Demissões: “O que vemos são os médicos a assumir a defesa dos doentes”
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, fala sobre a situação actual da saúde, a pressão sobre os profissionais e as queixas de falta condições no SNS.
Apesar de alguns sinais positivos, como a recente abertura de concursos para jovens especialistas, o bastonário dos médicos afirma que é preciso fazer mais. Em entrevista ao PÚBLICO, Miguel Guimarães diz que a capacidade da maioria dos hospitais está no limite. E quando a segurança clínica está em causa, refere, os médicos dão um grito de alerta. Foi o que se passou com pedidos de demissão em bloco. "É o que acho que todos os médicos do país têm de fazer ."
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Apesar de alguns sinais positivos, como a recente abertura de concursos para jovens especialistas, o bastonário dos médicos afirma que é preciso fazer mais. Em entrevista ao PÚBLICO, Miguel Guimarães diz que a capacidade da maioria dos hospitais está no limite. E quando a segurança clínica está em causa, refere, os médicos dão um grito de alerta. Foi o que se passou com pedidos de demissão em bloco. "É o que acho que todos os médicos do país têm de fazer ."
Porque parece haver um desfasamento entre o discurso político e o dos profissionais de saúde?
Há uma coisa que pode aproximar os discursos que é a evolução da medicina. Hoje é mais rápida, eficaz e tem menos complicações. Quando se diz que operamos mais doentes é porque as cirurgias são mais rápidas. Temos melhores resultados porque a medicina evoluiu. Mas se fosse feito um inquérito aos profissionais, provavelmente eles diriam que as coisas estão piores.
Porquê?
Porque existem deficiências identificadas. Não vale a pena os ministros da Saúde ou das Finanças dizerem que há mais médicos agora do que há cinco anos, porque as necessidades da população não são iguais. Temos mais pessoas que têm mais informação e são mais exigentes. E, na realidade, a nossa capacidade de resposta está mal. A grande maioria dos hospitais já está no limite. Continua-se a exigir mais a pessoas que já não conseguem fazer mais se não se aumentar a capacidade de resposta. Neste momento há muita coisa que precisa de mudar. Acho que o Ministério da Saúde ainda está a tempo de corrigir algumas situações. Percebo que não seja possível melhorar tudo de uma vez, mas há coisas que têm de começar a ser feitas.
Deu agora um sinal positivo com o lançamento dos concursos. Não diria no tempo ideal, que esse seria o mais rápido possível. Se abrimos logo as vagas, estes especialistas provavelmente optam por ficar no SNS. À medida que se vai demorando mais um mês, vão saindo. Sei de médicos que já saíram. Visitei o hospital de Vila Real e falei com uma jovem especialista de oncologia médica, uma das áreas que estão em crise. Estava à espera de concurso e como não abria e o número de vagas para a oncologia médica é inferior às pessoas que podem concorrer, está a decidir se vai trabalhar para a Bélgica ou França. Tem duas propostas altamente tentadoras em que vai ganhar muito melhor do que cá, ter condições melhores de apoio à formação continua, mais dias de férias. Como esta médica há muitos outros.
Este ano abriram mais vagas.
Um esforço que saúdo, embora depois a forma como as vagas foram abertas seja discutível, porque há hospitais que são deficitários que tiveram menos vagas do que as que deviam ter. Mas estão a fazer uma coisa interessante que é abrir mais vagas para tentar ir buscar alguns médicos à medicina privada ou que tenham saído do país. Acho positivo. O SNS tem uma vantagem que é ter uma carreira.
Mas tem sido um pouco desprezada.
A verdade é que os médicos estão numa carreira, mas ela não existe. Os concursos para assistentes graduados demoram anos para abrir, para assistente graduados sénior praticamente não existem, não há uma progressão real. Isto está a ter implicações na capacidade de resposta dos serviços, mas também na capacidade de formação. Nós podíamos ter capacidade para formar mais 200, 300 a 400 médicos se fossem corrigidas as principais deficiências que existem em vários centros hospitalares.
O Algarve, por exemplo, tem uma deficiência de capital humano brutal. É provavelmente o local do país onde os internos trabalham mais sozinhos, o que não pode acontecer. Temos tido queixas de vários internos sobre escalas de serviço de urgência, por exemplo Agosto, em que a maior parte dos postos de trabalho são ocupados por médicos internos e às vezes do primeiro, segundo e terceiro ano. E às vezes estão um ou dois especialistas no hospital.
O que pode a Ordem fazer?
