Ricardo Paes Mamede: “Sou economista social-democrata radical”

A crise facilitou-lhe a vida no sentido em que tornou menos complicado ser um economista de esquerda. O rosto adolescente da luta contra a PGA explica o que é ser social-democrata radical, como explica o amor pela bateria ou a razão pela qual acha que a crise económica acabou e porque não quer ser ministro.

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"A minha doutrina política e social, a ideia da social-democracia nórdica - que hoje já não é a mesma coisa que era nos anos 60 ou 70 -, continua a ser uma referência" Miguel Manso

Os aviões passam, parecem rasar o edifício onde Ricardo Paes Mamede tem o seu gabinete, uma sala virada a norte num dia quente, onde há estantes com livros e a reprodução do cartaz do filme Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica. É o nome do blogue onde escreve há dez anos. Chegou àquele grupo da blogosfera uma semana depois da fundação e só então foi ver o filme que sentiu perfeito para falar de economia fugindo a jargões. Colou-o à parede por isso e por se adequar ao seu amor pela cultura italiana. Foi em Itália, aliás, que fez o doutoramento em Economia cumprindo o objectivo de vida: dedicar-se à academia. Natural de Coimbra, onde nasceu em 1974, cresceu em Odivelas e a vida naquele subúrbio moldou-lhe ideologia e carácter. Diz-se um social-democrata radical que começou pelo associativismo académico e tornou-se figura pública na luta contra a PGA. Hoje é professor no ISCTE, especialista em áreas como a integração europeia, ambiente, inovação e políticas económicas. Entre 2013 e 2017 publicou três livros. A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes, O Que Fazer com Este País e Economia como Desporto de Combate e há três anos que vai semanalmente à televisão falar de Economia. Aqui recorda como um dia vagamente hesitou em ser baterista.

O que é ser hoje um economista de esquerda?

Hoje é muito mais fácil do que já foi.

Porquê?

Porque há dez anos, antes da crise internacional, ainda havia um domínio absoluto daquilo que habitualmente chamamos doutrinas neoliberais, a ideia de que uma economia funciona melhor quando todos os espaços de troca e interacção social são deixados à lógica do mercado. A crise internacional veio, em larga medida, ajudar a pôr essa ideia em causa e facilitar a vida aos economistas de esquerda que, geralmente, rejeitam esse pressuposto.

Dito isso, um economista de esquerda é…

Não há uma forma de ser um economista de esquerda, porque não há uma única forma de ser um economista e não há uma única forma de ser de esquerda. Não consigo dizer o que é um economista de esquerda, mas consigo dizer o que sou eu enquanto economista de esquerda. Defino-me como um economista político institucionalista. Olho para a economia como um sistema aberto influenciado em permanência por variáveis institucionais, legais, políticas, ambientais, tecnológicas e que assume que a única forma de compreender devidamente as economias é levar em consideração estes vários factores. Implica uma atitude de abertura em relação a outras ciências sociais e grande consciência do aspecto contingencial de qualquer processo económico. Sou um economista de esquerda na medida em que tenho uma determinada visão de esquerda, posiciono-me enquanto social-democrata radical, o que significa que aceito a economia de mercado, mas também parto do pressuposto de que a economia de mercado para funcionar de forma eficiente e justa exige que seja fortemente impura. Ou seja, que na sociedade, a lógica de mercado não se imponha a todas as esferas da vida humana.

Quando começou a ter consciência política ou social?

Muito cedo. Eu passava a maior parte do tempo com a minha família materna e dentro dessa família havia posições muito extremadas. Tenho uma memória ainda bastante clara do pós-25 de Abril e das discussões que se tinham e em que havia dois tipos de pessoas: os fascistas, que eram todos os que não eram de esquerda, e os comunistas, que eram todos os que não eram de direita. Havia tudo isso na minha família, os comunistas e os fascistas. Eu, porque gostava de toda esta gente - eram os meus avós, os meus tios, os meus pais - sentia necessidade de perceber o que era aquilo.

