Brincar ao “Brexit” em tempos de Trump
John Cleese poderá sair do Reino Unido com o “Brexit”. Mas o humor (negro) britânico continua, claramente, a dar cartas.
O comediante John Cleese anunciou que vai sair do Reino Unido. Decidiu ir viver para Nevis, nas Caraíbas. O motivo apontado é a falta de qualidade da comunicação social britânica e, em especial, o debate público e mediático em torno do “Brexit”. É irónico que Cleese, conhecido por ser membro dos Monty Python e pela série Fawlty Towers, decida sair do Reino Unido precisamente quando a política britânica parece atravessar um período muito parecido com um sketch (particularmente negro) dos Monty Python.
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O comediante John Cleese anunciou que vai sair do Reino Unido. Decidiu ir viver para Nevis, nas Caraíbas. O motivo apontado é a falta de qualidade da comunicação social britânica e, em especial, o debate público e mediático em torno do “Brexit”. É irónico que Cleese, conhecido por ser membro dos Monty Python e pela série Fawlty Towers, decida sair do Reino Unido precisamente quando a política britânica parece atravessar um período muito parecido com um sketch (particularmente negro) dos Monty Python.
O Leave não sabia que ia ganhar o referendo de há dois anos. Ganhou. David Cameron demitiu-se de primeiro-ministro e para o seu lugar foi Theresa May, apoiante do Remain. Sem um plano consistente para a saída do Reino Unido, e com o Governo dividido, invocou o Artigo 50 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia para iniciar o processo de saída. De imediato surgiram notícias sobre a total falta de conhecimento e preparação de David Davis, conhecido eurocético, e ministro para o “Brexit”, ilustradas com fotos de Davis numa reunião sem nada em cima da mesa, e o Governo britânico foi lavando em público toda a roupa suja relativa às guerras internas sobre o “Brexit” que o iam consumindo.
Depois do referendo, começaram as discussões sobre a relação entre o Reino Unido e a União Europeia pós-“Brexit” (hard “Brexit” vs. soft “Brexit”), sobre qual o papel do Parlamento no processo do “Brexit”, sobre se deveria existir um segundo referendo no final das negociações, que incluísse a hipótese de, afinal, o Reino Unido permanecer na União Europeia. Figuras destacadas da campanha pela saída da União Europeia acabaram a distanciar-se de promessas feitas durante a campanha, incluindo a famosa promessa relativa a um investimento de 350 milhões de libras no Serviço Nacional de Saúde pós-“Brexit”. Do lado britânico, claramente não havia (e ainda hoje não há) um plano pós-“Brexit”.
Theresa May chegou a primeira-ministra com uma maioria parlamentar. Sem a isso ser obrigada, convocou eleições parlamentares, em que perdeu essa maioria. O resultado foi um acordo de incidência parlamentar com o DUP, um partido unionista de (extrema) direita da Irlanda do Norte. Acordo esse que surge quando um dos temas em cima da mesa no “Brexit” se prende precisamente com a fronteira da Irlanda do Norte com a República da Irlanda, e com a preservação do acordo de paz na Irlanda do Norte.
A discussão parlamentar sobre a legislação que retira o Reino Unido da União Europeia mostrou as grandes divisões que existem quer no Partido Conservador, quer no Partido Trabalhista, sobre o “Brexit”, e levou a uma grande luta entre a Câmara dos Comuns e a Câmara dos Lordes (que aprovou diversas alterações ao projeto de lei de pendência soft “Brexit”). O debate tem também mostrado a irrelevância dos Liberais Democratas, que se associaram firmemente à ideia da reversão do “Brexit” e de um novo referendo. E a legislação sobre a saída da União Europeia acabou promulgada contra os desejos do Parlamento escocês.
Ao fim de quase dois anos, após diversas cedências e tendo chegado a acordo sobre um período transitório de dois anos para a saída, o Governo de Theresa May lá divulgou um Livro Branco para o “Brexit”. O resultado foi muito mal recebido pelos setores eurocéticos, gerando várias demissões, incluindo as de David Davis e de Boris Johnson, destacados líderes do Leave, substituídos por Dominic Raab e Jeremy Hunt (que deixou o Ministério da Saúde depois de vários anos controversos), volte-faces de Theresa May quando confrontada pela ala eurocética mais dura do seu partido (volte-faces que quase foram derrotados no Parlamento, incluindo por deputados conservadores), e a diplomática evisceração das propostas do Livro Branco por Michel Barnier. Theresa May enfrenta contestação de todos os lados no seu partido por causa do Livro Branco, e Jeremy Corbyn, no Partido Trabalhista, também não consegue nem unir o seu partido nem apresentar uma visão clara do acordo que pretende.
Surgem notícias de que pode haver escassez de comida e de medicamentos caso não haja um acordo pós-“Brexit”, e que o Governo britânico tem planos para armazenar esses bens de primeira necessidade. Mas Theresa May, depois de dois anos de confusão total, já veio a público dizer que ninguém se deve preocupar muito com isso, o que decerto acalmará os ânimos de todos os britânicos. Afinal, trata-se apenas de falta de comida e de medicamentos, o que se junta à possibilidade de desagregação do Reino Unido, seja na Escócia, seja na Irlanda do Norte, nos direitos dos cidadãos europeus no Reino Unido e britânicos na União Europeia no período pós-“Brexit”, na permanência ou não numa zona aduaneira comum, no acesso aberto ou não ao Mercado Único, no montante a pagar pelo Reino Unido à UE pós-“Brexit”, e diversas outras questões que, dois anos depois, continuam sem qualquer acordo.
E não esquecer que o Reino Unido anda a brincar ao “Brexit” em tempos de Trump. Trump esse que não deixou passar uma oportunidade de atirar ainda mais achas para a fogueira, ao criticar Theresa May e elogiar Boris Johnson na sua recente e inenarrável passagem pelo Reino Unido. O mesmo Donald Trump que regularmente coloca em causa a NATO, colocou alegadamente em causa a Organização Mundial do Comércio, espoletou uma guerra comercial e passou por Helsínquia, onde, perante Vladimir Putin, alguém que se apresenta como rival dos EUA, colocou em causa os seus próprios serviços de informação e segurança relativamente à intromissão da Rússia nas eleições americanas. Há que dizê-lo claramente: isto não é normal. Não é normal que o Presidente da maior potência mundial aja como um agente do caos, beligerante e inseguro, deitando por terra a ordem global construída ao longo de décadas no pós-II Guerra Mundial.
É neste mundo, e no mundo em que a União Europeia celebrou acordos de comércio livre com o Canadá e com o Japão e parece ter colocado novamente em cima da mesa um acordo com os EUA (depois de uma excelente manobra da Comissão Europeia), que o Reino Unido anda a brincar ao “Brexit”. É neste mundo que o Reino Unido vai perder John Cleese para uma ilha nas Caraíbas. Mas se o “Brexit” causou a fuga de Cleese, trouxe à ribalta Jacob Rees-Mogg, um dos atuais líderes da fação eurocética do Partido Conservador. Rees-Mogg veio dizer que, quando livre do “efeito colonial” de pertença à União Europeia e outros fatores, o Reino Unido poderá almejar a uma taxa de crescimento per capita de 2,4 a 2,8%... em 2050 (comparável, de acordo com o próprio Rees-Mogg, ao crescimento ocorrido, por exemplo, entre 1950 e 1973, com um modelo económico a que Rees-Mogg se opõe veementemente, e entre 1995 e 2007... dentro da União Europeia). John Cleese poderá sair com o “Brexit”. Mas o humor (negro) britânico continua, claramente, a dar cartas.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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