África (e Marlene Monteiro Freitas) no coração industrial da Alemanha
Edição 2018 da Trienal do Ruhr, que decorre de 9 de Agosto a 23 de Setembro, tem o suíço Christoph Marthaler como artista associado mas abre com o sul-africano William Kentridge e prossegue com o burquinense Serge Aimé Coulibaly ou a marroquina Bouchra Khalili.
É aquela altura do ano em que o coração industrial da Alemanha volta a bater desenfreadamente: a partir de 9 de Agosto, e até 23 de Setembro, a Bacia do Ruhr, a região que industrializou o país rapidamente e em força tonelada após tonelada de carvão e de aço, recebe mais uma edição da Trienal do Ruhr, o festival multidisciplinar que desde 2002 vem mostrando ser possível reinventar uma paisagem condenada à obsolescência, ou mesmo à fantasmagoria. Consumado o desmantelamento dos gigantescos complexos que ao longo do século XX mantiveram vivas cidades como Essen, Dortmund, Oberhausen ou Duisburgo – as últimas minas de carvão do Ruhr encerrarão até ao fim deste ano –, esse vasto parque industrial é hoje campo aberto a experiências como as que Peter Brook, Bill Viola, Patrice Chéreau, Christian Boltanski, Patti Smith ou Akram Khan ali já levaram, e que, para citar apenas alguns nomes do programa desta edição, Christoph Marthaler (o artista associado deste triénio), William Kentridge, Laurie Anderson, Kornél Mundruczó, Serge Aimé Coulibaly, Anthony Braxton e Marlene Monteiro Freitas (com Jaguar, penúltima peça desta coreógrafa portuguesa que recentemente recebeu o Leão de Prata da Bienal de Veneza) ali levarão agora.
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É aquela altura do ano em que o coração industrial da Alemanha volta a bater desenfreadamente: a partir de 9 de Agosto, e até 23 de Setembro, a Bacia do Ruhr, a região que industrializou o país rapidamente e em força tonelada após tonelada de carvão e de aço, recebe mais uma edição da Trienal do Ruhr, o festival multidisciplinar que desde 2002 vem mostrando ser possível reinventar uma paisagem condenada à obsolescência, ou mesmo à fantasmagoria. Consumado o desmantelamento dos gigantescos complexos que ao longo do século XX mantiveram vivas cidades como Essen, Dortmund, Oberhausen ou Duisburgo – as últimas minas de carvão do Ruhr encerrarão até ao fim deste ano –, esse vasto parque industrial é hoje campo aberto a experiências como as que Peter Brook, Bill Viola, Patrice Chéreau, Christian Boltanski, Patti Smith ou Akram Khan ali já levaram, e que, para citar apenas alguns nomes do programa desta edição, Christoph Marthaler (o artista associado deste triénio), William Kentridge, Laurie Anderson, Kornél Mundruczó, Serge Aimé Coulibaly, Anthony Braxton e Marlene Monteiro Freitas (com Jaguar, penúltima peça desta coreógrafa portuguesa que recentemente recebeu o Leão de Prata da Bienal de Veneza) ali levarão agora.
Stefanie Carp, a quem foi confiada a direcção artística do festival no triénio 2018-2020, quis trabalhar este ano a impositiva questão das migrações, o que inevitavelmente trouxe África, mas também o Médio Oriente, para a linha da frente do programa: “Pessoas em fuga, expulsas das suas casas, viajam através dos nossos continentes. Excluídas, as suas vidas são travadas por intermináveis processos burocráticos. Guerras económicas de inimaginável crueldade destroem sociedades e culturas inteiras. Pelo menos agora já toda a gente percebeu que as exigências de igualdade e liberdade não são apenas uma questão de gosto político: são uma questão de sobrevivência da civilização. Os migrantes são um tropo visível do século XXI, a vanguarda de uma nova era.”
Característicos deste “tempo intermédio”, fenómenos como as ligações perigosas do dinheiro francês à política síria (The Factory, de Mohammad Al Attar, com encenação de Omar Abusaada), as migrações internas em África (Kirina, do burquinense Serge Aimé Coulibaly, acabado de passar pelo Festival de Almada, numa nova criação com a cantora maliana Rokia Traoré), ou a vaga de refugiados que pôs a Europa de trancas à porta (Exodos, da coreógrafa alemã Sasha Waltz, nos 25 anos da sua companhia) são sublinhados desta edição. Mas o programa vai bem mais atrás, examinando a predação colonial europeia que é em parte a raiz do mal. Logo a abrir, o sul-africano William Kentridge, em mais uma das suas assombrosas produções de palco (acervo que o Museu Reina Sofia compilou este ano na exposição Basta y Sobra), recapitula a história pouco conhecida da participação forçada de dois mil africanos na Primeira Guerra Mundial através de um festim cénico, musical e coreográfico inspirado num provérbio popular ganês, The Head and The Load. O passado voltará a emergir em Music of Displacement, em que o colectivo Hezarfen Ensemble digere as sucessivas movimentações, algumas mais trágicas do que outras (da Arménia à Síria, o historial é pesado), polarizadas pelo território da actual Turquia; mas também em Diamante: Die Geshichte einer Free Private City, do dramaturgo e encenador Mariano Pensotti, sobre a cidade que um industrial alemão construiu no Norte da Argentina para albergar os seus operários, ou numa nova versão, encenada pelo húngaro Kornél Mundruczó, de Das Floss der Medusa, a polémica ópera que o alemão Hans Werner Heinze estreou em plena efervescência do Maio de 68, abordando o naufrágio da fragata francesa em que seguia o governador do Senegal Julien Désiré-Schmaltz (sem spoilers: isto acaba em canibalismo). Inclemente, como que a chamar-nos de volta ao século XXI, o presente dos condenados da Terra, como em 1961 lhes chamou Frantz Fanon, far-se-á visível na instalação da franco-marroquina Bouchra Khalili, criada a partir das estratégias discursivas de minorias em luta, ou em Black Privilege, em que a sul-africana Mamela Nyamza volta a trabalhar a sua excepcional biografia de mãe lésbica e negra.