Como escolheu - se é que isso se escolhe - o seu lado?

(Pausa) Não sei se é uma escolha, efectivamente. Tive sempre uma preocupação muito grande em compreender os argumentos dos outros - algo que continua a faltar muito na sociedade portuguesa - e procurei sempre assegurar que aquilo que eu defendia não tinha a ver com uma adesão cega a um clube, mas era algo coerente com os meus valores e princípios fundamentais. Fui procurando posicionar-me de forma que me fizesse sentir confortável com esses valores. Sim, em parte é uma escolha. Somos produto das nossas circunstâncias, além do que somos intrinsecamente. É uma escolha parcial.

Cresceu num subúrbio de Lisboa, em Odivelas...

Sim, vivi em Odivelas entre os três e os vinte anos e Odivelas era muito diferente do que é. Para o bem e para o mal. Era um lugar muito mais longe de Lisboa, não tinha metro, só se chegava a Lisboa pela Calçada de Carriche e isso era um inferno; a vida social dos jovens e adolescentes fazia-se muito dentro de Odivelas, na altura nem cidade era. Tinha limitações de oferta cultural, mas isso trazia vantagens, como puxar mais pela criatividade de quem lá estava. Do ponto de vista socio-económico não era propriamente um subúrbio de classe média baixa, mas também não era de classe média alta; era acima de tudo um subúrbio com grande interclassismo. Uma coisa que me surpreende nas escolas de Lisboa é que tendem a estar muito segmentadas do ponto de vista de classe social dos pais. Em Odivelas isso não existia. Em geral toda a gente ia parar à escola pública, onde andei, e tínhamos uma diversidade de estratos socio-económicos mas também étnicos. Isso marca muito a vida na espécie de grande aldeia urbana que era Odivelas. Hoje é bastante mais dormitório.

Falou em estímulo à criatividade. O que é que se fazia?

Muita música. Havia muitas bandas de garagem. E os jovens sentiam necessidade de organizarem as suas coisas; havia muito associativismo local, algum dinamismo das associações de estudantes. A partir do 9º ano, com 14 anos, fiz a minha entrada para a política activa, através das associações de estudantes. Na altura havia uma disputa histórica na Escola Secundária de Odivelas entre a JSD e a JCP e de repente apareceu um grupo de gente verdadeiramente ingénua.

Onde se incluía?

Sim. Foi no final dos anos oitenta, o Greenpeace andava a fazer umas acções muito vistosas em defesa das baleias ou contra o nuclear, e fizemos uma lista V, de verde, que não tinha nada a ver com Os Verdes, mas com esta mensagem ecológica. O nosso lema era Pela Ecologia e surpreendentemente ganhámos as eleições contra os grandes falcões.

Pela retórica ou pelo programa?

Em parte, foi sorte. A disputa entre eles era de tal forma acérrima que as pessoas fartaram-se e votaram nos tipos novos e simpáticos. Mas também porque fizemos uma campanha muito criativa.

E conseguiram mudanças?

Muitas. Para nós, ecologia era começar por mudar o nosso quintal. Transformámos profundamente a escola. Não havia zonas verdes, tinha um mato horrível, com problemas quer de higiene, zonas frequentadas por toxicodependentes numa altura em que havia muitos problemas de drogas pesadas. Quisemos melhorar o ambiente da escola, isso significou pôr relva, alterar o gradeamento, pôr portas nas casas de banho, pintar as portas, a sala de convívio, fazer murais que dessem outra dinâmica. Fomos muito populares, no segundo ano de eleições nem tivemos oposição porque o nível de apoio era muito elevado.

E a música?

