Os refúgios da história

Ao longo da história, condições diferentes e dinâmicas diversas geraram violência e levaram ao êxodo, “forçado” ou “voluntário”, de populações. Pode calhar a todos. As falhas de e da memória têm de ser necessariamente vigiadas. Revisitadas. E confrontadas.

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As falhas da memória

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, cerca de 300 mil italianos foram forçados a abandonar a Ístria e a Dalmácia e a região de Friul-Veneza Júlia, então anexadas pela Jugoslávia, liderada por Josep Broz Tito. A região tinha uma longa história de tensões político-militares acumuladas. Já em finais de 1943, cerca de 4000 pessoas por semana atravessavam o Adriático em barcos a rebentar pelas costuras, com perigo de vida, procurando chegar às margens de Apúlia, onde os esperavam campos de internamento. As imagens que hoje nos ocupam a atenção não são inéditas. Pouco antes da assinatura do Tratado de Paz, em 1947, cerca de 47.000 refugiados, italianos, já agitavam as mentes das autoridades, sendo que quase 12.000 provinham das colónias africanas do país. Em Itália, como em muitos outros lugares, os anos 1940 foram marcados por numerosos e heterogéneos fluxos populacionais, “voluntários” e “forçados”, que confrontaram as competências dos Estados e os limites morais das respectivas sociedades.

Não era a primeira vez, claro. Entre 1914 e 1918, durante a Primeira Guerra Mundial, cerca de 630.000 pessoas, a maior parte italianos, refugiaram-se no reino de Itália, provenientes de várias geografias e por diversas razões, com custos desiguais. Uma parte delas fê-lo em consequência da derrota militar em Caporetto, em 1917, que resultou na ocupação da zona pelos exércitos austríaco e alemão. Foram 244.858, de 308 municipalidades, com Údine, “a capital da Guerra”, à cabeça. Outros tantos saíram, resgatados ou “voluntariamente”, das zonas circundantes do rio Piave.

O impacto desta mobilidade humana foi tal que, pela primeira vez, o Estado italiano se viu obrigado a desenvolver formas políticas e legais de lidar com populações deslocadas, “gerindo” recursos e identidades colectivas, procurando distinguir exilados de refugiados (“nacionais” e “estrangeiros”) e de repatriados, incluindo os austríacos que falavam italiano ou os que tinham escolhido o idioma por razões políticas. Criou mecanismos de assistência social, incluindo um alto comissariado para os refugiados de guerra. Uns foram simultaneamente tratados como vítimas e heróis de guerra. Outros, como quase sempre, mereceram suspeição e preconceitos vários, em parte motivados por apreciações calculistas relativas ao impacto no mercado de trabalho ou ao acesso a incentivos sociais, num contexto de privação. Também como quase sempre, os que chegavam e não arranjavam logo emprego eram considerados indolentes: não queriam trabalhar, antes viver de apoios sociais vedados ao resto da população. A distribuição dos primeiros foi descentralizada, procurando evitar um afunilamento para as grandes cidades, por razões materiais e de “ordem pública”. A colagem do perigo de desordem iminente a estes grupos, tão exercitada pelos profissionais da instigação do receio nas nossas sociedades, também não é nova. Estas dinâmicas oferecem pistas importantes para reflectir sobre o passado e o presente. Sobre as falhas de e da memória.

No caso da Ístria e da Dalmácia, no pós-guerra, outros desafios se colocaram. O considerável “êxodo”, que, para alguns, se traduziu na deslocação para outras paragens que não Itália, esteve ligado a um conjunto significativo de atrocidades, nomeadamente as que ficaram conhecidas como os massacres foibe nos anos finais da guerra. Italianos foram atirados para o interior de foibas (cavidades cársicas), mortos no caminho para a deportação ou em campos de concentração. Numa primeira fase, entre 500 e 700 pessoas – carabinieri, líderes fascistas locais, funcionários públicos – foram assassinadas por grupos de partisans jugoslavos e, menos, por civis. Numa segunda, já no rescaldo da guerra, estima-se que vários milhares tenham sido massacrados e colocados nas foibas. Estas acabaram por simbolizar a deriva desumana da guerra e do costumeiro período de acerto de contas que se lhe segue: execuções sumárias, em massa. Com um único critério: a pertença étnica da vítima, sendo esta diabolizada pelo acidente de nascimento. O uso dos cemitérios abertos das foibas foi característico tanto do regime fascista como do jugoslavo. Ninguém pode lavar as mãos, apesar dos esforços de silenciamento histórico e dos jogos de passa-culpas.

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Retirada de um grupo de refugiados e de soldados italianos depois do avanço austríaco em Caporetto, em 1917 Mondadori Portfolio via Getty Images

Os massacres resultaram de várias motivações e objectivos, de diferentes momentos históricos e de distintas dinâmicas sociopolíticas. Muitas vítimas geraram as suas próprias vítimas. Os massacres decorreram, em parte, de sentimentos de vingança relativos à italianização e fascização compulsórias da população eslava. Por exemplo, no Trieste, as escolas croatas e eslovenas foram todas fechadas antes de 1928-1929, os nomes foram italianizados e políticas de colonização do meio rural foram adoptadas. Entre 50.000 e 100.000 croatas e eslovenos emigraram como resultado. Com a ajuda dos alemães, a Itália invadiu a Jugoslávia em 1941, ficando com a província de Ljubljana, o Montenegro e a costa da Dalmácia. A sua administração foi marcada, entre outras coisas, por políticas de remoção e transferência forçada de populações, com o seu subsequente internamento. Cerca de 30.000 pessoas foram colocadas numa rede de campos com condições impiedosas.

A administração italiana da região foi apenas um dos casos de crimes de guerra perpetrados pelas autoridades italianas durante a Segunda Guerra, que incluíram o uso de gás mostarda e o bombardeamento de hospitais da Cruz Vermelha. Crimes registados no documentário da BBC Fascist Legacy, realizado por Ken Kirby, em 1989, e que foi comprado pela RAI, mas que foi durante onze anos arquivado. Foram também bem documentados pelos governos jugoslavo, grego e etíope. Contudo, estes viram frustrados os seus esforços de extradição de cerca de 12 mil criminosos de guerra italianos identificados. Em parte, tal deveu-se à acção dos governos britânicos e norte-americano. Nalguns casos, a falta de julgamento sério e rigoroso é por demais evidente. Como afirmou Tony Judt, o pós-guerra foi marcado por uma particular conjugação de condições: as que apontavam para uma necessária regeneração histórica e as que ditavam uma amnésia colectiva parcial dirigida a pesarosas realidades do passado recente. Mas é duvidoso que seja necessário ou recomendável esquecer para recomeçar. Foram muitos os momentos de desumanidade que foram reprimidos na memória colectiva, incluindo alguns que envolvem refugiados e deslocados de vária espécie. Foram muitos os que passaram entre os pingos da chuva, sem que a sua culpa objectiva fosse reconhecida e sancionada legalmente. Muitos deles (e os seus “legados”) permanecem em relativo sossego, alguns com direito a mausoléus e cerimónias laudatórias ainda hoje.

O conhecido caso do general Pietro Badoglio – muito activo na “pacificação” da Líbia, enquanto governador da Tripolitânia e da Cirenaica, e na invasão da Etiópia, onde usou bombas de gás mostarda, merecendo como prémio o lugar de vice-rei e governador da Etiópia – é exemplar. Com o fim da guerra tornou-se primeiro-ministro e, em nome do seu posicionamento anticomunista, nunca foi julgado.

Casos igualmente “notáveis” foram os dos generais Rodolfo Graziani e Mario Roatta. O primeiro foi o “carniceiro de Fezzan”, para os berberes, e o “pacificador de Líbia”, para muitos italianos. Foi responsável pelo uso de armas químicas, pela criação de vários campos de concentração e de trabalho forçado, chegando, supostamente, a posar com cabeças inimigas decapitadas nas mãos. Na Etiópia reproduziu “tácticas” semelhantes, sendo apontado como responsável por massacres de milhares de autóctones. Em 1948, foram depositadas queixas contra ele na Comissão dos Crimes de Guerra nas Nações Unidas, sem sucesso. O processo terminou com um acordo entre o Governo etíope e a Grã-Bretanha, em razão das pretensões do primeiro na Eritreia. No mesmo ano, foi condenado, em Itália, a 19 anos por “colaboracionismo militar com os alemães”, dos quais cumpriu apenas quatro meses: apenas “cumpria ordens”. Não foi condenado por nada mais, apesar do currículo abundante em “pacificações” e “conquistas militares”. E em mortes. Em 2012, foi honrado com um mausoléu (com as inscrições patria e onore) e um parque memorial em Affile, comuna da região do Lácio, província de Roma.

