é o CDS que começa a falar da importância dos paliativos, depois o BE, na visão do João Semedo, que era outra pessoa visionária, apressa-se a fazer o mesmo. Mas é preciso olhar para a realidade destas pessoas que são milhares e que estão em más condições maioritariamente. Sempre achei que estar na política é para tentar fazer chegar à comunidade aquilo que acredito que faz sentido para o bem comum.

Portanto, a sua experiência profissional enriquece a sua actividade política.
Não só enriquece como justifica. Aquilo que se chama “contacto com o eleitorado”, o meu é todos os dias com doentes e famílias. Havia uma realidade gritante a dizer “é preciso fazer mais”. Não só justifica como empurra. A Lei do Testamento Vital e a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos surgem neste contexto. Tem de se reafirmar os direitos das pessoas em fim de vida. Eles estavam muito dispersos, as pessoas desconhecem. Faz-me muita impressão a desumanização da medicina no fim de vida. Se sou contra a eutanásia, sou três mil vezes mais contra a obstinação terapêutica. Portanto, fazia todo o sentido, neste trajecto, reafirmar os direitos das pessoas em fim de vida. A Lei dos Direitos das Pessoas em Fim de Vida, lamentavelmente, talvez tenha sido convenientemente engolida no processo de discussão da eutanásia. Com muita humildade, mas é das coisas em que mais me orgulho de ter participado, por prever o direito a recusar tratamentos, a não ser alvo de obstinação terapêutica, a receber sedação, a não estar amarrado em camas. Acredito que se viesse do BE tinha outra atenção.

Como responde a quem a acusa de ser no Parlamento uma porta-voz dos interesses privados na Saúde?
Respondo com tranquilidade. Que provem por que é que o dizem. Nunca deixei de fazer essa manifestação de interesses de que trabalho num grupo privado. Tenho as minhas declarações em dia. Não sou propriamente uma ricaça. Quem me acusa então tem de justificar porque é que o faz, onde é que enviesei ou favoreci, porque, do ponto de vista ético, nunca assumi nenhuma posição de que viesse beneficiar. O facto de eu estar num grupo privado nunca me fez ultrapassar os meus valores, isso para mim é sagrado.

Trabalha há 25 anos com cuidados paliativos. O que a levou a dedicar-se a acompanhar e a sossegar quem entra num processo de final de vida?
Não tenho a resposta completa, talvez no fim da minha vida tenha. Há algumas questões que estão arrumadas. Claramente o gostar dos desafios. Tenho uma história familiar de muita gente com muita doença. Neste caso concreto foi a situação do meu avô, que é uma pessoa de referência na minha vida e que aos oitenta e poucos anos teve um cancro do rim. Isso é coincidente com eu estar a acabar a especialidade de medicina geral, nos idos de 90. Fui a Inglaterra num estágio, em 1993, e pela primeira vez visitei uma unidade de cuidados paliativos.

Onde já eram muito desenvolvidos.
Sim. É o serviço pioneiro, feito por uma grande mulher, fez agora cem anos que nasceu, a Cicely Saunders. Quando volto, a medicina em relação ao meu avô não tinha nada a oferecer. Incomodou-me muito. No fim de 1993, voltei a Inglaterra e fiz vários estágios e mestrado. Depois, tive o meu pai, que morreu aos 76 anos com demência e é seguramente a pessoa mais relevante do ponto de vista das minhas referências e foi um processo muito doloroso. É uma pessoa de quem tenho muitas saudades, tenho-o muito presente. Aí já estava a trabalhar em paliativos.

Tem uma particular preocupação em sossegar as pessoas que se aproximam da morte, envolve-se em conversas com elas. Essa sua atitude é só confortar física e psicologicamente ou tem preocupação em ajudar a que as pessoas aceitem a morte? A pergunta pode parecer absurda...
Não, não é. Agradeço-lhe, porque as pessoas falam muito pouco sobre isso. Tanto tabu. Basicamente uma das questões — e tudo isto tentou-se verter na lei, depois a transição para a prática infelizmente falha — é fazer notar que os cuidados paliativos são cuidados activos. Não é “tenha paciência a vida é mesmo assim”, tender love and care, mão na mão. Não. Isso é a caricatura dos paliativos. São cuidados para intervir activamente no sofrimento das pessoas. Intervir no sofrimento é perceber o que é que faz com que as pessoas sofram. E a pior redução que se pode fazer é achar que sofrem apenas porque têm dor. Pode ser por dor física, por falta de ar, que é um sintoma muito mais ameaçador, seguramente. Mas elas sofrem por muitas outras coisas. Se deixarmos de fora essas outras vertentes, então não estamos a ajudá-las.