Também me envolvi numa banda, A Tribo dos Pés Cagados, que os pais conheciam apenas por TPC. Era uma banda pop-rock de garagem, que funcionava muito bem como divertimento. Eu tocava bateria. O meu ponto alto foi num concerto lá em Odivelas em que fizemos a primeira parte de duas bandas que se tornaram razoavelmente famosas, Os Sitiados, do João Aguardela e os Ex-Votos, liderados pelo ex-vocalista dos Xutos & Pontapés, Zé Leonel. No fim do concerto os tipos dos Ex-Votos convidaram-me para ser baterista deles. Eu nessa altura já estava bastante envolvido na vida associativa e a preparar a minha entrada para a universidade. Tive de tomar uma decisão entre ser músico de bandas malucas ou fazer a minha vida académica e a minha actividade associativa.

Não hesitou?

Hesitei um bocadinho.

Não se arrepende?

Não. Nada.

E a bateria foi posta de parte?

Essencialmente sim. Às vezes tenho muita vontade de voltar a tocar e se tenho oportunidade nalgum contexto toco; mas gostaria de tocar bastante mais.

Que música ouvia?

Em Odivelas havia muita gente a ouvir música alternativa, independente. Costumava ouvir muita música que passava nas rádios piratas da altura; no final, o que ficou foi uma música que está nas margens do mainstream. Dessa altura ficou-me muito Cure, por exemplo, Tom Waits, Xutos & Pontapés e Mão Morta. E agora continuo a ouvir bastante rock-pop e aprendi a ouvir mais música clássica. Às vezes até ópera, mas não muito. 

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Um bom economista, para Ricardo Paes Mamede, tem capacidade de análise e de julgamento ético Miguel Manso

Resumindo, soube muito cedo o que queria fazer na vida.

Ter uma profissão que me permitisse continuar a estudar ao longo da vida sempre foi um desejo. A academia é uma das poucas alternativas para isso. Cresci num período em que as crises estiveram bastante presentes. Entrei na pré-adolescência durante o período da crise de 1983-85, a segunda intervenção do FMI em Portugal. É o período em que começo a dar mais atenção ao mundo à volta, e era tudo de tal forma intenso, as situações de crise real - na minha vida familiar e no bairro onde eu vivia... Isso criou-me a necessidade de sentir o que se passava. As crises são sempre óptimas para levar os jovens a estudar economia, e a economia surge-me muito devido àquele contexto, a percepção de que a economia marca muito o funcionamento das sociedades como um todo. Não tenho uma visão estritamente determinista; sei que a economia é influenciada por outras dinâmicas, mas sempre senti que perceber bem as dinâmicas económicas era fundamental para compreender o mundo à minha volta. Portugal vive na primeira década após o 25 de Abril um período bastante instável do ponto de vista económico e a noção de crise económica está sempre mais ou menos presente. Depois há um período de grande expansão da economia, entre 85 e 91 em que se conjugam uma série de estrelas.

O período do cavaquismo.

Cavaco teve uma sorte enorme. Ele não é responsável por esse boom, e a parte em que é responsável mais valia que não o fosse. É um momento verdadeiramente extraordinário na economia internacional, há uma quebra substancial do preço do petróleo, uma desvalorização forte do escudo face ao dólar, taxas de juro baixas e isso em simultâneo com a entrada de Portugal na então CEE, que significa um afluxo enorme de investimento directo estrangeiro ao país, de fundos europeus de coesão, para não falar do facto de que em 83 e 85 se esteve numa crise financeira profunda para haver o ajustamento externo, quando se sai da crise a tendência é para que haja crescimento. Cavaco Silva foi basicamente um sortudo dos diabos. Mas logo em 91 volta a haver uma crise profunda, marcante para a minha formação, a crise do sistema monetário europeu. Eu já estava na faculdade e comecei a estar atento aos temas europeus em parte por esta coincidência: os meus estudos de economia coincidiram com as grandes transformações na Europa e o processo de integração de Portugal na UE.

São anos de tensão no ensino em Portugal. Envolve-se activamente na luta contra a Prova Geral de Acesso (PGA).