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Ao centro, o general italiano Rodolfo Graziani, o “carniceiro de Fezzan”, conversa com o general alemão Eugen Ott, enquanto esperam por Benito Mussolini, Munzingen, Alemanha, a 17 de Julho de 1944 Mondadori Portfolio via Getty Images

O segundo, Roatta, liderou o assassínio de milhares de civis jugoslavos e o internamento de muitos outros em campos de concentração, sem apoio médico que atenuasse a fome e a falta de água por si impostas. Alguns autores afirmam que a taxa de mortalidade no campo de Rab superou Buchenwald. Foi ele o autor da linea di condotta que determinava a postura militar a seguir. A infame Circular 3C, de Março de 1942, constituiu um manifesto para a repressão. Internamento forçado, deportações, execuções, assassínios – uma verdadeira política de terra queimada – passaram a ser parte da conduta instigada, sancionada superiormente. Apenas se “cumpriam ordens”. São dele estas palavras para os seus homens: “Não se preocupem se os expulsos incluem pessoas inocentes. As operações devem ser breves e efectivas: se necessário, não hesitem em ser cruéis. Tem de ser uma completa limpeza. Nós temos de internar todos os habitantes e colocar famílias italianas no seu lugar, famílias dos mortos ou dos soldados feridos.” Em Novembro de 1943, as forças aliadas pediram a Badoglio que substituísse Roatta, em razão das queixas jugoslavas, o que se concretizou. O mesmo não sucedeu com o pedido da sua extradição. Nunca foi condenado, a não ser in absentia. Fugiu em 1945 para Espanha. Regressou a Itália, sem problemas, em 1966, dois anos antes de morrer.

Como já referimos, os massacres foibe derivaram ainda dos esforços de purga étnico-política por parte do regime comunista, que impendeu sobre vários grupos e comunidades, não podendo ser resumida aos antigos “colaboracionistas”. Apesar do desacordo sobre o número de mortos, cuja contabilidade tem sempre um interesse muito relativo e é frequentemente usada de modo meramente instrumental, a existência dos massacres não é disputável. O mesmo sucede com o êxodo populacional e com os refugiados que originou: foram substanciais e tiveram um enorme impacto na sociedade italiana de então.

Em Stromboli, de Roberto Rossellini (1950), a invocação de uma Itália acolhedora dos vários fluxos de deslocados internos e externos, em parte em resultado da necessidade de ressurgimento moral após o passado fascista recente, foi notória. Mas também revelou como a lituana Karin (Ingrid Bergman) é confrontada com a sua condição de forasteira (e com as desumanas condições de muitos dos campos de “acolhimento”). A recepção dos refugiados ditos “nacionais”, ela própria variável de acordo com a proveniência do deslocado (da Eritreia à Albânia, passando por Veneza Júlia) e da avaliação da sua italianidade foi distinta da providenciada aos stranieri, que incluíam eslavos e judeus. Estes foram brindados com todo o tipo de estereótipos e suspeições altamente criativas. E segura e tragicamente nocivas.

Após décadas de relativa mitigação pública, a presença dos massacres e do êxodo nas lutas pela memória foi recuperada já neste século, consagrada pela celebração, desde 2005, do dia 10 de Fevereiro como o Giorno del ricordo, instituída por Silvio Berlusconi e aprovada pelo Parlamento um ano antes. O dia da memória do êxodo e dos massacres não é, contudo, e com a mesma clareza, o dia da memória dos refugiados. Mesmo que os refugiados de Ístria e a Dalmácia sejam, apesar disso, bem mais evocados do que os Caporetto. Condições diferentes e dinâmicas diversas produziram a violência e o êxodo de populações. Pode calhar a todos. As falhas da memória têm de ser necessariamente vigiadas. Revisitadas. E confrontadas. A 1 Março de 2016, procurando promover a memória dos italianos da Ístria e da Dalmácia e isolá-los de qualquer comparação com os refugiados que hoje procuram abrigo no país, Matteo Salvini, então secretário da Liga do Norte, declarava no Il Giornale: “Não acho que os deslocados de guerra de Júlia tenham roubado, violado, agredido, exigido pequeno-almoço, almoço e jantar.”

