O humanismo e as suas lições
A revelação pública de que Os Maias é uma peça móvel no cânone literário dos programas escolares (podendo ser substituído por outro livro de Eça de Queirós) tem dado motivo a lições públicas de humanismo, ao qual devemos responder: mais urgente do que repor a obrigatoriedade do ensino de Os Maias (questão sobre a qual só tenho vagas opiniões e que não será, portanto, o assunto deste texto), é proteger a literatura – não apenas esse romance de Eça – de tais defensores. O humanismo, como sabemos, tem a necessidade de ministrar lições. Sem essa vocação, ele definha. A mais exaltada e grandiloquente lição de humanismo que nos últimos dias nos foi ministrada à boleia deste pequeno escândalo é da autoria de Sérgio Sousa Pinto e foi pronunciada no último Expresso com o título A Natureza Humana e os Seus Inimigos. Sobre a “natureza humana” não me vem nada à cabeça, mas tal como a vislumbro no artigo do nosso humanista declaro-me convictamente seu inimigo. Este humanismo que administra lições tem um ideal que é a cegueira restaurativa, sem jamais conseguir pensar as próprias condições de possibilidade de restaurar o que pretende restaurar. No texto de Sousa Pinto, podemos perceber que, no fundo, se trata de restaurar o sentido das chamadas “Humanidades”, aquela ideia europeia da educação humanista que na Alemanha correspondeu à figura da Bildung. Evidentemente, tudo isto é formulado com a linguagem espontânea do humanista ingénuo e universal, incapaz de pensar para além da sua experiência e das suas impressões. Aparentemente, ele julga que a ruína dos valores de humanidade na educação escolar é um fenómeno recente e perpetrado por malfeitores facilmente identificáveis. O nosso humanista, como muitos outros iguais a ele, vê algumas estrelas, mas jamais conseguirá ver a constelação. A estrela é Os Maias, relativizado no cânone escolar, mas a constelação, o pano de fundo onde tudo isto se projecta e que nenhum humanista — tão rico em boas intenções como indigente no pensamento — consegue restaurar é o lugar que a literatura teve outrora e os studia humanitatis que lhe correspondiam. A condição da literatura é hoje uma condição póstuma. Tem uma condição póstuma na escola, na universidade, nas editoras, nas livrarias, nas páginas deste jornal e de todos os outros. Esta é a verdade que um humanismo míope como aquele que se exprime no artigo de Sérgio Sousa Pinto não consegue ver. E é a partir desta condição, por muito desencantada que ela seja, que deve ser pensado um projecto pedagógico que, hoje, já não pode partir do princípio de que a escola ainda é capaz de sustentar qualquer ideal identitário e cultural (no sentido humanista), de modo a que o estudo da tradição literária, enquanto instrumento privilegiado para reconhecer uma continuidade com o passado, possa resumir o sentido global da vida nacional. Não é por acaso que o “escândalo” tem como motivo Os Maias, tal como há alguns anos o motivo foi Os Lusíadas. Entre a “choldra” e a glorificação épica, o nosso coração balança. Quem nada sabe da condição póstuma da literatura, também não consegue decifrar muitos outros sinais desta condição. Basta olhar para os programas e os exames de Literatura do ensino secundário para perceber que já ninguém sabe como lidar com aquela “coisa” irrestaurável que tem cada vez menos espaço na cultura global e como continuar a conceder-lhe a função formativa de outrora quando ela é deslegitimada por outros media que agem sobre os alunos com muito mais força. Perante tudo isto, a tagarelice humanista que administra lições parece uma representação cómica.
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A revelação pública de que Os Maias é uma peça móvel no cânone literário dos programas escolares (podendo ser substituído por outro livro de Eça de Queirós) tem dado motivo a lições públicas de humanismo, ao qual devemos responder: mais urgente do que repor a obrigatoriedade do ensino de Os Maias (questão sobre a qual só tenho vagas opiniões e que não será, portanto, o assunto deste texto), é proteger a literatura – não apenas esse romance de Eça – de tais defensores. O humanismo, como sabemos, tem a necessidade de ministrar lições. Sem essa vocação, ele definha. A mais exaltada e grandiloquente lição de humanismo que nos últimos dias nos foi ministrada à boleia deste pequeno escândalo é da autoria de Sérgio Sousa Pinto e foi pronunciada no último Expresso com o título A Natureza Humana e os Seus Inimigos. Sobre a “natureza humana” não me vem nada à cabeça, mas tal como a vislumbro no artigo do nosso humanista declaro-me convictamente seu inimigo. Este humanismo que administra lições tem um ideal que é a cegueira restaurativa, sem jamais conseguir pensar as próprias condições de possibilidade de restaurar o que pretende restaurar. No texto de Sousa Pinto, podemos perceber que, no fundo, se trata de restaurar o sentido das chamadas “Humanidades”, aquela ideia europeia da educação humanista que na Alemanha correspondeu à figura da Bildung. Evidentemente, tudo isto é formulado com a linguagem espontânea do humanista ingénuo e universal, incapaz de pensar para além da sua experiência e das suas impressões. Aparentemente, ele julga que a ruína dos valores de humanidade na educação escolar é um fenómeno recente e perpetrado por malfeitores facilmente identificáveis. O nosso humanista, como muitos outros iguais a ele, vê algumas estrelas, mas jamais conseguirá ver a constelação. A estrela é Os Maias, relativizado no cânone escolar, mas a constelação, o pano de fundo onde tudo isto se projecta e que nenhum humanista — tão rico em boas intenções como indigente no pensamento — consegue restaurar é o lugar que a literatura teve outrora e os studia humanitatis que lhe correspondiam. A condição da literatura é hoje uma condição póstuma. Tem uma condição póstuma na escola, na universidade, nas editoras, nas livrarias, nas páginas deste jornal e de todos os outros. Esta é a verdade que um humanismo míope como aquele que se exprime no artigo de Sérgio Sousa Pinto não consegue ver. E é a partir desta condição, por muito desencantada que ela seja, que deve ser pensado um projecto pedagógico que, hoje, já não pode partir do princípio de que a escola ainda é capaz de sustentar qualquer ideal identitário e cultural (no sentido humanista), de modo a que o estudo da tradição literária, enquanto instrumento privilegiado para reconhecer uma continuidade com o passado, possa resumir o sentido global da vida nacional. Não é por acaso que o “escândalo” tem como motivo Os Maias, tal como há alguns anos o motivo foi Os Lusíadas. Entre a “choldra” e a glorificação épica, o nosso coração balança. Quem nada sabe da condição póstuma da literatura, também não consegue decifrar muitos outros sinais desta condição. Basta olhar para os programas e os exames de Literatura do ensino secundário para perceber que já ninguém sabe como lidar com aquela “coisa” irrestaurável que tem cada vez menos espaço na cultura global e como continuar a conceder-lhe a função formativa de outrora quando ela é deslegitimada por outros media que agem sobre os alunos com muito mais força. Perante tudo isto, a tagarelice humanista que administra lições parece uma representação cómica.