Sim, foi no último ano da PGA, o ano em que vou entrar na universidade. Fiz a última PGA.

Correu-lhe bem?

Muito bem! Tive uma óptima nota, 93 por cento, contribuiu para a minha entrada na universidade, mas nunca deixei de me opor aquela forma de encarar a selecção. Isso passa-se em 92, o arranque da luta contra as propinas e a lei 20/92 - nunca mais nos esquecemos disto. Portanto, saio do secundário com uma participação muito intensa numa luta e entro no ISEG quando há outra luta a acontecer, e envolvi-me. Era inevitável. No dia em que entrei na faculdade estava a envolver-me com um grupo que era uma espécie de geringonça; opunha-se às propinas e à direcção da Associação de Estudantes que era próxima do PSD que tendia a defender as propinas.

Chega caloiro a uma universidade e no primeiro dia já anda nessas lutas?

Não deu para ter timidez porque eu tive alguma visibilidade pública na luta contra a PGA e fui imediatamente sugado pelas dinâmicas políticas do ISEG.

Como tem lidado com essa imagem pública desde tão cedo?

Bom... Não tenho ninguém famoso na família e isso faz muita diferença. Nem no meu círculo de amizades quando tinha 16, 17 anos. Ou seja, ninguém me ajudou a preparar para o momento em que ganho uma visibilidade pública muito repentina. Chegaram a fazer caricaturas em revistas da imagem que eu tinha, com um rabo-de-cavalo, como representante da luta contra a PGA. De repente andar na rua e ser reconhecido. Foi um choque violento.

O que lhe diziam?

"Olha o bacano da PGA!" Essa nunca mais esquecerei. Estava à espera de uns amigos.

E porquê um choque?

Foi o meu primeiro contacto com o efeito que os mass media têm nas relações sociais, perceber que uma pessoa um dia é uma coisa e no outro outra radicalmente diferente porque apareceu na televisão. E foi péssimo...

Podia haver deslumbramento.

Mas também houve essa consciência. A percepção de que isso ia contra os meus princípios demasiado rígidos, de que as pessoas são uma coisa e não mudam de um dia para o outro só porque aparecem na televisão; que a sociedade está toda louca, não percebe que há uma essência nas pessoas e é essa essência que deve reconhecer e não a imagem pública; mas também foi o choque de perceber que eu me estava a comportar de forma diferente, “olha eu com a mania de que sou mais importante”. Vivi muito mal com isso, de tal forma que durante muitos anos recusei convites para participar em coisas públicas, evitava aparecer, ser porta-voz, dar a cara.

O que o fez mudar?

A crise. A certa altura, com o conjunto de pessoas ligadas aos Ladrões de Bicicletas [blogue] comecei a sentir uma acerta responsabilidade social; percebemos que tínhamos alguma capacidade de passar mensagens contra um estado de coisas com o qual não concordamos. Nos últimos três anos passei a ter um programa semanal na televisão, tive de voltar a gerir uma coisa que não geria desde os 18 anos: a visibilidade pública. A verdade é que não há assim tanta gente a interessar-se por economia e a coisa mantêm-se a um nível gerível. É menos relevante do que ser o bacano da PGA.

Até que ponto as redes sociais ajudam a chegar a quem não domina a linguagem económica?