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Ingrid Bergman e Mario Vitali interpretam uma refugiada lituana e o seu marido italiano numa cena de Stromboli, de Roberto Rossellini Hulton Archive/Getty Images

Uma história europeia

A história da primeira metade do século italiana, face à actualidade mais recente, transparece a evidente complexidade da questão dos refugiados, da sua definição, dos seus múltiplos usos históricos e potenciais instrumentalizações políticas, das operações que comporta. E do oportunismo dos que fazem e refazem a história a contento. Mas também nos alertam sobre as lógicas de rememoração e esquecimento.

Hoje frequentemente varrida para um canto da memória, e dos discursos públicos, a questão, por simplicidade de linguagem, do que fazer com indivíduos ou grupos sociais que se vêem forçados a fugir do seu país de origem é estrutural na história europeia. Ela acompanhou a emergência dos nacionalismos e a construção do Estado-nação, o objectivo de formação de comunidades políticas étnica, racial, cultural ou religiosamente homogéneas. Com acontecimentos anteriores não despiciendos, é, no entanto, com a erupção do primeiro conflito mundial que ela se torna um tema inevitável da história europeia, assumindo múltiplas manifestações. Do caso italiano, já referido, à questão arménia no Império Otomano, então em desintegração e reinvenção nacional, ao fluxo de refugiados russos como consequência da revolução de 1917 e a subsequente guerra civil. Deslocações de milhões de europeus marcaram o pós-guerra, ao mesmo tempo que se procurava estabelecer um sistema de protecção de minorias, através da recém-criada Sociedade das Nações, estabelecendo, internacionalmente, garantias para as populações minoritárias dentro de cada Estado soberano. A ascensão dos fascismos ampliou a saliência histórica da questão da fuga e da mobilidade transfronteiriça. A incapacidade (ou falta de vontade) das democracias ocidentais de dar resposta ao flagelo, resultado de preocupações sobre a viabilidade da entrada de populações étnica e culturalmente diferentes, bem como de cálculos económicos, ficou patente na tristemente célebre conferência de Evian, convocada em 1938, pelo Presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt, na sequência do Anschluss  (a anexação político-militar da Áustria por parte da Alemanha no mesmo ano).

Todavia, seria durante os seis anos que durou a Segunda Guerra Mundial que a questão assumiu uma dimensão inaudita. Estima-se que pelo menos 30 milhões de pessoas tenham sido deslocadas forçadamente durante o conflito. No fim da guerra, só na Alemanha existiam oito milhões de displaced persons (pessoas deslocadas dos seus países de origem). Esta era uma categoria específica que, por exemplo, não incluía os milhões de alemães étnicos que fugiram do Leste europeu à medida que o Exército Vermelho avançava, centenas de milhares morrendo na fuga. Incluía diversas nacionalidades e grupos sociais, de sobreviventes judeus dos campos a aliados dos exércitos nazis oriundos da Europa do Leste, passando por opositores políticos do regime soviético. A tarefa de repatriação colocava desafios colossais. As condições que algumas dessas “pessoas deslocadas” enfrentavam eram frequentemente terríveis. O drama da condição de refugiado tinha sido, de resto, partilhado por checos, austríacos, alemães ou italianos, internados em campos no Reino Unido, durante a guerra. Foi sobre eles que o livro de François Lafitte, The Internment of Aliens (1940), se debruçou, num então surpreendentemente inovador volume, de recolha de imprensa e diversas outras fontes e investigação etnográfica. Os campos de refugiados “aliados” eram, avant-la-lettre, resgatados à omnipresença dos campos nazis nas mentes dos homens e mulheres.

Os campos de internamento de refugiados, é preciso deixar claro, não são comparáveis às várias modalidades de campos alemães, nem as relações com o outro dos dois lados do conflito é equivalente. Nem durante a guerra, nem depois. Todavia, é salutar questionarmo-nos sobre que tipo de operações fizeram com que as histórias de sofrimento, hesitações e maquinações políticas pós-1945 fossem engolidas pela posterior história de sucesso da Europa Ocidental. Como é que a maior crise de refugiados do século XX continua tão ausente nos debates presentes?