A angústia e o medo?
A angústia, a culpa, que é uma coisa tenebrosa. Os ses, “se eu tivesse feito”, se, se. O sofrimento é determinado por perdas e não são só físicas. Provavelmente, as perdas maiores são as existenciais, são os ses, são as culpas, são os medos. Aprendemos muito nisso, mas temos, de facto, de desenvolver competências para ajudar as pessoas em relação àquilo que disse. Basicamente, mais do que a preocupação na morte é a preocupação com a vida até à morte. Ao contrário do que se possa pensar, o período de fim de vida é de grande riqueza, se for devidamente enquadrado e ajudado. Se não, pode ser um período destrutivo, uma coisa em que as pessoas desejam morrer ou possam até pensar que a solução é desejarem ser mortas. E faz-me imensa pena que, por preconceito ou desconhecimento, se desperdice um período riquíssimo. Estas pessoas são pessoas na mesma. Há medos que se podem agudizar. As pessoas precisam de ser ouvidas, reconhecidas como pessoas. Se só falamos nelas pelo cancro, a demência, a esclerose amiotrófica, estamos a reduzi-las. Aquilo que faço com uma equipa é olhar para as pessoas como pessoas, que não estão antecipadamente mortas, estão vivas.

Têm direito a ver a sua dignidade respeitada.
Exactamente. Inclusivamente nos cuidados paliativos há medidas, terapias, que são intensificadoras da dignidade, que devemos utilizar. Vou dar um exemplo muito simples: sabemos que das alturas mais atentatórias da dignidade das pessoas são os cuidados de higiene. Há muitas pessoas que dizem: “Nunca me imaginei incontinente, a vomitar, a ter de ser cuidado por outra pessoa.” Isso atenta contra a dignidade das pessoas? Não necessariamente. Mas pode atentar, se for feito como uma coisa banal, menor, como: “Eu tenho ali um mono à minha frente, que volto de um lado e de outro.” Se o profissional é ensinado a reconhecer a pessoa que ali está — sou eu que ali estou e irei estar naquela circunstância se calhar algum dia —, não considero que seja atentatório da dignidade. É preciso que eu saiba majorar a coragem de alguém que permite que eu cuide dele e dizer que essa é uma pessoa muito forte e muito corajosa. E não é nem falácia nem música celestial, é rigorosamente assim. Temos é uma sociedade que não está preparada nem ensinada para reconhecer isto.

O seu trabalho vive só da sua aprendizagem da medicina ou até que ponto é que a sua fé, uma vez que é católica praticante, também contribui?
É indesligável. Tenho uma grande preocupação com o rigor. Sou uma pessoa que diz que a fé não é para estar na gaveta. Tem de transparecer naquilo que sou no dia-a-dia. Não quer dizer andar com uma bandeirinha a fazer campanhas pastorais. Vivo isso naturalmente, faz parte de mim, é formatador, como outras coisas. Agora, isso não pode, não deve, nunca será uma escusa para eu ser menos rigorosa, menos exigente em relação ao profissionalismo. Antes pelo contrário. É para fazer bem o bem. É para fazer bem as coisas.

A fé e a ciência comunicam, mas não se misturam.
Comunicam e fortalecem-se uma à outra. Agora, aquilo que eu faço não é um trabalho por causa da minha fé. Também é. Mas tenho toda a racionalidade. No fim de vida vemos a religiosidade intrínseca e a extrínseca. Por um lado, as pessoas que têm integrado um conjunto de valores, de princípios, de rituais, de crenças e, por outro, as pessoas que têm a sua fé apoiada em qualquer coisa extrínseca são habitualmente pessoas com fraca espiritualidade. Tenho muita tranquilidade em relação à minha fé e mais tranquila estou por achar — este Papa disse-o muito bem — que nós temos de trabalhar nas periferias. Considero que trabalho numa periferia.