Acho que desse ponto de vista o blogue é um sucesso. Permitiu que as pessoas percebessem que era possível pensar economia sem ser pelos chavões do costume. Permitiu criar um espaço reconhecido como válido, regular, onde era possível ir à procura de grelhas de leitura de uma realidade que ultrapassa a maior parte das pessoas. E também ajudou a desconstruir discursos económicos mais standards e também a ideia de que a economia é uma coisa muito complexa onde os não economistas não se devem meter. Um economista de que gosto muito, Ha-Joon Chang, professor em Cambridge, diz que a economia enquanto ciência é 95% senso comum e cinco por cento sofisticação matemática, que muitas vezes nem sequer é necessária. Sou capaz de não ir tão longe, mas ainda assim diria que os aspectos fundamentais do funcionamento das economias são muito intuitivos. O meu avô que tinha a quarta classe e raramente lia jornais e acho que nunca leu nenhum livro a não ser partes da Bíblia, tinha intuições sobe o funcionamento da economia enquanto microempresário iletrado que muitos licenciados em economia não têm. Ele não era nenhum génio. Era simplesmente uma pessoa atenta a esses temas e sentia necessidade de falar sobre eles. Os processos económicos são inteligíveis e a obrigação de qualquer economista que fale em público é evitar o jargão, as referências académicas de modo a ajudar a que o conjunto das pessoas consiga perceber o mundo. Como em qualquer outra disciplina científica parte do seu hermetismo não decorre da complexidade das análises, mas da linguagem e do discurso para dentro que a maior parte dos membros da tribo adopta.

Então, de outro modo, o que é um bom economista?

É alguém que conjuga boas competências analíticas e boa capacidade de julgamento ético sobre as escolhas que se fazem; alguém que sabe que uma boa decisão económica não é estritamente técnica. São sempre decisões com implicações no conjunto da sociedade.  

Quais são as suas referências?

Já falei do Ha-Joon Chang como um teórico recente. E tendo a valorizar muito o trabalho de economistas clássicos que escreveram mais sobre o sistema capitalista como um todo. Retiro um prazer enorme a leitura de Adam Smith, Karl Marx, John Stuart Mill, em certo sentido também Thorstein Veblen, pai do institucionalismo americano, Karl Polanyi, John Kenneth Galbraith; seguramente Keynes. Escrevem numa altura em que o que se esperava de um economista era a compreensão da sociedade como um todo e do papel da economia e das ideias económicas, e das receitas económicas para as políticas públicas, como sendo a sua grande missão. Hoje a maior parte pensa a níveis muito detalhados. A especialização tem esse problema. Há um livro que acho uma metáfora magnífica para perceber a ciência económica, O Jogo das Contas de Vidro, do Hermann Hesse. Conta a história de um mestre desse jogo mais ou menos hermético ao qual se dedica uma comunidade de génios. Jogavam aquele jogo de manhã à noite, demoravam muitos anos até se tornarem peritos, porque é um jogo de sofisticação crescente, e quanto mais anos passavam naquela comunidade mais sofisticados e geniais se tornavam, mas também mais dificuldade tinham em viver no mundo secular porque tinham pouca capacidade para perceber as regras, as dinâmicas, as lógicas. E há o momento em que a personagem principal chega a mestre mágico do jogo das contas de vidro e é colocado no mundo secular. Apercebe-se que a sua genialidade e a sua posição de topo naquela comunidade é-lhe absolutamente inútil para compreender o mundo complexo que é a vida real. Isto, infelizmente, é um retrato muito próximo de como vivem muitos economistas académicos.

E o momento actual parece desafiar ou não se ajustar aos modelos canónicos.

É da natureza do capitalismo a sua transformação permanente. A história do capitalismo é feita de acelerações e desacelerações. Muito frequentemente estas acelerações estão associadas a períodos de grande incompatibilidade entre as capacidades tecnológicas produtivas, regras institucionais, as práticas institucionais vigentes. Muitas vezes vivemos em percepção de crise iminente durante anos, décadas a fio. Isto não é nada de novo nem algo que desaparecerá. Estamos num período de grande tensão, porque houve uma globalização económica e financeira. Ao mesmo tempo que se libertavam estas forças de mercado não se criaram mecanismos compensatórios para lidar com todas as implicações desta liberalização comercial e financeira. Isso dá origem a desigualdades, a alterações do poder relativo, sempre fontes de enorme conflito. É nisso que estamos a viver, num período de enorme conflito em que estas tensões estão por resolver e se fazem sentir em vários pontos do mundo a cada momento. É situação de crise sistémica a nível internacional e grande parte dos problemas que sentimos - a nível ambiental, das migrações, ao nível político com as forças de extrema-direita, ou das relações entre estados, com as relações comerciais, seja ao nível da intensificação de alguns conflitos armados - são muito reflexo deste mundo que se transformou muito do ponto de vista das regras e do potencial tecnológico, mas onde não foram criadas soluções políticas para gerir de forma mais equitativa este novo potencial.

