Da astronomia aos bons costumes: a Inquisição e a censura científica
O Santo Ofício também foi responsável pela censura de livros. No caso de obras que tratavam de matérias científicas, os tópicos mais visados eram a medicina, a história natural, a astrologia e as artes divinatórias.
Responsável por impedir a difusão de doutrinas contrárias à fé católica, a Inquisição levou a cabo largas dezenas de milhares de julgamentos em Portugal, Espanha e Itália. Só no império português, terá conduzido pelo menos 40.000 julgamentos e condenado à morte mais de 2000 homens e mulheres entre 1536 e 1821. Apesar de os julgamentos e os autos-de-fé terem sido as acções mais visíveis e sinistras do Santo Ofício, o tribunal eclesiástico foi também responsável por uma acção bem menos visível, a censura de livros.
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Responsável por impedir a difusão de doutrinas contrárias à fé católica, a Inquisição levou a cabo largas dezenas de milhares de julgamentos em Portugal, Espanha e Itália. Só no império português, terá conduzido pelo menos 40.000 julgamentos e condenado à morte mais de 2000 homens e mulheres entre 1536 e 1821. Apesar de os julgamentos e os autos-de-fé terem sido as acções mais visíveis e sinistras do Santo Ofício, o tribunal eclesiástico foi também responsável por uma acção bem menos visível, a censura de livros.
A Inquisição desempenhou um papel de grande relevância na chamada censura repressiva, uma vez que uma das suas principais tarefas era a publicação e implementação dos Índices dos Livros Proibidos. No caso de obras que tratavam de matérias científicas, os tópicos mais visados eram a medicina, a história natural, a astrologia e as artes divinatórias. Não obstante o leque de disciplinas ser relativamente abrangente, o exemplo mais emblemático, mas também o mais anómalo, foi, sem dúvida, a condenação do heliocentrismo.
Em 1543, Nicolau Copérnico (1473 – 1543) publicou em Nuremberga uma das obras mais significativas da história da ciência, o De revolutionibus orbium coelestium. Para simplificar algumas questões técnicas no modelo geocêntrico de Ptolomeu, o modelo de Copérnico colocava o Sol, e não a Terra, no centro do Universo. A adopção generalizada do modelo heliocêntrico demorou várias décadas. No entanto, esta obra foi lida e utilizada durante mais de 70 anos pelos melhores matemáticos e astrónomos de toda a Europa. A situação alterou-se em 1616, com a proibição do De revolutionibus e de outros textos que admitiam a possibilidade da Terra se mover. A proibição de defender ou ensinar o modelo heliocêntrico teve repercussões tremendas nos anos seguintes e culminou na condenação de Galileu Galilei (1564 – 1642), em 1633.
Depois de ter abjurado publicamente a sua convicção de que o Sol estava no centro do Universo e de que a Terra se movia, Galileu foi condenado pela Inquisição a viver o resto da sua vida em prisão domiciliária e a cumprir uma série de penitências religiosas. Pelas suas graves consequências para a história da ciência, o caso Galileu tem caracterizado, em larga medida, a história das relações entre ciência e religião e, em particular, o modo de proceder da Inquisição em relação à censura científica. Porém, enquanto na condenação do modelo heliocêntrico, defendido por Galileu no Diálogo sobre os dois máximos sistemas (1632), o que estava em questão era uma contradição entre um modelo cosmológico e as Escrituras, na esmagadora maioria dos casos a Inquisição não se detinha sobre questões técnicas ou científicas, mas antes sobre aspectos teológicos, doutrinais ou morais.
Com a publicação do Índice Tridentino (1564), instituiu-se, pela primeira vez, um conjunto de dez regras que, na sua versão original ou em versões actualizadas, foram seguidas ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ordenadas pela gravidade das matérias a censurar, as regras tridentinas condenavam todas as obras proibidas pela Igreja antes de 1515 (Regra I), as obras de Lutero, Calvino e outros protestantes (Regra II), e as traduções da Bíblia em vernáculo (Regra III). Nenhuma das regras tridentinas visava directamente conteúdos científicos, mas as regras VII e IX vieram a ter consequências sobre os livros que tratavam matérias científicas.
Por atentarem contra o livre arbítrio, a regra IX condenava as obras de astrologia judiciária e artes divinatórias, permitindo apenas as obras de astrologia natural. A regra VII proibia todos “os livros que de propósito tratam de coisas lascivas e desonestas”, porque “não somente havemos de ter conta com a fé mas também com os bons costumes que com se lerem tais livros se corrompem e perdem facilmente”. A aplicação da regra VII foi decisiva na censura do médico português Amato Lusitano (1511 – 1568) e de várias outras obras de medicina.
A título de exemplo, veja-se a censura da Anatomia mundini (1541) do médico alemão Johannes Dryander (1500 – 1560). Num exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal, a intervenção censória foi particularmente grave e levou à eliminação de um fólio inteiro (fólio 30). Como a representação do sistema reprodutor feminino era considerada matéria lasciva, a aplicação da regra VII deveria ter levado ainda à censura do fólio seguinte. No entanto, a censura era exercida não só por censores, mas também por livreiros, bibliotecários e leitores, o que implicava uma certa arbitrariedade nos critérios aplicados. Mas a relação complexa entre a severidade dos Índices e das regras tridentinas e a sua aplicação efectiva daria outra história.
Historiador de ciência
Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação