A angústia que se dissolve
Romance audacioso sobre uma mulher devorada pelas suas pulsões.
Ao segundo romance, Canção Doce (2017), a escritora francesa, de origem marroquina, Leïla Slimani, (n. 1981) ganhou o Goncourt. Tinha-se estreado na literatura dois anos antes com No Jardim do Ogre – agora traduzido – romance audacioso sobre uma mulher que parece querer ser devorada pelas suas pulsões. A mulher chama-se Adèle, 35 anos, jornalista que se especializou em política internacional, casada há nove anos com Richard, um cirurgião de sucesso, de quem tem um filho; vivem os três no elitista 18º bairro parisiense. Ela parece ter tudo para ser uma burguesa feliz. Casou-se pela mesma razão que teve um filho: “para se encaixar no mundo e se proteger”. Nunca teve outras ambições para além de querer ser vista e desejada. A sua líbido exacerbada fá-la ir “coleccionando” homens em sexo ocasional, uns a seguir a outros quando não mais do que um ao mesmo tempo. Eles parecem ser os únicos pontos de referência da sua existência. Adéle existe através do desejo desses homens: não há glória nem vergonha nas suas conquistas. Tem uma vida bem organizada, mas aborrecida e convencional, de onde não quer sair. E sabe que essa vida “será sempre a mesma”. No princípio do romance parece ser esse o motivo que a faz usar os homens. Mas o leitor é levado a pensar que haverá algo para além disso – um fundo obscuro onde os fantasmas deixam cair as suas sombras.
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Ao segundo romance, Canção Doce (2017), a escritora francesa, de origem marroquina, Leïla Slimani, (n. 1981) ganhou o Goncourt. Tinha-se estreado na literatura dois anos antes com No Jardim do Ogre – agora traduzido – romance audacioso sobre uma mulher que parece querer ser devorada pelas suas pulsões. A mulher chama-se Adèle, 35 anos, jornalista que se especializou em política internacional, casada há nove anos com Richard, um cirurgião de sucesso, de quem tem um filho; vivem os três no elitista 18º bairro parisiense. Ela parece ter tudo para ser uma burguesa feliz. Casou-se pela mesma razão que teve um filho: “para se encaixar no mundo e se proteger”. Nunca teve outras ambições para além de querer ser vista e desejada. A sua líbido exacerbada fá-la ir “coleccionando” homens em sexo ocasional, uns a seguir a outros quando não mais do que um ao mesmo tempo. Eles parecem ser os únicos pontos de referência da sua existência. Adéle existe através do desejo desses homens: não há glória nem vergonha nas suas conquistas. Tem uma vida bem organizada, mas aborrecida e convencional, de onde não quer sair. E sabe que essa vida “será sempre a mesma”. No princípio do romance parece ser esse o motivo que a faz usar os homens. Mas o leitor é levado a pensar que haverá algo para além disso – um fundo obscuro onde os fantasmas deixam cair as suas sombras.
Adèle sabe que a batalha da luta contra os seus impulsos está perdida. Esforça-se apenas por esconder socialmente a vida que leva, mas aquela é a única maneira de aliviar o seu desconforto emocional. “O dique rebentou. De que serviria conter-se? A vida não seria melhor por isso.” Que importam a franqueza e a transparência? Coisas que nunca a ajudaram. Adéle quer ser “uma boneca no jardim de um ogre” – esse que a devora a partir do interior, das suas obsessões, de um desejo animal. Por vezes não consegue concentrar-se, sente que o coração lhe martela o peito. Mas sabe que mais tarde, quando sair daquela redacção em que trabalha, ou quando sair de um jantar de amigos, e engatar um homem qualquer, que essa angústia se dissolverá, que a alma, com o espírito vazio, lhe pesará menos. Nessas alturas, ela gostaria “de ser um mero objecto no meio de uma horda, ser devorada, chupada, engolida de um trago”. É esta busca pelo desaparecimento que intriga. Adéle tem um marido que lhe diz: “estragas sempre tudo”, ou “és tão banal como todos nós”, no entanto parece amá-la e protegê-la, e ela gosta dele. Mais tarde tentará explicar-lhe “o desejo insaciável, a aflição por não lhe conseguir pôr fim”, e ele, egocentrado, não a ouve e tenta que ela continue como seu objecto de adorno social – como a pregadeira que lhe ofereceu. Mudam de vida, saem de Paris para uma aldeia, ela deixa o jornal onde trabalhava, mas sente-se presa na nova mansão: como um pássaro desnorteado, “batendo com o bico nas portas envidraçadas, partindo as asas nas maçanetas”.
Antes da mudança, vai-se instalando a sensação de que ela arrisca cada vez mais a cada novo episódio sexual, força-se a ir cada vez mais longe, como se tudo aquilo fosse apenas a ilustração de uma sucessão de actos autodestrutivos. É Adèle ninfomaníaca? É viciada em sexo? Usa o sexo como meio para efectivar a autodestruição? Ou tudo aquilo é uma tentativa inconsciente de manter o casamento vivo? Nunca o chegaremos a saber porque o assunto não é aprofundado. É aqui que o romance começa a falhar: aquilo que no começo prometia ter um fundo obscuro a ser escavado até o leitor se aproximar do abismo, é abandonado a meio da narrativa para passar a dar lugar a um inesperado discurso de tom moralista, quando não mesmo machista, sem a menor ironia. A voz do narrador (que antes se tinha mantido moralmente neutra) passa a ser a do convencionalismo e do conservadorismo social. E o leitor começa a adivinhar um final quase patético (apesar de aberto), não havendo sinais de que poderá ser caricatural ou irónico.
Leïla Slimani escreveu um romance audacioso, numa escrita por vezes crua e violenta que consegue espelhar a protagonista. Mas no final fica uma sensação de desilusão por parecer que passou ao lado de algo profundo que não ousou, ou não conseguiu, explorar.