Dídio Pestana em Locarno: a intimidade on the road
Conhecêmo-lo como cúmplice de Gonçalo Tocha, com quem tem uma amizade que se estendeu ao cinema e à música. Encontramos agora Dídio Pestana, músico e homem do som, como cineasta em nome próprio: Sobre Tudo Sobre Nada, a sua primeira longa, foi aceite a concurso em Locarno.
Pelo meio das imagens de muito mundo que compõem Sobre Tudo Sobre Nada, há uma passagem por um longo túnel, e depois as paisagens solares do Lago Maggiore, pano de fundo do festival de cinema de Locarno. As imagens datam de 2011, quando Dídio Pestana acompanhou o amigo e cúmplice Gonçalo Tocha ao certame suíço para apresentar É na Terra, Não É na Lua, diário de um ano passado na ilha açoriana do Corvo. Sete anos depois, essas imagens rodadas em Locarno vão ser projectadas no local onde foram filmadas: Sobre Tudo Sobre Nada tem estreia mundial esta quinta-feira, dia 2, na 71.ª edição de um festival que tem premiado regularmente o cinema português, e está a concurso na secção de “vanguardas” Signs of Life.
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Pelo meio das imagens de muito mundo que compõem Sobre Tudo Sobre Nada, há uma passagem por um longo túnel, e depois as paisagens solares do Lago Maggiore, pano de fundo do festival de cinema de Locarno. As imagens datam de 2011, quando Dídio Pestana acompanhou o amigo e cúmplice Gonçalo Tocha ao certame suíço para apresentar É na Terra, Não É na Lua, diário de um ano passado na ilha açoriana do Corvo. Sete anos depois, essas imagens rodadas em Locarno vão ser projectadas no local onde foram filmadas: Sobre Tudo Sobre Nada tem estreia mundial esta quinta-feira, dia 2, na 71.ª edição de um festival que tem premiado regularmente o cinema português, e está a concurso na secção de “vanguardas” Signs of Life.
É estranho pensar neste “diário filmado” em Super 8, que o seu realizador define como “próximo e íntimo”, como filme “de vanguarda” ou “experimental” – mesmo que Dídio, em entrevista por Skype a partir de Berlim, fale às tantas de Jonas Mekas (referência que não é nada descabida). Mas, independentemente da secção, a atenção de Locarno a filmes pessoais, diferentes, “fora do baralho”, torna-o no festival certo para receber Sobre Tudo Sobre Nada. “Os festivais também são uma questão de sorte”, diz, “mas começou a fazer algum sentido ver o filme em Locarno por causa dessa memória do É na Terra”, que também teve estreia mundial numa competição paralela do festival suíço (Cineastas do Presente, dedicada a primeiras obras, na qual recebeu uma menção honrosa).
Pestana ri-se com a coincidência, pela qual, de certa maneira, “culpa” Tocha, com quem trabalhou em todos os seus filmes mas de quem é amigo desde há muito mais tempo, “desde os tempos da faculdade”. “Foi o Gonçalo que me disse: 'por que é que não fazes uma nova montagem do filme, mandas para Locarno e vês o que é que acontece?'. E obriguei-me a fazer uma montagem e mandei...”
Já voltamos a esta questão do “obriguei-me a fazer uma montagem”, mas as coincidências festivaleiras e o facto de Dídio Pestana ter feito Sobre Tudo Sobre Nada quase inteiramente sozinho torna inevitável relacioná-lo com É na Terra, Não é na Lua. É também injusto, pois Pestana partilha com o filme de Gonçalo Tocha apenas a dimensão pessoal do olhar – a primeira longa do homem do som é um “diário” de imagens registadas em Super 8 durante quase uma década, ao longo de viagens com epicentro em Berlim (onde reside desde 2006) e que vão da Dinamarca aos Açores, da Guiné-Bissau ao Chile. Mais do que um simples diário de viagem, Sobre Tudo Sobre Nada é também um confronto com a memória – a da sua família, à sombra do pai falecido, e a sua própria, dos romances que foi vivendo e dos amigos que foi fazendo, muitos dos quais aparecem nas imagens.