Escrevi uma carta a todos os directores clínicos e directores de internato médico do país a ressalvar a importância que a formação dos internos tem e que obedece a legislação, no sentido dos internos não estarem a ser utilizados indevidamente para tapar buracos. Os internos têm de cumprir o programa de formação tal como está delineado, não podem estar sozinhos no serviço de urgência, não podem estar a fazer uma parte da formação que não corresponde ao programa. Recebemos recentemente uma queixa do Hospital Santa Maria, que motivou uma visita, porque os internos de várias especialidades, sobretudo de anos finais, estavam a fazer trabalho numa área que não corresponde à da formação.
Mas há mais hospitais?
Há mais hospitais com toda a certeza. Recebi agora mais denúncias de que esta mesma questão ou parecida está a acontecer no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental. Vou visitar o Hospital Egas Moniz para a semana.
Recentemente, os directores de serviço dos hospitais São José (Lisboa) e Tondela-Viseu apresentaram demissão por falta de condições. Há mais hospitais onde isso pode acontecer?
Dois onde pode acontecer: Vila Real e Gaia. Mas existem outros, pois vou recebendo mensagens e contactos. Vou tentando ajudar os meus colegas em tudo o que é necessário. Quer um hospital, quer outro têm condições difíceis, não só em termos de urgência mas de capacidade de resposta global. Quer um, quer outro têm tido promessas da Administração Regional de Saúde do Norte, do Ministério da Saúde, de resolução de algumas situações que não têm sido cumpridas.
Quer dar algum exemplo?
Em Gaia, a reestruturação do hospital passa por obras que permitam que os serviços que estão em condições degradantes possam passar para instalações adequadas e dignas para os profissionais, mas sobretudo para os doentes. Estão a ser prometidas há vários anos e nunca mais acontecem. É um pequeno exemplo. Quando as pessoas começam a sentir que a segurança clínica pode estar em causa, dão um grito de alerta. Foi o que fizeram os médicos de São José e as médicas da Maternidade Alfredo da Costa e é o que acho que todos os médicos do país têm de fazer. De alguma forma somos os provedores dos doentes. O que vemos são os médicos a assumir publicamente a defesa dos doentes.
Que queixas chegam sobre as condições de trabalho?
Desde a incapacidade de terem sistemas informáticos a funcionar como devem, a queixas de condições de trabalho objectivas de falta de materiais como fios adequados para cirurgias, dispositivos, equipamentos fora de prazo ou que deviam ter tido manutenção e não foi feita, pressões para se produzir mais. Raramente recebemos queixas de que estão a ganhar mal. Os sindicatos deveriam negociar uma nova tabela salarial com o Ministério da Saúde. Acho que este é o momento para o fazerem. Acho que os sindicatos deveriam avançar para uma actualização da carreira médica e para que seja considerada profissão de alto risco e desgaste.
Quantos documentos de escusa de responsabilidade por falhas já receberam?
Já chegaram à Ordem umas centenas. São vários tipos de situações, mas basicamente têm sempre a ver com o não terem as condições adequadas para o exercício da profissão ou por falta de equipamentos, de materiais adequados ou de capital humano. A última que recebi foi do Hospital Amadora-Sintra, de uma colega de obstetrícia-ginecologia que foi colocada a fazer urgência com um interno de segundo ano e com uma médica de clínica geral, quando a equipa-tipo devia ter quatro especialistas.
Estamos a um ano das eleições. Como vê a situação do ministro da Saúde?
O ministro da Saúde está fragilizado. Esta questão toda que envolveu a saúde e as finanças não foi boa para ele. O responsável pela saúde em Portugal é o ministro da Saúde, não pode ser o ministro das Finanças. O ministro da Saúde tem competências para governar a área da saúde e portanto tem de ter mais autonomia, mais capacidade de decisão e tem de ter aquilo que todos nós andamos a dizer e ele deve exigir, que é ter um orçamento maior para a saúde.
Acha que tem condições para mais quatro anos de mandato?
Não sei, tem de lhe perguntar a ele. Apesar de ser ano de eleições, pode ainda fazer alguma coisa de muitas que devia ter feito e não fez. Se tem ou não condições para fazer mais um mandato, depende do que vai fazer este ano. O primeiro-ministro tem de avaliar a situação e decidir. Isto pensado que vai continuar a ser o Dr. António Costa, o que tudo indica que vai acontecer. Tem de pensar se quer ou não valorizar mais a saúde e se o quer fazer com o ministro actual ou com outro. Tem várias pessoas dentro do Partido Socialista que podem desempenhar o cargo. O que é importante é que neste ano o nosso ministro da Saúde valorize mais a saúde dos portugueses.