Como é que a ideologia influencia a interpretação dos indicadores económicos? Pelas perguntas que se fazem?

A ideologia afecta sempre a forma como olhamos o mundo e não há ninguém isento desse tipo de influência. A ideologia afecta desde logo as perguntas que fazemos; aquilo que me interessa na interpretação do mundo é muito determinado pelos meus valores e pelas minhas convicções. Mas também no tipo de indicadores que valorizo, porque os indicadores contêm doutrina em si. O PIB é um indicador que tem muita doutrina. Se encaro o PIB como um indicador de desenvolvimento, estou a dizer que só é desenvolvimento aquilo que tem uma tradução monetária nas relações mercantis - que é isso que o PIB na verdade mede. Ou seja, pelas perguntas, pelos indicadores valorizados ou nas teorias que tendo a considerar mais ou menos capazes de explicar o mundo à minha volta, necessariamente a ideologia afecta a actividade científica. Não significa que a actividade científica não possa ser rigorosa. E muito menos significa que deva ser poupada à confrontação, ao contraditório. Aquilo que define a ciência é o facto de as pessoas se exporem à crítica, ao confronto de  alternativas para os fenómenos observáveis.    

Em 2013 publicou em co-autoria o livro A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes (ed. Tinta da China). Passaram cinco anos, a percepção que temos do país mudou.

Há factores objectivos e factores subjectivos que explicam isso. Objectivamente, chegámos a um ponto, no auge da crise, em que, em termos trimestrais, houve quase 18 por cento de taxa de desemprego, além das centenas de milhares de pessoas que estavam a abandonar o país e de centenas de milhares de pessoas simplesmente a abandonar o mercado de trabalho e, como tal, não eram consideradas desempregadas. A crise social que houve em Portugal foi uma crise real que afectou profundamente a vida das pessoas e a vida das famílias. Hoje, devido a um conjunto largo de circunstâncias, a economia melhorou, a situação no mercado de trabalho melhorou de forma muito significativa, os rendimentos também aumentaram e a vida material das pessoas está objectivamente melhor. Mas há também um lado subjectivo, que tem a ver com a percepção que as pessoas têm da crise. A minha leitura é que houve uma opção durante o auge da crise da zona euro de criar pânico. É uma estratégia que tem sido utilizada em vários países, em vários momentos da história. Houve inclusive um livro muito famoso de Naomi Klein, A Terapia de Choque, cuja ideia central é a de que em momentos de crise alguns sectores das sociedades aproveitam para tentar fazer passar medidas e transformações na forma como a sociedade se organiza que jamais passariam em circunstâncias normais. Aumentar a sensação de choque, a sensação de crise, de desespero, cria desorientação, cria medo e torna mais fácil fazer passar medidas impopulares. Um dos motivos pelos quais o contraste entre o que se passa hoje e o que se passava há cinco anos é que deixámos de ter um governo que quer induzir alterações na sociedade através de uma terapia de choque e passámos a ter não apenas um governo, mas também um presidente da República muito mais apostados na ideia - citando o Prof. Marcelo - de descrispação.

A crise acabou?

