Uma volta pela história da cidade à boleia dos ecopontos

Campanha de colocação de ecopontos enterrados tem permitido a descoberta de muitos vestígios arqueológicos, como os esqueletos do Poço do Borratém. Mas há mais.

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Às vezes, o lixo pode ser nosso amigo. Se não fosse por causa dele, por o querermos longe da vista e do olfacto – o coração foi sítio que nunca ocupou –, não teríamos sabido que por baixo do Poço do Borratém se escondiam os esqueletos de pelo menos 21 pessoas, lisboetas que viveram há 600 anos e ali foram enterrados, longe de suspeitarem que as suas ossadas seriam atracção turística espontânea e passageira num fim de Julho atípico da Lisboa deste século.

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Às vezes, o lixo pode ser nosso amigo. Se não fosse por causa dele, por o querermos longe da vista e do olfacto – o coração foi sítio que nunca ocupou –, não teríamos sabido que por baixo do Poço do Borratém se escondiam os esqueletos de pelo menos 21 pessoas, lisboetas que viveram há 600 anos e ali foram enterrados, longe de suspeitarem que as suas ossadas seriam atracção turística espontânea e passageira num fim de Julho atípico da Lisboa deste século.

Aquele cemitério de gente há-de ser cemitério de lixo, pelo menos temporário, mal se instalem ali os ecopontos enterrados que a câmara municipal anda a espalhar por toda a cidade. O lixo tem sido muito amigo dos arqueólogos, que graças a esta campanha da autarquia já desenterraram muitos objectos que ajudam a contar mais um pedaço da História da cidade -- do neolítico à presença islâmica, da cristandade medieval ao comércio pré-terramoto.

A descoberta que mais entusiasma Vanessa Filipe e José Pedro Henriques nem é a necrópole medieval do Poço do Borratém, mas a casa que encontraram no Rossio. Trata-se de uma autêntica cápsula do tempo, dizem os arqueólogos da empresa Cota 80-86. “A casa caiu com o terramoto e já não foi limpa. Aterraram o quarteirão e construíram por cima”, explica Vanessa. Debaixo das camadas superficiais de terra, ali posta com a rapidez necessária ao ressurgimento de uma cidade em ruínas, encontraram um pátio e uma cozinha, ainda recheados com as peças do dia-a-dia de 1755. Como uma escova redonda, em madeira, que tinha crina de cavalo e serviria para limpezas, ou os resquícios de um balde, também em madeira.

Na cozinha estava a loiça da casa. Vanessa Filipe diz que “93% do serviço de loiça era porcelana”, o que, na sua opinião, não é anormal, pois em meados do século XVIII “a porcelana não é um bem de luxo”, é até “baratíssimo para os portugueses”. Nesta casa, que ficava na zona onde hoje há uma loja de tecidos (antiga livraria do Diário de Notícias), portanto próxima do Hospital de Todos-os-Santos e fronteira ao Palácio da Inquisição, havia porcelana chinesa, inglesa e alemã, mas a de origem portuguesa era a maioria. “Temos bocados de porcelana do século XVI”, diz José Pedro Henriques. “Significa que, a 1 de Novembro de 1755, quando a casa cai com o terramoto, há lá porcelana com 200 anos.” Herança de família? Coleccionismo?

Escavações maiores talvez permitissem mais respostas, mas estes trabalhos arqueológicos estão confinados ao espaço necessário à instalação dos ecopontos, que geralmente não ultrapassa os 20 metros quadrados. Ainda assim, os vestígios ali encontrados já permitem fazer um esboço preliminar de quem lá vivia quando a terra tremeu naquela distante manhã de Outono. Apareceram alguns exemplares das chamadas panelas africanas, o que indica que “naquela casa muito provavelmente havia escravos”, diz José Pedro. “Temos a certeza que não foram feitas em Portugal, mas não temos nenhum elemento que nos diga de onde são”, admite. Ainda na cozinha estavam uns “potes relativamente pequeninos”, cuja utilidade é uma incógnita, mas que “alguma bibliografia diz que eram para guardar gengibre”, acrescenta o arqueólogo.