Uma das razões para tal tem precisamente que ver com um processo paralelo à “nacionalização dos direitos” na contemporaneidade, que tornava apátridas e refugiados num inquestionável símbolo da história do século XX, os primeiros sendo “o grupo mais sintomático da política na contemporaneidade”, na formulação de Hannah Arendt. De facto, a história dos refugiados na Europa foi, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, marcada pela coexistência de dinâmicas soberanistas e internacionalistas, estas últimas procurando criar mecanismos que contrariassem as políticas restritivas de imigração nacionais e permitissem uma coordenação entre Estados, criando novas obrigações. Não por acaso, seria na sequência da revolução russa que seria criado pela Sociedade das Nações o primeiro organismo para auxiliar os seus refugiados, liderado por Fridjtof Nanssen, o inspirador do passaporte homónimo. Visões de transformação radical da gestão das populações floresceram durante o entre-guerras, muitas delas de inspiração eugénica, mais tarde alimentadas pela noção de Lebensraum, ou “espaço vital”. Outras, como a de Albert Thomas, director-geral da Organização Internacional do Trabalho, expressa na Conferência Mundial sobre População, em 1929, visavam criar mecanismos supranacionais que definissem “racional e imparcialmente” o número óptimo da população de cada país.

É, todavia, no pós-1945 que esforços mais consistentes se materializaram. Primeiro, com a criação, ainda em 1943, da United Nations Relief and Rehabilitation Administration e, mais tarde, da Organização Internacional dos Refugiados (OIR), que viria a ser substituída, em 1950, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), responsável por zelar pela aplicação da convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951. O conjunto de instrumentos criado marcava uma transformação substantiva em relação ao período do entre-guerras. Em primeiro lugar, o refugiado emergia como uma figura abstracta, não limitada a um conflito ou país em particular, como tinha sucedido no caso das comissões para refugiados russos ou alemães. A questão dos refugiados surgia como preocupação internacional central. Por outro lado, além do critério da perseguição política, o estatuto de refugiado incluía membros de um grupo social visado por um determinado Estado apenas por pertencerem a esse grupo. É importante sublinhar que a internacionalização da questão dos refugiados não resultava apenas de filantropia. Ela era aguçada pela então nascente Guerra Fria. Com a União Soviética deixada de fora da OIR, a gestão dos refugiados permitia infligir golpes “psicológicos” e acentuar as campanhas políticas e diplomáticas contra o crescente domínio comunista do Leste. A questão das “pessoas deslocadas” na Europa era vista como um problema com profundas implicações políticas, muito superiores ao seu estrito peso numérico. Este conjunto de factores explica porque, em poucos meses, seis a sete milhões das “pessoas deslocadas” instaladas na Alemanha tenham visto a sua situação solucionada, desde logo pelo repatriamento. O ritmo e dimensão inéditos deste movimento de pessoas seguramente contribuíram para que a história dos refugiados da guerra se tenha facilmente ofuscado da memória colectiva europeia.

Mais complicada foi a história daqueles que recusaram o repatriamento ou cujo repatriamento não era possível. Ficaram conhecidos como o “último milhão”, maioritariamente alojados nas zonas ocupadas da Alemanha. Viveram em campos vários anos após o fim do conflito, muitas vezes em condições deploráveis. Eram vistos por actores como o secretário de Estado norte-americano George Marshall como um risco para a estabilidade política da Europa ocidental e para a sua reconstrução económica. Constituíram a parte menos palatável do sucesso da “regeneração” do continente. Para alguns, eram o “lixo da Europa”. Para outros, como algumas empresas britânicas ou francesas, eram uma fonte apetecível de mão-de-obra, mais do que vítimas a precisar de apoio. Eram recrutados nos campos onde estavam alojados em função da sua compleição física e adequação ao trabalho nas minas ou na indústria. Os intelectuais eram normalmente preteridos. Hierarquias culturais ou étnicas não faltavam, os bálticos tidos por mais eficientes, os polacos como demasiado atreitos à vodka. Não eram apenas os soviéticos que acusavam os ocidentais de recurso a trabalho escravo. Claude Bourdet, antigo membro da resistência francesa, comparava o processo de selecção nos campos, entre os “aptos” e os “inúteis”, com os usados nos mais famosos Lager.

