"Com calores assim, só apetece estar sossegado"
Évora, Reguengos de Monsaraz, Monsaraz, Mourão e Amareleja. O PÚBLICO andou pelo Alentejo a ver como resistem os alentejanos às temperaturas elevadas que desde esta quinta-feira atingem a região e o país.
Reguengos de Monsaraz era ao início da manhã desta quinta-feira o testemunho fiel de como as altas temperaturas podem transformar o descanso nocturno em noites mal dormidas. “Isto aqui é uma frigideira”, comparou Agostinho Freire, que às 9h30 já procurava com os amigos uma sombra junto ao mercado municipal da cidade alentejana, para onde a temperatura máxima prevista era de 45 graus Celsius.
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Reguengos de Monsaraz era ao início da manhã desta quinta-feira o testemunho fiel de como as altas temperaturas podem transformar o descanso nocturno em noites mal dormidas. “Isto aqui é uma frigideira”, comparou Agostinho Freire, que às 9h30 já procurava com os amigos uma sombra junto ao mercado municipal da cidade alentejana, para onde a temperatura máxima prevista era de 45 graus Celsius.
Bem perto, outro grupo de amigos, todos reformados, comentava os “calores” que as televisões e os jornais anunciavam até ao fim-de-semana. Nada que assuste Manuel Joaquim Cartaxo. “Estes calores não são nada. É do coração que o digo”, acentua. Diz ter 72 anos e garante que os dentes lhe cresceram “já andava a fazer trabalhos no campo”. O seu currículo profissional é o de muitos da sua idade que nasceram e viveram no Alentejo. “Ceifei muito e carreguei muita palha, com um lenço a tapar-me a cara por causa do pó” e o corpo roído pelo pó que se entranhava no suor que o cobria, encharcando a roupa que vestia. Com experiências assim, “nesse tempo não se sabia que tempo havia”, explicou ele ao neto, que ao primeiro sinal de calor já não consegue andar de carro sem que o ar condicionado esteja ligado, quando, no seu tempo, o carro que tinha “era puxado por um burro”, contrasta.
Mesmo assim, e apesar desse passado, Joaquim Cartaxo lá vai reconhecendo que “de facto está muito calor”: “Mas estamos habituados.” Não parece, pela reacção do colega de conversa Joaquim Carrapato: “Olha lá, moço, isto já não vai lá sem ar condicionado”, que não tem na sua casa. “Esta noite não consegui dormir. Os lençóis agarravam-se-me ao corpo”, admitiu. “Ainda tentei dormir na varanda, mas nem o vento mexia.” Quando o calor chega, as queixas surgem, mas, na verdade, garante Carrapato: “A gente já não estranha. É assim desde que me conheço.”
No largo principal de Reguengos, mesmo em frente do edifício municipal, os bancos do jardim iam sendo procurados por um número crescente de pessoas. “Foi um bocado difícil passar a noite mesmo com as janelas abertas”, relata Luís Manuel Caeiro, frisando que o pior ainda está para vir. Referia-se ao período depois do meio-dia. “Até queima.” A partir dessa hora só mesmo quem precisa é que anda na rua. “O corpo amolece e só apetece estar deitado”, assinala.
O problema vai agudizar-se nos próximos dias. As casas de hoje não são feitas de taipa (paredes construídas com terra compactada) mas com materiais que não estão adequados às amplitudes térmicas que se registam no Alentejo. Assim, o calor vai-se concentrando dia após dia nas paredes das casas deixando o seu interior sempre com temperaturas que se tornam insuportáveis. Toleram-se melhor os dias do que as noites, em que a temperatura ambiente chega, por vezes, aos 30 graus Celsius.
Estrangeiros sofrem mais
Na aldeia histórica de Monsaraz, às dez horas da manhã, só se viam turistas a colocar os seus pertences na bagageira das viaturas. “Vou já para o Algarve”, assumiu um cidadão francês que reconheceu ao PÚBLICO ser-lhe impossível suportar “tanto calor”. Mais assustado ficou quando lhe comunicaram que a temperatura poderia subir ainda mais até ao final da semana.