Para além de Tocha, com quem mantém o duo musical Tochapestana, passam por Sobre Tudo Sobre Nada uma série de artistas e cineastas com quem Pestana tem laços pessoais e profissionais, como Mariana Caló e Francisco Queimadela, Filipa César, Marta Leite, Catarina Miranda ou Pedro André (aliás, a página Internet do filme em www.sobretudosobrenada.com reenvia para os sites individuais de cada um). Uma geração global e cosmopolita que, para Pestana, é uma inspiração permanente – “estás sempre a aprender coisas, ou pelo menos deverias se não estiveres fechado!” – mas onde, apesar de se a sua saída de Portugal para procurar outras oportunidades, será excessivo ver referências à crise. “Fui para Berlim em finais de 2006. A crise já não era uma miragem mas também ainda não era o que foi, e acho que a geração de pessoas que saíram não é assim tão diferente das anteriores que emigraram. Têm é uma vivência diferente, até porque hoje há uma circulação no espaço europeu completamente diferente.”
O resultado é um filme profundamente pessoal, onde Pestana se expõe muito visivelmente. “Mas não sinto essa exposição, se calhar porque só o mostrei ainda em contextos pequenos. A intenção inicial foi sempre fazer uma coisa próxima, íntima. Não é por acaso que as primeiras filmagens que faço são de uma relação que estava a começar. Quando vou pela primeira vez visitar a minha namorada [da altura] a Copenhaga, já vou com intenção de filmar.”
A opção pela rodagem em Super 8 e não em digital fez também parte dessa lógica de impor limites, como explica o realizador. “Foi uma opção deliberada. A razão estética não é a mais importante – se bem que tenha a ver com a questão da intemporalidade do material: é um formato mais associado a um passado longínquo, e quando a uso para filmar coisas de um passado mais recente cria um espaço um pouco mais perdido. [A escolha] teve a ver com questões práticas, eu já tinha antes feito experiências em digital e percebi rapidamente que me perdia muito. Podia filmar tudo. O Super 8 é um formato que me permite organizar-me, obriga-me a tomar decisões: 'filmo ou não filmo?' No digital não tens isso. Acabo por ter de escolher no momento o que quero filmar.”
Essa passagem do tempo de que Pestana fala acabou igualmente por se tornar parte integrante da própria textura do filme, cujo processo de decantação foi naturalmente longo. “Eu diria que a montagem já começou há dois ou três anos”, com a ajuda do montador Rui Ribeiro, diz. “Tínhamos trabalhado juntos no É na Terra, e gosto muito da maneira de trabalhar dele. Fizemos aí uma primeira meia hora – foi o início do processo, que depois passou por várias fases.” E é aqui que entra a tal questão do “obriguei-me a fazer uma montagem” que deixámos há bocado atrás: “No fundo, eu preciso de prazos. Estou sempre a dar-me prazos para ir avançando. A primeira versão do filme, ainda um bocado longe do que está agora, acabou por fazer parte de um mestrado que eu estava então a fazer [em estudos sonoros na Universidade das Belas-Artes de Berlim], como desculpa para ir avançando com a coisa...”
No fundo, Sobre Tudo Sobre Nada foi um work-in-progress permanente onde iam sempre surgindo mais momentos – até um ponto em que, literalmente, o próprio filme disse “já chega”. “Sim, podia ter filmado mais, mas nos últimos anos senti que não precisava", explica. Como se o diário – ou pelo menos esta parte do diário – se encerrasse ali. “Exacto. O filme tinha um tempo natural para fechar, e quando filmei este ano as últimas imagens, aquilo que lhe fazia falta, senti que tinha chegado ao fim.”
Agora, Sobre Tudo Sobre Nada começa, em Locarno, outra vida. “E espero que tenha uma boa vida, que seja visto e circule.”