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Refugiados austríacos iniciam uma jornada de trabalho num campo de West Didsbury, Manchester, durante a II Guerra, em Março de 1940 Fox Photos/Getty Images

Ao invés do que por vezes hoje se tende a dar por assumido, a discriminação em relação aos judeus não se resolveu subitamente com o fim das hostilidades. Investigadores da ONU, à época, referiam que, ainda que não abertamente, elementos judeus eram preteridos nos processos de recrutamento. O primeiro-ministro sul-africano Jan Smuts, em 1947, explicava que o seu país “não seria a solução para o problema judeu”. Os próprios EUA, através de expedientes vários, discriminavam a entrada de refugiados judeus, por exemplo através da criação de contingentes destinados a elementos provenientes de um meio agrícola. Seria a criação do Estado de Israel, em 1948, que resolveria maioritariamente a situação deste grupo religioso, criando, na sua esteira, novas vagas de refugiados. A situação perdurou em relação aos que sobravam, maioritariamente não-judeus.

As retóricas chauvinistas de hoje afiguram-se como particularmente pouco criativas quando se recuperam os discursos sobre a incapacidade de integração das “pessoas deslocadas” de então. Eram, dizia-se, preguiçosas. Como perguntava um funcionário da OIR, não seria um contra-senso autorizar que “centenas de milhares de pessoas reduzidas à ociosidade não consumam ou produzam” quando a Europa se estava a reconstruir? Ademais, segundo alguns, a sua permanência nos campos tornava-os psicologicamente apáticos, não faltando alegações de que não seriam capazes de se integrar numa cidadania democrática dadas as suas vivências políticas e sociais anteriores. Temores sobre a sobrepopulação enquanto ameaça geopolítica adensaram-se nos finais da década de 1940 e inícios da de 50, levando a debates sobre o tema na NATO e no Conselho da Europa. A solução, para muitos destes deslocados, passou pela migração para fora da Europa, levando a OIR a envidar esforços de propaganda vários para os apresentar como política e civilmente integráveis, afins ao trabalho.

Os limites da imaginação legal

A acção internacional de gestão da questão das populações deslocadas assumiu, desta forma, um papel relevante no “sucesso” do pós-1945. No entanto, é importante sublinhar que, apesar dos avanços em relação ao entre-guerras, o novo regime internacional de refugiados esteve longe de ser universal. Por exemplo, a Convenção sobre Refugiados de 1951 dava corpo a uma operação classificatória restritiva: os refugiados eram apenas os que tinham sofrido com as dinâmicas políticas e sociais anteriores a Janeiro de 1951 e apenas na Europa. Excluía desse estatuto, e dos respectivos direitos, todos os que, por razões diversas, sofreram com as profundas disrupções originas pelas vagas descolonizadoras, dos retornados italianos ou holandeses aos refugiados que resultaram da partição entre a Índia e o Paquistão (1947) – que gerou quase 14 milhões de deslocados – à afirmação comunista na China (1949). No primeiro caso, as populações migrantes, em muitos casos forçadas a sair das suas terras – por vezes sem ter alguma vez pisado a metrópole –, não eram reconhecidas pelo primeiro artigo da convenção, apesar de a sua experiência corresponder, em muitos sentidos, ao seu conteúdo. A violência associada às trajectórias da descolonização, os acertos de contas descontrolados e as dinâmicas de perseguição que as transferências de poder geraram, todas estas razões estiveram muitas vezes por detrás da decisão de fuga, que implicou o atravessar de fronteiras internacionais, contrariando as mitologias legais da unidade pluricontinental. O caso da Argélia é rico em reflexões a este propósito. Os não-europeus que fugiram para a Tunísia e para Marrocos mereceram apoio do ACNUR. Os que foram para França, não. O facto de a Argélia ser parte integrante da metrópole não autorizava a outorga do estatuto de refugiados a estes últimos.

