O nosso corpo está preparado para vagas de calor cada vez mais frequentes?
Temperaturas elevadas e ondas de calor serão uma realidade nos próximos tempos. Como a mortalidade está associada a ondas de calor súbitas, com temperaturas acima dos 37 graus, todos devemos tomar precauções.
Nos últimos dias, em Portugal continental, tem sido impossível sair à rua e não sentir um calor abafador. Desde quinta-feira que o país tem estado debaixo de calor extremo, com vários distritos sob aviso vermelho (o mais grave). Por enquanto ainda não chegámos a uma onda de calor, mas os alertas da comunidade científica têm-se feito ouvir nos últimos tempos: no futuro, as ondas de calor continuarão a aumentar. Estará o nosso corpo adaptado a estas temperaturas tão elevadas? Não, e, embora haja grupos de risco, devemos todos tomar precauções.
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Nos últimos dias, em Portugal continental, tem sido impossível sair à rua e não sentir um calor abafador. Desde quinta-feira que o país tem estado debaixo de calor extremo, com vários distritos sob aviso vermelho (o mais grave). Por enquanto ainda não chegámos a uma onda de calor, mas os alertas da comunidade científica têm-se feito ouvir nos últimos tempos: no futuro, as ondas de calor continuarão a aumentar. Estará o nosso corpo adaptado a estas temperaturas tão elevadas? Não, e, embora haja grupos de risco, devemos todos tomar precauções.
Temperaturas acima dos 40 graus Celsius foram uma realidade em muitos sítios do país nestes dias. Na quinta-feira, a temperatura máxima mais elevada registou-se na estação meteorológica de Mora (distrito de Évora), com os termómetros a chegarem aos 45,7 graus. Na sexta-feira, Alcácer do Sal (Setúbal) alcançou os 45,9 graus e já neste sábado Alvega, no distrito de Santarém, marcou 46,8ºC?. As temperaturas mínimas também têm sido elevadas, atingindo valores próximos de 25 graus em grande parte do território e quase 30 graus em locais do Centro e Sul do país.
Em comunicado, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) comparou esta situação à onda de calor de 2003, em que se registaram valores muito elevados da temperatura mínima e da temperatura máxima. A 1 de Agosto desse ano, Amareleja chegou aos 47,3 graus.
O calor que tem assolado o país deve-se a um anticiclone que transporta uma massa de ar quente do Norte de África para a Península Ibérica, explicou à agência Lusa Paula Leitão, meteorologista do IPMA. Paula Leitão afirmou ainda que não estamos perante uma onda de calor. Afinal, segundo a Organização Meteorológica Mundial e o índice de duração adoptado por Portugal, uma onda de calor é caracterizada por uma temperatura cinco graus Celsius acima do valor médio diário no período de referência durante, pelo menos, seis dias consecutivos.
“Aquilo que se está a passar é uma manifestação das alterações climáticas”, diz Filipe Duarte Santos, físico especialista em alterações climáticas, referindo-se também às ondas de calor. “A onda de calor é uma consequência da intensificação do efeito de estufa, que aumenta a temperatura média global e torna as ondas de calor mais frequentes.”
O físico não tem dúvidas de que serão cada vez mais frequentes e, apontando o último relatório do Painel Intergovernamental para a Alterações Climáticas (IPCC), de 2013, destaca que a comunidade científica já tem vindo a fazer esse aviso há algum tempo. “É provável que a frequência de ondas de calor tenha aumentado em muitas partes da Europa, Ásia e Austrália”, lê-se num resumo do relatório, referindo-se que deverão ocorrer com mais frequência e durabilidade.
Também um estudo na revista Nature Climate Change de 2017 confirmou a continuação do aumento de frequência das ondas de calor e o risco de um aumento de mortalidade que está associado a estas temperaturas extremas. Segundo o trabalho, 30% da população mundial está hoje exposta a, pelo menos, 20 dias por ano com estas ondas. E prevê-se que em 2100 será já 48% da população, ou 74% caso as emissões de gases com efeito de estufa continuem a subir nos níveis actuais.
“Mesmo que se consiga cumprir o Acordo de Paris [que quer limitar a subida da temperatura até aos dois graus], as ondas de calor serão mais frequentes durante um certo período. Mas esse aumento vai ser menor do que se não se cumprir o Acordo de Paris”, adianta Filipe Duarte Santos. “Se não se fizer uma transição energética para as energias renováveis e não se passar a ter muito maior eficiência energética, então as ondas de calor vão tornar-se mais gravosas no futuro.”
