Para Bruno Dumont, o apocalipse é quando um homem quiser
Homenageado por Locarno com um prémio de carreira, o autor de O Pequeno Quinquin e Camille Claudel 1915 estreia no festival a sua nova minissérie de burlesco transgressivo: Coincoin et les z’inhumains, uma história de fim do mundo surreal, dadaísta e circense.
Portanto, vai uma pessoa à sua vidinha e, paf, de repente cai-lhe em cima uma espécie de massa negra que tanto pode lembrar um derrame de petróleo como os conteúdos de um esgoto. Ninguém sabe muito bem de onde é que a massa aparece, só que cai do céu como quem não quer a coisa um pouco por toda a parte, e os peritos da polícia dizem que “não é matéria humana”. É a invasão extraterrestre que começa, é o apocalipse, o fim do mundo, é o caos e a mutação, tudo junto e ao mesmo tempo numa França profunda que olha para os negros como alienígenas e onde a demagogia e a estupidez parecem contagiosas.
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Portanto, vai uma pessoa à sua vidinha e, paf, de repente cai-lhe em cima uma espécie de massa negra que tanto pode lembrar um derrame de petróleo como os conteúdos de um esgoto. Ninguém sabe muito bem de onde é que a massa aparece, só que cai do céu como quem não quer a coisa um pouco por toda a parte, e os peritos da polícia dizem que “não é matéria humana”. É a invasão extraterrestre que começa, é o apocalipse, o fim do mundo, é o caos e a mutação, tudo junto e ao mesmo tempo numa França profunda que olha para os negros como alienígenas e onde a demagogia e a estupidez parecem contagiosas.
Entretanto, num átrio de um luxuoso hotel suíço, Bruno Dumont diz que o apocalipse, vai-se a ver, é uma coisa permanente, quotidiana. Todos nós mudamos diariamente, tornamo-nos aos poucos outras pessoas. “Neste momento é a passagem do tempo que me preocupa enquanto cineasta. Como é que o ser humano enfrenta a mudança e a imobilidade. Somos quem fomos, ou somos quem somos hoje?”
Foi por isso também que Dumont inventou o apocalipse burlesco e festivo e circense de Coincoin et les z’inhumains, minissérie (ou cinefilme?) de quatro horas que teve estreia mundial em Locarno fora de concurso na Piazza Grande, ao mesmo tempo que o festival suíço lhe outorgou o Leopardo de Honra pelo conjunto da sua carreira).
Coincoin é a “sequela” de O Pequeno Quinquin, minissérie que se tornou um fenómeno sério e de popularidade (bateu todos os recordes de audiência do canal Arte e foi a sala em todo o mundo), experiência burlesca e transgressiva que destruía os cânones da série, do policial, e da própria percepção pública — e que mudou instantaneamente a percepção pública do realizador francês, antigo ensinante de Filosofia, até aí considerado sisudo e metafísico. Por culpa, diz ele ao PÚBLICO, de Juliette Binoche, que dirigiu em Camille Claudel 1915: “É importante ser sério, porque a gravidade é necessária, mas a gravidade surge da leveza, e o burlesco surge do trágico, é um trágico que corre mal. Descobri isso com Binoche: sempre que um take corria mal desmanchávamo-nos a rir. A força da comédia está sempre a rodar à volta da tragédia.” A descoberta fascinou de tal modo Dumont que o seu cinema se abriu ao burlesco, ao delírio e à experiência como nunca antes, com uma comédia ainda mais louca, Ma Loute, e uma versão musical da infância de Joana d’Arc, Jeannette (cuja sequela Dumont está agora a começar a rodar).
Coincoin, então, é Quinquin quatro anos mais tarde (e Dumont já tem na cabeça uma terceira aventura com a personagem, que irá fazer a ligação com um seu filme anterior, La vie de Jésus). Chamam-lhe agora Coincoin, mas continua a viver no mesmo cantinho nortenho à beira-mar e continua a meter-se em sarilhos com toda a gente, e sobretudo com a dupla de polícias formada pelo comandante Van der Weyden e pelo tenente Carpentier (com as suas eternas piruetas sobre duas rodas ao volante do carro). Confrontados com a estranha massa extraterrestre que começa a cair sabe-se lá de onde, a sua investigação parece não descobrir nada e enterra-se na lama, perdão, na incapacidade de perceber sequer o que se está a passar — ou seja, na estupidez, no preconceito, no medo do outro, do novo, do estranho.
Divertir, não estupidificar
A estupidez é um tema recorrente de Dumont — uma espécie de santa loucura porque (diz ele): “A estupidez é uma espécie de salvação. Esculpimos a nossa inteligência na nossa estupidez, esculpimos a nossa bondade na nossa maldade. E sempre que nasce uma criança temos de recomeçar do zero, porque é preciso educá-la. Não interessa que estejamos no século XXI; para o recém-nascido, é sempre o princípio do mundo.” O tal apocalipse quotidiano, (re)começar do zero diariamente, que para Dumont o cinema também é. “Os filmes são eles próprios um apocalipse, ao mesmo nível de um quadro, de uma peça musical, de um romance — são obras que têm uma função revelatória, um mundo que começa, que vive e que termina. Chama-se a isso contar uma história. Todo o recomeço é uma repetição, é sempre a mesma coisa e é sempre tudo diferente, como Proust definiu na perfeição na sonata de Vinteuil.”
E poucas coisas cumprem essa função “revelatória” como o burlesco, como diz Dumont. “A distracção existe para nos educar — o cinema deve ser divertido para nos elevar. Quando vejo um filme do Bucha e Estica, rio-me, mas rio-me de mim, porque há algo de ridículo na natureza humana, faz-me bem. O cinema perdeu um pouco a sua função catártica por causa desse excesso de cinema puramente de divertimento, que estupidifica o público. E nós divertimos para construir, não para esquecer a vida ou para nos distrair da existência: o cinema serve para aumentar a consciência da nossa vida. Não é um simples carrossel.” Bem-vindos ao apocalipse.
O PÚBLICO está em Locarno a convite do Festival de Locarno