Ameaças “impossibilitam o diálogo franco e qualificado” sobre aborto no Brasil
Supremo brasileiro termina audiências no dia em que o Senado da Argentina vota sobre descriminização. Em ambos os países, a questão é “mandar ou não para a cadeia a mulher que aborta”.
Um debate polarizado e violento: a investigadora e activista Débora Diniz está num programa de protecção policial na sequência de uma campanha de ameaças. É uma das especialistas e responsáveis de grupos de pressão ouvidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil em dois dias do debate sobre a descriminalização do aborto que termina esta segunda-feira. Vai participar na audiência escoltada pela polícia.
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Um debate polarizado e violento: a investigadora e activista Débora Diniz está num programa de protecção policial na sequência de uma campanha de ameaças. É uma das especialistas e responsáveis de grupos de pressão ouvidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil em dois dias do debate sobre a descriminalização do aborto que termina esta segunda-feira. Vai participar na audiência escoltada pela polícia.
A acção no Supremo decorre de um processo iniciado no ano passado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Instituto de Bioética Anis. A actual legislação permite o aborto apenas em caso de risco para a vida da mãe, violação e casos de anencefalia (uma condição rara de ausência parcial de crânio e cérebro no feto). Em todas as outras situações, mesmo em risco para a saúde da mãe, ou outros problemas no feto, não é possível, e quem fizer um aborto arrisca-se a penas de um a três anos de prisão (quem aborta) ou um a quatro (quem provoca o aborto).
Os proponentes do processo alegam que a criminalização do aborto, prevista em dois artigos no Código Penal de 1940, não respeita a Constituição, de 1988. A criminalização da mulher por um aborto atenta contra preceitos constitucionais sobre a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, entre outros, resume por email ao PÚBLICO a responsável de comunicação do Instituto de Bioética Anis.
Os números apoiam a visão de que criminalização atenta contra a vida: apesar de ser proibido, as mulheres abortam (segundo os dados de 2016, houve 416 mil abortos no Brasil, dos quais apenas 1667, ou seja, 0,4%, foram legais); e muitas sofrem problemas na sequência desses abortos, e algumas acabam mesmo por morrer.
Há um grande número de atendimentos nos serviços de saúde públicos por complicações decorrentes de abortos – a média anual é de cerca de 200 mil internamentos. Muitas vezes por os abortos terem sido feitos sem condições – pela própria mulher ou por médicos – há resquícios que ficam no corpo (de paus usados para abortar ou de placenta), levando a infecções.
As mulheres demoram muitas vezes a procurar de ajuda. Por vezes, por vergonha ou medo – há casos de médicos a mostrarem restos de embriões para castigar quem usou pílulas abortivas e chega ao hospital com problemas, diz a médica Greice Menezes, da Universidade Federal da Bahia. Há também relatos de médicos que chamam a polícia para interrogar mulheres suspeitas, mesmo a meio de uma hemorragia num hospital, contou uma destas mulheres à BBC Brasil.
A falta de tempo também contribui para adiar a procura de ajuda médica, já que muitas destas mulheres são mães de um ou mais filhos, muitas cuidam deles sozinhas e têm de trabalhar para os sustentar.
Quatro mortes por dia
Em muitos casos sofreram infecções. Quando chegam aos serviços de saúde, a infecção já está demasiado espalhada para ser controlada e acabam por morrer. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2016, há uma média de quatro mortes por dia nos serviços públicos de saúde devido a complicações na sequência de abortos clandestinos.
Em 2014, um caso tornou-se simbólico do problema: uma jovem, mãe de dois filhos, morreu na sequência de um procedimento numa clínica clandestina, e o seu corpo apareceu desfigurado. Os responsáveis da clínica retiraram os elementos de identificação que puderam do corpo, desmembraram-no e pegaram-lhe fogo, para não serem descobertos.
“Estamos na região do mundo que mais aborta, e também na que mais tem dispositivos punitivos para criminalizar a prática. Ser o lugar que mais persegue a mulher que aborta não resolve nem a questão do aborto nem protege o sofrimento da mulher”, afirmou a antropóloga Débora Diniz, citada pela revista brasileira Carta Capital. O que o Tribunal vai decidir, agora, sublinha, “é a resposta à pergunta”: “Vamos ou não vamos mandar para a cadeia a mulher que aborta?”