Os italianos que saíram das antigas possessões coloniais experienciaram problemas semelhantes. O caso da Líbia, sujeita à “colonização demográfica”, é revelador. A “nova América”, nova válvula de escape demográfico e, menos, espaço de todos os sonhos de mobilidade, resultara da junção entre as colónias da Tripolitânia, da Cirenaica e de Fezzan em 1934, tendo sido incorporada na Itália em 1939. Um ano antes, sob direcção do governador Italo Balbo, um camicie nere de Ferrara, 20.000 agricultores italianos foram colocados no país. No final da década, cerca de 12% da população, cerca de 110.000 pessoas, eram colonos italianos. Os planos para os anos 1960 apontavam para 500.000. A partir de meados de 1940, a situação começou a mudar. O retorno da comunidade italiana tornou-se uma realidade. Na época, existiam relatos que asseguravam que cerca de 8000 crianças italianas tinham sido separadas dos seus pais, na confusão das evacuações que se seguiram. Muitos dos membros da comunidade italiana na Líbia seguiram para outras paragens. Muitos procuraram voltar à Líbia clandestinamente. A saída maciça da Líbia só culminou nos anos 1970, quando Muammar Kadhafi expulsou os remanescentes 20.000 italianos, juntamente com judeus líbios. A propriedade de ambos foi confiscada, com a justificação de que era uma reparação em razão da colonização.

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Uma coluna de deslocados resultante da divisão da Índia e do Paquistão, em 1947 Margaret Bourke-White/The LIFE Picture Collection/Getty Images
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Repatriados franceses vindos da Argélia chegam ao aeroporto de Marselha, em Julho de 1962 Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

Estes são apenas dois exemplos de como a relação entre refugiados e descolonização nos permite questionar as histórias do presente. Hoje, em plena “nova crise” dos refugiados, é curioso constatar que muitos dos que peremptoriamente se batem contra a chegada de refugiados ao continente são os mesmos que rejeitam qualquer crítica ao processo de disseminação da população europeia pelas suas vastas possessões imperiais. O impacto apocalíptico anunciado pela chegada de populações “diferentes” à Europa contrasta com os “benefícios” pretéritos da chegada europeia a África e à Ásia. Que os dois processos impliquem acomodações sociais radicalmente desiguais nas “sociedades de acolhimento” não inibe declarações de orgulho civilizacional. O paradoxo é visível em diversas latitudes, inclusive bem perto de nós, quando se exigem reparações para os “espoliados da descolonização” (brancos, claro) ao mesmo tempo que se rejeitam políticas generosas de acolhimento de refugiados em nome da preservação do “nosso modo de vida”.

Voltando ao passado, o regime de refugiados instituído após o fim da Segunda Guerra foi profundamente condicionado pela experiência histórica europeia. Mas como sublinha B. S. Chimni, especialista em direito internacional, “a vida e a epistemologia não imitam categorias legais”, estas é que procuram “disciplinar a vida e o conhecimento ao serviço dos interesses dominantes numa sociedade”. A definição contida na convenção, em contradição com o mandato da ACNUR (que permitiu a este último, por exemplo, intervir na questão palestiniana desde 1948), foi moldada pela história. Foi-o em 1956, quando a vaga de repressão soviética na Hungria gerou novos fugitivos, a quem o estatuto de refugiado foi atribuído apesar de não cumprirem todos os requisitos legais, Guerra Fria oblige. Ou quando em 1967 os limites geográficos e cronológicos foram suspensos pela introdução dos “bons ofícios” do ACNUR face às crescentes crises que assolavam o “Sul global”.

Vários debates podem ser suscitados sobre o regime internacional de refugiados e a sua história. Por exemplo, é inegável que a questão da fuga involuntária de grupos populacionais resulta de factores internos nas sociedades de origem e acolhimento e ainda de dinâmicas globais e transnacionais. Mas isso não pode ser um convite à inacção. Outro, mais comum, sustenta-se na distinção entre o refugiado, eminentemente político, e o migrante, movido por razões económicas. A história está repleta de exemplos de como esta distinção é elusiva e, muitas vezes, invocada apenas com o objectivo de esvaziar a figura do refugiado e deixá-lo desamparado. No contexto europeu (e ironicamente), é mobilizada por muitos que fizeram por esquecer a trágica história do continente. Num momento em que um olhar crítico é frequentemente rotulado de “autoflagelante”, por ausência notória de argumentos sérios de qualquer espécie, deixamos como convite que, superadas as suas limitações, se recupere e empunhe esse legado da “civilização ocidental”, misto de utilitarismo e generosidade, simbolizado pela elevação da questão dos refugiados a um compromisso de toda a humanidade.