Aprendizagens Essenciais: Vale a pena? Não vale a pena? Ou a alma é afinal pequena?
Entre Programa e Metas, por um lado, e Aprendizagens Essenciais, por outro, cada um navegará nas águas pardacentas de um simplismo escorado na ignorância e na confusão.
Depois de deixar assentar alguma poeira do furor legislativo do actual Ministério da Educação, o panorama que se propõe para os próximos anos é infelizmente desolador. Não, nem todos os cidadãos são iguais. Sobretudo, nem todos serão iguais.
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Depois de deixar assentar alguma poeira do furor legislativo do actual Ministério da Educação, o panorama que se propõe para os próximos anos é infelizmente desolador. Não, nem todos os cidadãos são iguais. Sobretudo, nem todos serão iguais.
As Aprendizagens Essenciais agora propostas efectivamente reduzem Programa e Metas Curriculares, que o próprio documento considera continuarem em vigor (e em cuja elaboração estive activamente envolvida). Assim, entre Programa e Metas, por um lado, e Aprendizagens Essenciais, por outro, cada um navegará nas águas pardacentas de um simplismo escorado na ignorância e na confusão.
Falo apenas da disciplina de Português para o Ensino Secundário – e para já apenas da Educação Literária, que foi “naturalmente” onde a poda se deu (pois onde poderia ela dar-se, senão aqui?).
Vejamos: no 10.º ano desaparecem três curtas narrativas (Fernão Lopes e uma narrativa da História Trágico-Marítima) cuja função era, além de permitir ler belíssimos, se bem que breves, textos, dar a ver como a nossa literatura se tece de História – mas, como a disciplina de História também levou machadadas, nada disto é de estranhar. Impõe-se a pergunta: a quem é que isto NÃO interessa? Compreender diferentes perspectivas históricas obriga os alunos a pensar: há quem considere que não devemos dar-lhes esse trabalho.
No 11.º ano, permitam-me dizer que há, não um, mas dois escândalos: o desaparecimento da orientação explícita de que Os Maias são uma das obras preferenciais de Eça de Queirós a ler (porque são uma das obras referenciais do cânone da literatura portuguesa, como apontaram Carlos Reis e Manuel Alegre); e aqueloutra que, de Cesário Verde, se limita a dizer que é obrigatória a leitura de três poemas, sem mencionar o extraordinário O Sentimento dum Ocidental, poema sem o qual Fernando Pessoa não existiria, como muita da poesia do século XX nunca teria podido existir. Não perceber isto representa uma terrível ignorância. Como se pode operacionalizar a reflexão sobre o lugar da épica na poesia portuguesa (proposta no Programa) eliminando o maior elo entre Camões e Fernando Pessoa, que é Cesário Verde?
No 12.º ano, em um lugar do documento mencionam-se apenas Pessoa ortónimo e os três heterónimos clássicos, Campos, Caeiro e Reis – mas em outro lugar do mesmo documento refere-se o estudo de “prosa” de Pessoa, referindo-se O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares (que não é ortónimo). Em que ficamos? Desaparecem ainda quaisquer referências a narrativas do século XX que não um dos dois romances propostos de José Saramago. No Programa e Metas Curriculares estavam três brevíssimos e belíssimos contos de diferentes autores, para se escolherem dois. Quem acabar o 12.º ano ficará a pensar, com razão, que no século XX não houve escritores de narrativa, à parte o nosso Nobel (que, sendo grande, não deve apagar nada).
Eis algumas das consequências do desvanecimento democrático que as AEs vêm propor (e fico-me pelo Português):
1. Flexibilização curricular: escolher escolas, resignar-se a outras – umas, mais exigentes, serão procuradas por pais, exigentes, de futuras “elites” (e estas existem sempre, senhores educadores, resta saber onde são escolhidas e como são formadas); noutras, para os filhos dos que vêm de casas menos afortunadas pela cultura, negociar-se-ão conteúdos mais apropriados, que lhes facilitem a vida à primeira vista – e não lhes dêem demasiada formação (porque basta ir ao Google, senhores!, como respondeu uma responsável de uma associação de professores).
2. Escolas públicas para diferentes públicos: teremos assim escolas públicas com diferentes programações e percursos diferenciados. Um dos cavalos de batalha deste Ministério da Educação foi o de que o melhor ensino é e deve ser o público. Pois bem, a resposta certa é: “depende”. Das negociações de conteúdos. Do lugar geográfico. Do director. Das relações com a autarquia. Da preparação e da escolha dos professores. Em suma: dos interesses instalados.
3. Simplificação e desqualificação: cidadãos de segunda. Eis aqui o deficit democrático em todo o seu esplendor. Alguns saberão menos do que o mínimo. Não estarão, pois, preparados para nada de exigente no futuro, porque isso lhes foi negado (sim, a exigência é uma oportunidade, não uma traição à cidadania). Os cidadãos de primeira saberão que só com esforço se atinge qualidade. Os outros farão a sua vida por onde os políticos lha terão permitido fazer.
4. A casa dos que sabem e a casa dos que não querem saber: a origem social e pessoal dos estudantes tornar-se-á cada vez mais o factor diferenciador dentro e fora da escola. Esta abdica ainda mais da sua função de elevação social. Às elites aquilo a que elas têm acesso fora da escola. E às massas aquilo que a escola, cada vez mais rasa, consegue fornecer. Os alunos não conseguem ler Os Maias? A solução está à mão: deixemos de ler Os Maias. Todos. A literatura é difícil? Substitua-se, a pouco e pouco, por textos “mais acessíveis” e que preferencialmente a ninguém exijam o esforço de pensar criticamente.
5. Uma História sem História: Almeida Garrett e Eduardo Lourenço disseram ambos (por palavras mais sábias) que Portugal é um país pequeno com uma História muito grande. A questão é a seguinte: elevamo-nos e qualificamo-nos pela História? Ou fazemos apagões históricos, em todas as disciplinas, para que o nosso pequeníssimo presente nos dê a medida do que somos? A resposta está à vista: vale a pena? Não vale a pena? Talvez a alma seja afinal pequena.