No Ocidente, o processo da morte é muitíssimo desvalorizado. Concorda?
A morte continua a ser um tabu. Relembra à humanidade em geral os seus limites. E os homens gostam genericamente de se olhar como uma realidade sem limites. É muito interessante, porque os limites são um desafio a irmos mais além. Mas a morte é o limite máximo, é o que nos diz game over, acabou. A morte é um limite, logo lembra-nos a nossa fragilidade, logo é para afastar, é para esconder, é para ser vista como uma coisa horrorosa. A maioria das mortes é tranquila, 99,9%. Vou dar-lhe um exemplo: um dos doentes que tem alta hoje tem uma doença hematológica grave, assumimos que não íamos tomar medidas desproporcionadas; a preocupação foi ele estar o melhor possível, sabe que está numa lua-de-mel, que vai agravar-se e provavelmente morrer nas próximas semanas, mas é importante que tenha um grande fim-de-semana com a família. Isso é que é significativo e importante. Estamos a tratar as pessoas como pessoas, não é porque vão morrer que deixam de se interessar por um conjunto de coisas. Se há receio de nos abeirarmos desta realidade, há o desconhecido, este gera preconceito, distância. Temos uma sociedade que já não é nem no sexo, nem nas drogas que tem os tabus. Mas a morte continua a ser um tabu. Com alguma crueza, o momento em si tem um grande simbolismo, mas é um momento só. O processo anterior é que é muito interessante. Uma das coisas que são importantes é quando se fala na aceitação; é uma ideia de que a minha vida valeu a pena, que temos de desenvolver do ponto de vista da cidadania. E, frequentemente, interrogarmo-nos se estamos a construir uma vida para, quando chegarmos ao fim, podermos olhar para trás e dizer: “A minha vida vale a pena.”

Na sua formação estudou e integrou conceitos do entendimento sobre a morte no Oriente, nomeadamente da filosofia budista?
Do Oriente, sim, e não é só do budismo. Muitas vezes, por preconceito, não se aborda a noção de como o próprio cristianismo recomenda alguma meditação sobre a morte em termos do despojamento na vida, da valorização da vida. Isto, para dizer que quem faz cuidados paliativos tem a noção de como a espiritualidade é fundamental para ajudar a dar sentido, em qualquer circunstância, à vida. A espiritualidade não é igual a religiosidade, que é uma confusão brutal que se faz. Espiritualidade é a nossa consciência do que está para além de nós, do que nos transcende. Pode ser a beleza da natureza, a relações com os outros, o que nós realizamos na vida. Isto para dizer: nós valorizamos a questão da espiritualidade — se for ver a estrutura científica do mestrado em Cuidados Paliativos.

Onde é professora.
Sim e falo sobre esta questão da busca de sentido. Há um excelente livro do Viktor Frankl, que é O Homem em Busca de Um Sentido, um judeu que escreveu este livro depois da sua experiência no campo de concentração onde perdeu a mulher. Ele era um médico psiquiatra, a estrutura médica fê-lo observar a experiência terrível. Podemos falar da morte, mas o que é a vivência num campo de concentração? E ele diz: “Quem eram os que sobreviviam?” Os que conseguiam encontrar algum sentido naquilo que estavam a viver. Ou seja, podemos julgar que não temos uma liberdade perante a morte ou perante o campo de concentração, ou perante a guerra, ou perante o desemprego. Mas temos um espaço enorme de liberdade perante acontecimentos dramáticos. É a forma como lidamos com eles. Isso é transformador. Como se ajuda uma pessoa a passar uma experiência que para ela não faz sentido? É o poder da ajuda. Quem faz o percurso é a pessoa, nós somos ajudadores. Temos essa obrigação. Ao mesmo tempo temos a obrigação de, explorando a questão da espiritualidade, perceber como é que a religiosidade funciona para as pessoas.

É importante?
Para algumas pessoas, essa é uma dimensão importante da sua espiritualidade, não é coincidente, mas têm áreas de sobreposição. Por isso, nós nos paliativos temos de conhecer rituais e preocupações de diferentes religiões. Já tive aqui pessoas judias, muçulmanas, hindus. Há um conjunto de questões que vai desde saber quem aborda, se são elementos masculinos ou femininos, se têm de fazer jejum ou não, se os familiares têm de saber qual é a direcção de Meca, para poderem rezar, em vez do doente. Nós vivemos isso com um profundo respeito, porque sabemos que isso é transformador e identificador.