Depende do que definimos como crise. A crise da zona Euro, enquanto crise político-institucional, não acabou. E não é certo que vá melhorar. A UE está confrontada com um conjunto enorme de contradições que têm a ver com o modo como a união monetária foi criada. A arquitectura institucional da zona euro é muito incompleta e inconsistente, o que faz com que esteja sistematicamente a criar problemas. Por um lado, tende a agravar em certos momentos a desigualdade entre países e regiões não contendo depois, em si mesma, instrumentos para evitar este agravar das desigualdades. Isso causa tensões políticas. E essa crise está por resolver. Se pensarmos apenas em termos de crise económica é evidente que a crise económica acabou no sentido em que estamos a atingir todos os anos níveis historicamente baixos de taxa de desemprego. Não consigo dizer que estamos em crise num momento em que temos o desemprego mais baixo dos últimos 16 anos. Isto não significa que a situação económica em Portugal seja robusta e perfeita porque continuamos a ter níveis de desemprego estrutural ainda bastante elevados. Mas continuamos a ter os problemas que sempre tivemos em Portugal, uma sociedade profundamente desigual, onde continua a haver muita pobreza, onde existem carências a nível de habitação, saúde e educação, e esses problemas não desapareceram simplesmente porque a economia está numa fase boa.

O seu discurso foca-se nas desigualdades e isso leva-me à definição que faz de si: um social-democrata radical.

Tenho necessidade de acrescentar o radical ao social-democrata num país em que temos um partido de centro-direita que se afirma social-democrata. Não consigo dizer que sou social-democrata sem chamar a atenção para o que considero ser a realidade dos dias de hoje, em termos políticos: quando olho para o cenário europeu, os partidos que vejo a defender mais acerrimamente o que considero um projecto social-democrata estão à esquerda do centro. Nem os partidos socialistas na maior parte dos países europeus hoje defendem projectos sociais-democratas; defendem projectos essencialmente neoliberais, isto, é projectos que partem do pressuposto que a expansão da lógica de mercado à generalidade das relações sociais é o caminho certo para as sociedades. Isto para mim é incompatível com a ideia de social-democracia.

E o modelo, é o Norte da Europa?

Para mim é, embora eu não queira impor o meu modelo a ninguém. Numa sociedade democrática fazemos por disputar socialmente visões de sociedade e aquela pela qual eu luto é uma sociedade mais igualitária, com melhor distribuição de riqueza, disponível para limitar em certa medida a liberdade de alguns indivíduos para dar mais liberdade ao conjunto da sociedade. As doutrinas filosóficas e políticas não são todas iguais. Há quem ache que a liberdade é um valor que se sobrepõe a tudo e mais alguma coisa, mesmo que a liberdade individual signifique constranger fortemente a liberdade de outros. Por exemplo, sociedades mais desiguais criam maiores pressões no que respeita a símbolos de status, e criam maior ansiedade em relação a isso. Quanto mais desigual é uma sociedade maior é a proporção de pessoas que olha para cima na escala social e procura emular comportamentos, padrões de consumo, formas de se apresentar. A desigualdade afecta muito o que chamamos o consumismo ou a valorização da imagem porque o poder de cada pessoa e de conjuntos de pessoas nas relações sociais tende a ser muito afectado pelas posições sociais. Sociedades mais igualitárias têm muito menos sinais exteriores de riqueza e também muito menos efeitos de emulação. Não vamos dizer que não existe fascínio simbólico pela imagem, mas não é vivida da mesma forma numa sociedade profundamente desigual como a portuguesa. A minha doutrina política e social, a ideia da social-democracia nórdica - que hoje já não é a mesma coisa que era nos anos 60 ou 70 -, continua a ser uma referência.

Estamos a falar de política e economia. Sente atracção pelo exercício de poder?

Olhando para o que sinto serem os factores impulsionadores da participação na vida pública, que muitas vezes são a fama, o poder e o dinheiro, não me sinto atraído por nenhuma destas três coisas. Como a maioria dos mortais terei a minha dose de vaidade, o meu desejo de conforto material e um desejo de conseguir fazer as coisas que quero e em que acredito, mas não sinto que as minhas escolhas pessoais possam ser determinadas por qualquer um destes factores. Se a sua pergunta é se eu quero ser ministro, não tenho desejo nenhum de ser ministro.