Isto pode ter consequências na agricultura. “Se for uma onda de calor com temperaturas prolongadas e elevadas, pode queimar as plantas, que não resistem a períodos muito grandes de temperaturas elevadas”, sublinha o físico, sublinhando que o cenário ainda é pior quando se conjugam as ondas de calor com a seca. “As ondas de calor, sobretudo associadas à secura do solo, potenciam o risco de incêndio florestal.”
Além disso, há consequências para a saúde humana. “Não estamos preparados para viver com temperaturas acima da nossa temperatura corporal e prolongadamente.”
Num estudo na última edição da revista PLOS Medicine destaca-se que a mortalidade provocada pelas ondas de calor vai aumentar de forma drástica em muitos locais do planeta. Ao todo, recolheram-se dados de 412 cidades de 20 países entre 1971 e 2010 e fez-se uma previsão entre 2031 e 2080. Sem dados concretos para Portugal, os cientistas avisam que em Espanha haverá um aumento de 292% nas mortes com origem em ondas de calor face ao período de 1971-2010.
Até onde aguenta o nosso corpo
Estará então o nosso organismo adaptado ao calor que se tem feito sentir? Paulo Nogueira, director de Serviços de Informação e Análise da Direcção-Geral da Saúde, responde que, em princípio, não: “Há alguma evidência de que nos adaptamos à medida que a temperatura aumenta, mas quando acontecem estas situações mais extremas e um pouco repentinas não temos tempo para tal.”
Para percebermos o que acontece, Natália Marto, médica internista e docente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, explica que, dentro de certos limites, o conforto térmico do corpo é alcançado através de mecanismos de termorregulação. “O aumento da temperatura ambiente provoca um aumento da temperatura do corpo, o que desencadeia mecanismos que permitem ao nosso corpo perder calor: a transpiração e a dilatação dos vasos sanguíneos”, indica. E salienta que a idade avançada, as doenças cardíacas e certos medicamentos interferem com estes mecanismos e fazem com que estes indivíduos sejam mais susceptíveis ao calor. “Durante períodos de calor intenso, sobretudo com duração de vários dias, estes mecanismos não são suficientes para manter o equilíbrio do nosso organismo.”
Quais são os nossos limites fisiológicos? A médica responde que isso difere consoante a região do planeta – por exemplo, nas regiões mais quentes da Europa a mortalidade devido ao calor acontece com temperaturas mais elevadas – e a tolerância ao calor varia consoante diversos factores.
Paulo Nogueira exemplifica que, nesta altura do ano, em Lisboa, o calor tem impacto a partir dos 32 graus Celsius. Já no interior do Alentejo, esse impacto sente-se acima dos 35 graus. Além disso, a adaptação ao calor evolui ao longo do ano. Em Lisboa, no início de Maio temperaturas acima dos 29 ou 30 graus já têm impacto, mas agora esse impacto será já acima dos 32 graus.
“O ser humano é capaz de tolerar temperaturas extremas – até 60 graus Celsius – se a exposição durar apenas minutos. Tipicamente, a mortalidade associada ao calor surge durante ondas de calor de instalação súbita, com dias sucessivos de temperaturas elevadas (acima dos 37 graus Celsius), acompanhados também de temperaturas elevadas no período nocturno, maior humidade relativa e níveis elevados de poluição atmosférica”, esclarece Natália Marto, referindo que, quando a nossa capacidade de adaptação é ultrapassada, a temperatura do corpo sobe para valores que causam alterações nas funções dos órgãos. O que pode mesmo levar à morte.
Por tudo isto, aconselha-se que se evitem as horas de maior calor (entre as 11h e as 17h) na rua, na praia ou que se faça desporto no exterior; que se use roupa fresca, menos apertada e fresca; que se beba muita água (mesmo quando não se tem sede) e se coma comida fresca. Evite-se a exposição directa ao sol e deve usar-se protector solar, chapéu e óculos de sol.
Embora os maiores grupos de risco sejam os idosos, as crianças, os doentes com insuficiência cardíaca ou com doença pulmonar obstrutiva crónica, todos devemos cumprir estas recomendações. Afinal, como aponta Natália Marto, “um indivíduo saudável pode sofrer um golpe de calor”. Esta é a causa de morte directamente atribuível ao calor mais frequente e pode resultar da exposição a temperaturas altas ou exercício físico intenso e prolongado. “Um exemplo frequente de vítimas de golpe de calor são os trabalhadores da construção civil a trabalhar ao ar livre ou militares durante exercícios no exterior.”