Há uma preocupação cultural em perceber a morte noutras civilizações?
Nós em paliativos percebemos a morte noutras civilizações. Uma nota pessoal: vivi com um doente hindu a questão do karma. Tinha um cancro no pulmão e duas filhas pequenas e achava que era uma punição. No meu enquadramento a doença não é uma punição, há pessoas que acham que é um castigo, uma visão de um Deus castigador. Mas isso é transversal a várias crenças. É muito difícil, mas temos de estar ao lado das pessoas e ouvir o que elas têm para nos dizer.

Há um tema que é incontornável nesta conversa consigo. A morte assistida e a eutanásia. Qual a diferença entre os dois conceitos?
Começando pelo básico. Morte assistida é um processo de morte que é assistido e apoiado. Nessa medida os cuidados paliativos fazem parte de um processo de morte assistida. É enganador estar a falar de morte assistida e fazer disso um sinónimo de eutanásia. Eu quero uma morte assistida, quero um processo de fim de vida apoiado. Não quero que executem a minha morte, isso não quero. A eutanásia é ser morto por outro a pedido do próprio. Morte assistida é um processo de fim de vida apoiado por cuidados que têm a preocupação não de provocar a minha própria morte, não de prolongar o processo de vida. Não encurtar nem prolongar. Com cuidados eticamente sustentados, e a ética diz que eles devem ser proporcionados, ou seja, não é virar as pessoas do avesso. Nós fazemos tudo o que é possível para as pessoas não estarem em sofrimento, nada fazemos para massacrar. Ainda há a ideia de que as pessoas têm de ser mantidas vivas à custa de medidas heróicas. E isso pratica-se, infelizmente, no nosso país. A morte assistida pressupõe a ideia ética de que não temos de manter alguém vivo à custa de mais sofrimento. Um médico não é obrigado a isto. É obrigado é a assistir para que a pessoa não tenha sofrimento, mas não precipitando a morte.

A Lei do Testamento Vital já comporta uma decisão individual. O direito à eutanásia não é reconhecer um prolongamento desse direito individual?
Não. Na Lei dos Direitos das Pessoas em Fim de Vida voltamos a apelar para a questão do testamento vital. Em Portugal, as pessoas continuam a falar tão pouco das suas vontades de fim de vida e temos pouca expressão no testamento vital. Aí não estou a pedir a ninguém que execute a minha morte.

Portanto, a questão é a interferência de outro?
Não considero — e outros também não — que exista o direito a ser morto por outro. Considero que isso é uma indignidade do ponto de vista civilizacional. Porque o direito à eutanásia é o direito a que outro me mate.

A meu pedido.
Pois, a meu pedido. Mas eu estou a envolver outro numa acção directa para executar a minha morte. Não considero que haja esse direito à morte infringida por outro. Onde é que fica o contínuo? É o contínuo de que não tenho de prolongar, tenho de usar acções proporcionadas. A Holanda e a Bélgica são o exemplo claro de que quando eu constituo esse direito estou a passar fronteiras que permitem coisas tenebrosas.

Por exemplo, manipulação por terceiros, por familiares?
Exactamente. Estes dois últimos anos foram muito intensos, até do ponto de vista da reflexão pessoal e cheguei sempre à mesma conclusão. O que é que eu temo? Eu temo uma desumanidade, que é aquilo que vejo na Holanda. O pedido de eutanásia partir do sofrimento — e os nossos projectos permitiam isso — e, por via disso, desresponsabilizar-se a sociedade de ser ajudadora dos outros. Vou dar-lhe o exemplo de um caso concreto na Holanda. Mãe que perde os dois filhos com um mês de intervalo e argumenta sofrimento intolerável, que não consegue viver desta maneira. Não tenho a mais pequena dúvida de que esta mulher tem um sofrimento horrível. Isto é razão para ser eutanasiada? Eu acho que não é.

Porque envolvo na minha morte um terceiro?
É isso e também porque isso tem repercussão no bem comum. Na forma como a sociedade vive a morte, vai banalizar a morte e o apressar o processo de fim de vida. O processo de fim de vida perde valor. Digam o que quiserem, o processo de fim de vida tem ali um atalho. Se houver um caso que seja justificável, não preciso da lei, preciso dos tribunais. Mas no limite, por um caso, hipotecar a forma como a sociedade vive o fim de vida, é dramático. Isto, para mim, é quase esquizóide. É a sociedade que frequentemente está a pedir “Faça mais isto e mais aquilo”, porque se recusa a aceitar a morte. Depois, a seguir, diz: “Ah, tu tens cancro, agora quero eutanásia.”