Espelho meu, haverá cromo mais cromo do que eu?

É uma das exposições que mais corações divide em Arles. Nunca ninguém tinha olhado assim para o enamoramento entre fotografia e a cultura do hobby

Foto
Benedikt Bock, Alexander Hall, 2017. Cortesia Collection Fotomuseum Winterthur

O som até nem está muito alto, mas o monitor velhinho e as peças creme de um PC rebentado espalhadas pela alcatifa azul chamam imediatamente a atenção de quem entra na igreja da Ordem da Trindade. Para ver o vídeo que passa no ecrã é preciso inclinar um pouco a cabeça (está de lado). A qualidade da imagem é má. Das colunas vão saindo sons de teclado numa calma aparente, até que surge um palavrão ou outro, aqui e ali esgares de raiva. E, de repente, o rapaz filmado pelas costas começa aos murros ao teclado, fazendo saltar peças por todo lado. Colado a este trecho que acaba aos berros, surge logo a imagem desfocada de um adolescente de aparelho nos dentes que liga uma câmara oculta e que, antes de desaparecer, diz ofegante: “A minha mãe acabou de cancelar a conta de World of Warcraft do meu irmão e ele está a passar-se completamente – oh, meu Deus!” Nisto, entra o irmão que começa um espectáculo difícil de descrever, mas que inclui gritos guturais, a tentativa de enfiar um comando de televisão pelo ânus e auto-agressões na cabeça com tudo o que está por perto. O PC que jaz no chão é na verdade uma peça de videoarte (My Generation, 2010) da dupla italiana Eva e Franco Mattes, pioneiros na reflexão da imagética ligada ao mundo da net. É um trabalho sobre viciados em jogos de ecrã, pessoas muito voláteis e psicologicamente afectadas que estão mergulhadas num mundo onde “o hobby se tornou uma adicção, e o próprio jogo uma realidade amarga” (Doris Gassert).

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O som até nem está muito alto, mas o monitor velhinho e as peças creme de um PC rebentado espalhadas pela alcatifa azul chamam imediatamente a atenção de quem entra na igreja da Ordem da Trindade. Para ver o vídeo que passa no ecrã é preciso inclinar um pouco a cabeça (está de lado). A qualidade da imagem é má. Das colunas vão saindo sons de teclado numa calma aparente, até que surge um palavrão ou outro, aqui e ali esgares de raiva. E, de repente, o rapaz filmado pelas costas começa aos murros ao teclado, fazendo saltar peças por todo lado. Colado a este trecho que acaba aos berros, surge logo a imagem desfocada de um adolescente de aparelho nos dentes que liga uma câmara oculta e que, antes de desaparecer, diz ofegante: “A minha mãe acabou de cancelar a conta de World of Warcraft do meu irmão e ele está a passar-se completamente – oh, meu Deus!” Nisto, entra o irmão que começa um espectáculo difícil de descrever, mas que inclui gritos guturais, a tentativa de enfiar um comando de televisão pelo ânus e auto-agressões na cabeça com tudo o que está por perto. O PC que jaz no chão é na verdade uma peça de videoarte (My Generation, 2010) da dupla italiana Eva e Franco Mattes, pioneiros na reflexão da imagética ligada ao mundo da net. É um trabalho sobre viciados em jogos de ecrã, pessoas muito voláteis e psicologicamente afectadas que estão mergulhadas num mundo onde “o hobby se tornou uma adicção, e o próprio jogo uma realidade amarga” (Doris Gassert).

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THE HOBBYIST. Colectiva. Comissários: Anna Planas, Pierre Hourquet, Thomas Seelig. ÉGLISE DES TRINITAIRES. 2 Julho a 26 de Agosto. Das 10H00 às 19H30. 8 euros Eckhard Schaar, Bodybuilder, 1993. Cortesia do Museum für Kunst und Gewerbe Hamburg

Claro que nem tudo o que está relacionado com a cultura dos hobbies tem esta carga negativa nem envolve este grau de violência – muito pelo contrário. Na antecâmara de The Hobbyist – Un quête de passion, uma das exposições que este ano mais corações divide nos Encontros de Fotografia de Arles, uma enorme captura de ecrã de um vídeo tutorial retirada do YouTube ensina truques de maquilhagem para tonar os lábios mais macios. Em várias molduras digitais sobrepostas a este rosto gigante de olhar abonecado, o pescador Alexander Hall exibe entre o eufórico e o pueril trutas acabadas de pescar em vários lugares do mundo.

Cumprindo um caminho que vem incorporando a imagem vernacular nos discursos curatoriais da fotografia, os Encontros dão agora um passo em frente nessa reflexão programando uma exposição cujos curadores tiveram a perspicácia de cruzar a torrente imagética ligada aos hobbies com o trabalho mais “hobista de autores canónicos (Alberto García-Alix e as motos; Diane Arbus e o nudismo; Mike Mendel e os cromos de basebol; Bruce Davidson e os caravanistas), que neste contexto de suposto amadorismo e de algum anonimato parecem estar paradoxalmente muito mais entre pares do que nunca.