As ameaças a Débora Diniz mostram “quão radical é o processo de polarização política” no Brasil, “com discurso de ódio e cenas de intolerância cada vez mais frequentes”, comentou ao PÚBLICO por Skype Marta Rodriguez de Assis Machado, professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. “Este é um caso muito grave. Mas não é o primeiro, veja-se o que aconteceu com a filósofa Judith Butler”, que no ano passado foi agredida no aeroporto de Congonhas, São Paulo, ao sair do país. “Estamos num nível de uma espécie de fascismo, em que as pessoas podem ser agredidas pelas suas opiniões.”
Para o Instituto de Bioética Anis, estas ameaças “impossibilitam o diálogo franco e qualificado” sobre temas “tão importantes”.
"As pessoas não deveriam temer pelas suas próprias vidas por participarem numa audiência e testemunharem perante o mais alto tribunal do Brasil”, disse José Miguel Vivanco, director da divisão das Américas da Human Rights Watch. A organização de defesa dos direitos humanos está entre as entidades ouvidas pelo Tribunal: vai argumentar que para respeitar as suas obrigações em tratados internacionais, o Brasil tem de descriminalizar o aborto.
Foi Débora Diniz a autora da Pesquisa Nacional sobre o Aborto, um inquérito de 2016, que mostrou que uma em cada cinco mulheres com menos de 40 anos já abortou pelo menos uma vez, 67% das que abortaram têm filhos, 88% são religiosas, e as maiores taxas estão entre negras e indígenas de menor instrução.
Também na taxa de mortalidade se notam desigualdades, lembra o jornal Folha de São Paulo: segundo um estudo do Ministério da Saúde, uma mulher negra tem um risco duas vezes e meio maior de morrer na sequência de um aborto do que uma mulher branca.
Números e activismo
Na sexta-feira, as audiências do Supremo começaram com um médico antidescriminalização que pôs em causa os números que têm sido divulgados e terminaram com outro médico cuja mulher terminou uma gravidez por ter um filho deficiente com necessidade de cuidados a tempo inteiro.
A afirmação que os números estão errados, incluindo os dados da OMS que mostram que países em que o aborto é legal registam um menor número de interrupções da gravidez, é um dos argumentos mais usados por quem se opõe à descriminalização. O outro argumento, e o principal, é que se trata de uma “espécie de activismo judiciário”, como argumenta a Comissão Nacional dos Bispos do Brasil, citada pela agência Ecclesia.
Para Marta Rodriguez Assis Machado, a acção no Supremo justifica-se, já que este tem vindo a ver o seu papel aumentar. “O Supremo tem sido um actor central em várias questões, desde questões de casamento entre pessoas do mesmo sexo até como definir quem ganhou o campeonato [ri-se], e claro é o tribunal que revê uma grande importância no caso da Lava-Jato e que vai ter um impacto directo no processo eleitoral”, ao decidir se Lula da Silva pode ser candidato à presidência.
Além disso, houve precedentes em que o tribunal já se pronunciou sobre questões que têm que ver com o direito à saúde da mulher numa gravidez de feto inviável (o caso da anencefalia) e também de uso de células estaminais para investigação. Em ambos, mostrou uma inclinação para dar importância aos direitos das mulheres, não dando protecção absoluta a uma vida desde a concepção.
A professora de Direito nota, no entanto, que, ao contrário do que acontece nos EUA, o Supremo brasileiro não tem muita tradição de observar precedentes para manter a coerência. Por isso, o veredicto será a soma das opiniões legais individuais dos 11 juízes.
O que o precedente faz pensar é que este pode ser um processo longo. “O processo sobre o cérebro anencéfalo esteve no STF entre 2004 e 2012”, recorda Marta Rodriguez de Assis Machado. “Não há como saber quanto tempo demorará desta vez, apesar de haver sinais de um andamento mais célere.”