Já no pátio estava uma arca para cereais, que continha trigo carbonizado. Depois do terramoto, Lisboa foi assolada por um maremoto e um violento incêndio. “Esta casa não levou com o fogo, mas apanhou o calor indirecto”, diz Vanessa Filipe. Foi o suficiente para milhares de sementes de trigo terem ficado negras como carvão.

Big brother do lixo

Há uma explicação simples para que esta colocação de ecopontos enterrados se tenha tornado um maná arqueológico. No centro histórico da cidade, carregado de restaurantes, hotéis, alojamento local e comércio, é onde existe mais produção de lixo e maior necessidade destes equipamentos. É também o local em que o subsolo está mais cheio: condutas de gás, esgotos, rede eléctrica, telecomunicações. Como desviar estas infra-estruturas é uma dor de cabeça, a câmara procura sítios imaculados, que é raro terem tido arqueólogos a espreitar. Por vezes não aparece nada, mas das 46 campanhas em que Vanessa e José Pedro já participaram, 15 eram “sítios com relevância arqueológica”, dizem.

Nos últimos três anos a Direcção Municipal de Higiene Urbana já enterrou ecopontos em 140 locais, estando em colocação noutros 30, num investimento total que ronda os 6 milhões de euros. Estes contentores têm um sistema electrónico que informa os serviços camarários sobre a quantidade de lixo em tempo real. Os funcionários têm mesmo uma aplicação de telemóvel que indica as percentagens de enchimento por categoria de resíduos. Há sítios em que o vidrão enche duas vezes por dia e é preciso que a recolha lá vá duas vezes. Noutros é o embalão que fica cheio em poucas horas. E, noutros ainda, passam-se dias até que um contentor encha.

A aplicação tem ajudado, mas é ineficaz a dizer se há lixo colocado indevidamente em redor dos ecopontos, como se vai vendo em vários sítios. É por isso que, indica fonte oficial do gabinete de Duarte Cordeiro, vereador dos Serviços Urbanos, está prevista uma “campanha de sensibilização maciça” para depois do Verão. Ao mesmo tempo, com cerca de 4000 cartões electrónicos distribuídos por restaurantes, hotéis e estabelecimentos comerciais com grande produção de resíduos, a câmara consegue saber com que frequência depositam lixo e em que quantidades. O big brother do lixo permite perceber padrões e actuar quando o comportamento foge ao habitual.

Um armazém de bijuteria junto ao Jamaica

O primeiro sítio onde se colocaram estes ecopontos foi na Rua da Moeda, esquina com a de São Paulo. Logo ali apareceu um canhão do século XVIII com cerca de um metro. Ao fim de três anos, a câmara decidiu pôr mais contentores nesse local, o que permitirá mais espreitadelas arqueológicas.

Além do Rossio, Vanessa e José Pedro destacam os achados da Rua Nova do Carvalho, no Cais do Sodré. “Apareceu-nos um muro entaipado. Começámos a destapar e deparamo-nos com um poço”, explica Vanessa Filipe. O curioso é que, ao que tudo indica, este poço existia a toda a altura do prédio, havendo em cada piso uma abertura “que servisse mesmo para tirar água do fundo”, diz José Pedro.

Para que essa estrutura e um outro poço posterior se mantivessem intactos, deslocaram-se um pouco os ecopontos. Nova surpresa: milhares de contas, anéis e missangas apareceram em catadupa. “Seria um espaço de armazém, um ponto de recolha até entrarem nos navios”, indica José Pedro Henriques. “Temos mais de 40 tipos de contas. Agora temos de perceber onde é que eram feitas e para onde iam. Este tipo de comércio pode estar ligado à escravatura”, avança Vanessa Filipe.

A análise do muito material já encontrado está ainda no início, embora estes arqueólogos já tenham levado comunicações sobre este assunto a alguns encontros e congressos. Como a intenção da câmara é instalar ecopontos em 500 locais da cidade, mais descobertas se adivinham. Bendito lixo.