Com uma montagem em jeito patchwork, a exposição tem sido recebida com algumas reticências muito por causa do esfuziante amontoado de imagens das cinco secções que investigam a forma como os passatempos (e muitas obsessões) foram sendo vertidos para a fotografia desde os anos 1960.

Não sendo de consumo rápido, uma das forças de The Hobbyist é precisamente a forma idiossincrática e pouco ortodoxa que encontrou para comunicar cada um dos universos “hobistas” escolhidos ou as obras dos artistas que decidiram trabalhar sobre eles. E neste campeonato quem leva a taça é talvez The Molem Collective (2013), da belga-croata Hana Miletic, que apresenta um mosaico de fotografias da colecção de 24 pares de ténis que o marroquino Zakaria Haddou, morador de Sint-Jans-Molenbeek, Bruxelas, comprou ao longo de 18 meses. Ao lado das fotografias rudemente captadas, um LP de vinil branco roda sobre um gira-discos, onde “Zak” vai cantarolando, em modo rap, as características dos seus ténis e partilhando as histórias sobre a sua colecção.

Para quem padece de overdose rápida de imagens, The Hobbyist é capaz de provocar muito mais do que tonturas, mas também não é caso para haver alarmes ou sinalética com contra-indicações à porta. Por outro lado, há que dar pelo menos o benefício da dúvida a quem se lança numa empreitada pioneira como o fizeram os curadores Pierre Hourquet, Anna Planas e Thomas Seeling, ao escolherem problematizar um fenómeno tão escorregadio quanto uma enguia acabada de sair da água. Em muitos casos, trata-se de questionar universos visuais não do presente, mas do agora. Sondar mundos que estão em mutação permanente, como aquele que resulta do uso de uma ferramenta tão presente quanto fugaz como o YouTube, que hoje se pode considerar o templo da partilha do hobby, o ninho onde se reconfortam todos os correligionários de uma miríade de actividades para ocupar o tempo-livre, desde a pesca – hobby por excelência – à columbofilia, dos mergulhos com roupa vestida à história do futebol, das colecções de borboletas às colecções de cromos, do bodybuilding ao skateboarding dentro de piscinas vazias.

Clamando pioneirismo no pensamento da relação entre a fotografia e cultura de passatempos, abarcando tanto a fotografia de hobbies como a fotografia como hobby, a tripla de curadores navega entre as múltiplas camadas deste fenómeno onde coexistem “esferas aparentemente contraditórias de lazer e trabalho, ideologia e consumismo, amadorismo e profissionalismo.” Das culturas hippies e vanguardistas dos sixties, ao do-it-yourself (DIY) dos anos 80, ao movimento maker de hoje, The Hobbyist explora a coexistência inevitável da fotografia com uma ampla variedade de obsessões, muitas vezes peculiares, outras tantas esquisitas.

Do fim para o princípio

Na igreja da Ordem da Trindade, a viagem começa do fim para o princípio, como um exercício de afunilamento rumo a “hobistas” que foram, afinal, responsáveis por ferramentas que hoje ajudam a agigantar a cultura do hobby – falamos dos computadores, nas suas mais diversas encarnações, e do software, nos seus mais intrincados níveis de sofisticação. Estão lá “hobistas” de garagem como Steve Jobs e Steve Wozniak (Apple), ou “hobistas” organizados em clubes com olho para o que ia ser o negócio. Homens como Bill Gates, que, em 3 de Fevereiro de 1976, escreve já como general partner da então Micro-Soft uma carta aberta a todos os hobbyists, barafustando com aqueles que roubam software e acenando com a sua expulsão do clube.

Seja do fim para o princípio, seja do princípio para o fim a história da cultura do hobby e da sua dinâmica nas imagens vídeo e fotográficas não se conta de uma maneira simples nem linear. Em The Hobbyist também há buracos, como a falta de um vislumbre que fosse da fotografia dita “amadora” com pretensões salonistas, talvez um dos principais passatempos das classes médias de meados do século, que só se esboroou nos anos 70.

Em contrapartida, há muitas surpresas e enormes descobertas, como a de Mike Mandel e o seu seminal The Baseball – Photographer Trading Cards (1975), que parte de um hobby pessoal – coleccionar cromos de jogadores de basebol – para fazer uma sátira mordaz quer sobre a pouca relevância dada à fotografia no contexto das belas-artes de então, quer sobre a domesticação da obra de fotógrafos considerados referenciais para novos talentos. Num rasgo sagaz e original, Mandel decidiu retratar fotógrafos da época (mais ou menos famosos) como se fossem jogadores de basebol imprimindo essas imagens em formato cromo, algo que pode soar como uma chamada de atenção para um suporte com plasticidade infinita, onde os seus autores são ao mesmo tempo o objecto da sua arte. Resultado: muitos aceitaram ser fotografados para a colecção de 134 cromos (de Ansel Adams a Manuel Alvarez Bravo, de Imogen Cunningham a Elliott Erwitt), num gesto de unidade a favor da paixão por um meio que vinha sendo desprezado.

Olhar para estes cromos agora, onde para além dos dados pessoais, cada autor escrevia uma frase sobre a sua participação, é como dar um mergulho numa aula de história da fotografia. Isto para quem tiver tempo livre e gostar muito de fotografia, claro.