No posto de turismo, são os visitantes estrangeiros quem sofre mais. Enquanto nas horas mais críticas de calor os nacionais recolhem para a sesta ou para frequentar as praias fluviais de Monsaraz, também na albufeira do Alqueva, os estrangeiros arriscam nas caminhadas e “por vezes sofrem as consequências”, que os obrigam a procurar o ar condicionado do posto de turismo.
Mourão está próximo. Era só atravessar a comprida ponte sobre a albufeira do Alqueva, para observar da estrada que não havia pessoas nem animais ao alcance do olhar. O verde-oliva é uma constante na paisagem profundamente alterada pela nova monocultura, que Santinha Lopes, ex-presidente da Câmara de Mourão, admite poder vir a trazer dores de cabeça ao Alentejo. Cumpridos longos anos de mandato, o antigo autarca passa boa parte dos tempos livres a bronzear o corpo na praia fluvial inaugurada em 2017 ou a frequentar as duas piscinas que foram construídas durante os seus mandatos, para três mil pessoas. “Se fosse hoje, pensava duas vezes antes de as construir”, reconhece, fazendo referência aos elevados custos de manutenção dos equipamentos.
A piscina da vila é frequentada pelas crianças das escolas, para não as sujeitar a ficarem sozinhas em casa enquanto os pais trabalham. “É o que lhes apetece mais”, comenta uma das monitoras que vigiam as crianças. Umas vezes na piscina, outras na praia fluvial. Água não falta. Antes do Alqueva, “era um suplício que sofríamos com a sua falta”, lembra Santinha Lopes.
Na praia fluvial de Mourão está Amélia, de Sesimbra. Programou para estas férias uma viagem pelo interior alentejano, mas pensa ficar mais tempo na vila, agradada com a temperatura da água da praia no Alqueva, que “está mais quentinha do que a da praia de Sesimbra, que é muito mais gelada”. Do Alentejo diz gostar muito, mas reconhece que “com este calor é difícil a gente habituar-se”. O intenso calor permitiu-lhe tirar uma dúvida que mantinha em relação ao modo de estar dos alentejanos. “Agora sei porque é que eles são calmos. Com calores assim, só apetece estar sossegado.”
Na Amareleja, epicentro do anel de fogo alentejano, só se anda de garrafa na mão na rua. “É preciso beber água com fartura”, aconselha José Manuel Monteiro, empoleirado no andaime, enquanto rebocava a fachada de uma casa. Diz que bebe quase cinco litros de água por dia enquanto trabalha, “fora a que bebe em casa”.
O colega que lhe dá apoio, José Agostinho Banha, diz que a temperatura ao meio-dia “até nem está má”, frisando que “está mexendo um espojinho [que levanta o pó] e a coisa [o trabalho] leva-se melhor”. A situação complica-se a partir das 15 horas. E às 18 horas, quando estão prestes a terminar o trabalho, “até as calças picam”, comenta Manuel Monteiro, chamando a atenção para a necessidade de ter a cabeça coberta.
Em Évora, são muito poucos os que circulam na Praça do Giraldo. E os que se vêem não conseguem esconder o incómodo que as altas temperaturas lhes provocam. Mais de duas dezenas de turistas procuravam ansiosos uma sombra depois de terem palmilhado as ruas que dão acesso à praça, o que nas condições de calor extremo que nesta quinta-feira se sentiu representava uma escalada.
Mas não são apenas as pessoas que sofrem as agruras provocadas pela onda de calor que está a fustigar o Alentejo. Quando chegam as temperaturas extremas, os animais concentram-se, bem juntos nas sombras que encontram das azinheiras e sobreiros, e nem um balido se ouve.
João Barradas levantou-se bem cedo, às quatro da madrugada, e uma hora depois já estava a atrelar ao tractor um depósito com água para encher os bebedouros que fornecem água a uma manada com 240 vacas e a um rebanho com 600 ovelhas. À uma da tarde, o PÚBLICO encontrou-o no regresso a casa. “É hora de parar”, depois de ter garantido água aos animais, que capta nas charcas (pequenas barragens) que construiu nas suas explorações pecuárias. Depois de ter sido emigrante na Suíça “mais de 30 anos”, diz que não consegue parar apesar de estar na casa dos 60.