Torga, sempre
Miguel Torga é um dos escritores portugueses que deveria ser de leitura obrigatória, sem ser obrigatório.
Há dias, voltei ao Espaço Miguel Torga, em São Martinho de Anta. Desta vez para participar com Fernando Alves numa iniciativa com o sugestivo nome “A vida passa lá fora”. Foi uma saborosa razão para lá voltar. E também para usufruir da atmosfera sobre e em redor de Miguel Torga, através de alguns dos seus “hemogramas de letras” e fotografias do seu itinerário de vida, num espaço sublimemente simples da autoria do Arq. Eduardo Souto de Moura.
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Há dias, voltei ao Espaço Miguel Torga, em São Martinho de Anta. Desta vez para participar com Fernando Alves numa iniciativa com o sugestivo nome “A vida passa lá fora”. Foi uma saborosa razão para lá voltar. E também para usufruir da atmosfera sobre e em redor de Miguel Torga, através de alguns dos seus “hemogramas de letras” e fotografias do seu itinerário de vida, num espaço sublimemente simples da autoria do Arq. Eduardo Souto de Moura.
Ali, emociono-me genuinamente. Diante de vistas e descobertas, sóis e sombras, atmosferas e hábitos que sempre desenho na minha imaginação de leitor. Vibro com o respeito torguiano pela mãe-natureza e pela dignidade da cultura do simples, hoje tão arredia. “Terra de Deus e dos deuses que nenhuma imaginação descreve”, assim se referia ao seu amado Trás-os-Montes, a partir do qual cinzelava uma escrita profunda, às vezes agreste, reflectindo a sua inalienável origem, a natureza austera, a magreza da vida real, o suor do trabalho honesto e generoso. Tudo se torna mais luminoso quando se respira em lugares torguianos como S. Leonardo de Galafura ou junto da Senhora da Azinheira.
Escrita telúrica, desassombrada, límpida, verdadeira, radicalmente livre. O pseudónimo Torga reflecte, aliás, a sua verticalidade granítica, pois que toma o nome de uma urze bravia, de fortes raízes incrustadas na dura rocha e de caule imponentemente rectilíneo. “Uma urze campestre cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas.”
Recorrentemente discutem-se os livros de autores portugueses que são de obrigatória leitura no ensino. Confesso que não tenho paciência para o carácter sempre discricionário (senão mesmo parcial) dessas escolhas a pretenso benefício da educação dos jovens. Também não me agrada a lógica obrigatória, porque a obrigação pode enfraquecer o entusiasmo e transformar-se num caminho de leitura burocrática, sem alma e sem memória futura. Miguel Torga é um dos escritores portugueses que deveria ser de leitura obrigatória, sem ser obrigatório.
Dou tanto mais valor à sua escrita e ao seu pensamento quanto mais observo a frivolidade que se espalha virulentamente nos nossos dias, na vida, na cultura, na sociedade, na política. Tudo é fugaz, de reflexão zero, de descarte e de disfarce, de sucesso tabelado, de erosão da comunicação escrita e oral.
Na sua obra encontramos a simbiose perfeita entre a ética do homem e a estética da palavra. A argúcia, a limpidez da razão, a translucidez do olhar sobre o seu mundo em derredor da vida. Numa mistura, mais serena ou mais tumultuosa, entre um idealismo sem amarras e uma sensibilidade feita de utopismo inconformado. Preferindo sempre a voz e o olhar dos últimos, onde – dizia ele – “encontro ainda o riso, a indignação, o espanto...”, onde não há “nenhuma abstracção, nenhum devaneio, nenhuma superficialidade”.
“A entronização dos escritores, agora, faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor”, assim desabafava. Agora que os chamados best-sellers se confundem, não raro, com a literatura light sobejamente publicitada (e folheada na areia das praias), é preciso escarafunchar nos esconsos de uma livraria para ir ao encontro de um livro de Torga, Vergílio Ferreira, Jorge de Sena ou outro clássico português.
Escreveu Torga na sua carta ao poeta brasileiro Ribeiro Couto (Traço de União – Temas portugueses e brasileiros) que “progredir é crescer por dentro”. Por diferentes palavras, direi que só do nosso interior se pode transformar o que nos é exterior. Assim, se completa o exterior que brota de dentro e o interior que perscruta de fora. Há quem chame renovação, revolução ou conversão a esta transformação interior que nos leva a uma mudança exterior. Depende da perspectiva doutrinária, da ética religiosa ou até da hermenêutica da vida. Seja qual for o ângulo, a sua essência pressupõe um profundo respeito pela pessoa no seu todo.
Observo, na minha contingência, o mundo como suportando uma crescente e porosa inércia mecanicista, mais perto da distopia do que da utopia. A sociedade hodierna é, mais agora, o produto, a conta e o resultado de individualismos que, paradoxalmente, atrofiam a própria ideia de individualidade. Como também alimentam a aceitação da circunstância estimulada pelo fascínio dos meios e pelo mimetismo que transforma pessoas distintas em agregados dissolúveis e dissolventes. Como alertava o escritor e poeta, “a olhar a mentira dos salões esquecemos a verdade das celas”.
Neste breve texto, sublinho, ainda, o nobre sentido pátrio como uma das marcas de água de Miguel Torga. “Abandonar a Pátria com um saco às costas? Para poder partir teria de meter no bornal o Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da língua. Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar.” Ou, noutro ângulo, “eu sou um homem de impressões digitais, das mãos aos pés. O sulco do arado é tão impressivo para mim como o traço da caneta. Leio tanto numa lavrada alentejana como num livro”.