Navio civil italiano devolve ilegalmente à Líbia 108 resgatados no Mediterrâneo

Roma lava as mãos e ONU quer confirmar onde aconteceu o resgate. Certo é que estas pessoas não foram deixadas num porto seguro nem puderam pedir asilo, como definem as convenções internacionais e a lei de socorro no mar.

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Salvamento da associação Proactiva, ao largo da costa da Líbia, no ano passado Giorgos Moutafis/REUTERS

Tudo menos regressar à Líbia é um apelo frequente que os membros de organizações não-governamentais envolvidas em operações de resgate no Mediterrâneo ouvem dos que salvam. Há descrições de quem volta a atirar-se ao mar quando teme que esse seja o destino e muitos relatos a justificá-lo: enquanto estão na Líbia, à espera de uma oportunidade para embarcar a caminho das costas europeias, muitos futuros requerentes de asilo são alvo de roubo, espancamentos, tortura, violações

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Tudo menos regressar à Líbia é um apelo frequente que os membros de organizações não-governamentais envolvidas em operações de resgate no Mediterrâneo ouvem dos que salvam. Há descrições de quem volta a atirar-se ao mar quando teme que esse seja o destino e muitos relatos a justificá-lo: enquanto estão na Líbia, à espera de uma oportunidade para embarcar a caminho das costas europeias, muitos futuros requerentes de asilo são alvo de roubo, espancamentos, tortura, violações

Relatos como estes ouviram-se, por exemplo, a bordo do navio Aquarius, gerido pela SOS Méditerranée, quando, a meio de Junho, foi proibido de aportar em Itália quando com mais de 600 resgatados a bordo (incluindo 400 salvos pela própria Guarda Costeira italiana). Essa pequena crise no meio da tempestade em curso no Mediterrâneo acabou com final feliz, depois de o então recém-nomeado primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, se ter oferecido para receber os socorridos. A tempestade continua.

Pela primeira vez, um navio levou de volta para a Líbia pessoas que acabara de resgatar no Mediterrâneo, quando o barco de borracha em que seguiam se encontrava em risco de afundamento. A denúncia foi feita pela ONG espanhola Proactiva e repetida pelo deputado italiano Nicola Fratoianni (Livres e Iguais), que seguia a bordo do navio Open Arms.

O Governo de Roma e a Augusta Offshore, o armador proprietário do navio que devolveu as 108 pessoas à Líbia, garantem que a Guarda Costeira italiana não participou de nenhuma forma no resgate – ou na posterior devolução. Mas as comunicações de rádio ouvidas no Open Arms, que se encontrava por perto, confirmam que o salvamento aconteceu em águas internacionais, pelo que a entrega dos resgatados à Líbia é ilegal.

Não é porto seguro

“Estamos a recolher toda a informação necessária. A Líbia não é um porto seguro e este acto pode comportar uma violação do direito internacional”, comentou o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados – a única dúvida é o local do resgate, que as autoridades italianas asseguram ter ocorrido em águas líbias sob a coordenação da guarda costeira líbia. O deputado Fratoianni lembra que o navio Asso Ventotto, de bandeira italiana, dá apoio a uma plataforma petrolífera gerida em conjunto pela NOC líbia e pela italiana ENI – uma das maiores petrolíferas do mundo, detida em 30,303% pelo Governo (golden share).

Há factos indesmentíveis e confusões possíveis. As leis internacionais de socorro marítimo obrigam quem quer que esteja no mar a salvar os que correm risco e a transportá-los até ao “porto seguro mais próximo”. Nem as Nações Unidas nem a União Europeia consideram a Líbia um “porto seguro”. Para além disso, a lei internacional determina que gente em fuga do seu país tem direito a pedir asilo, o que nenhuma destas pessoas, incluindo cinco crianças e cinco mulheres grávidas, poderá agora fazer.

A única confusão aqui resulta do facto de a Itália ter, nos últimos anos, incentivado as autoridades líbias (reconhecidas internacionalmente, há outras desde a queda de Muammar Khadafi e do deslize do país para um Estado falhado, com grupos terroristas e senhores da guerra a controlarem partes do território) a voltarem a patrulhar as suas águas. Forneceram-lhes equipamentos e fundos. Isto com a justificação – verdadeira – de que Bruxelas não colaborava o suficiente com Roma no patrulhamento do Mediterrâneo.

Na lógica de adiar ou ignorar problemas que tem pautado a acção das autoridades da UE a respeito da crise mundial de refugiados, Bruxelas acabou por aceitar esta transferência de responsabilidades, apoiando as novas forças de segurança marítima líbias.

Guarda sem porto

Ou seja, há informalmente uma zona no Mediterrâneo a ser patrulhado pela chamada guarda costeira de um país que não é reconhecido como porto seguro – mas que passou a supervisionar operações de socorro e resgate nessa área. Isso serve naturalmente os interesses do actual Governo italiano, fortemente anti-imigração e defensor de que cada país pode fechar as suas fronteiras.

“[A Guarda Costeira italiana] não coordenou nem participou em nenhuma destas operações [de segunda-feira], como falsamente disseram uma ONG e um parlamentar de esquerda mal-informados”, escreveu no Facebook o vice-presidente do Governo e ministro do Interior, Matteo Salvini, líder do partido xenófobo e racista Liga, no poder em coligação com o Movimento 5 Estrelas.

Salvini não deixou de tentar espetar mais umas farpas no trabalho das ONG que desde 2013 começaram a substituir-se aos estados no resgate de gente em risco no Mediterrâneo, às quais declarou guerra bem antes de ser eleito: “Nas últimas horas, a guarda costeira líbia salvou e devolveu a terra 611 imigrantes. As ONG protestam e os traficantes perdem o seu negócio? Bom, nós assim avançamos”.

Segundo Riccardo Gatti, chefe de missão no Open Arms, na altura do resgate havia várias embarcações em risco: “Para uma destas chegou uma mensagem não directamente da Guarda Costeira italiana mas da rádio Malta, um procedimento standard, em seguida soubemos de uma embarcação a precisar de socorro através de um avião de uma ONG francesa, que avisou Itália mas também a nós”.

O problema, explica, “é que Itália deixou de existir a nível de coordenação de socorros porque está a tentar dar autoridade aos líbios, que, por sua vez, não passam nenhuma informação, não coordenam operações”.

Salvos por uma revolta

Nos líbios, acrescenta Gatti, “não podemos confiar, às vezes dizem que vão disparar, uma vez dispararam mesmo contra nós”. Certo é que os membros da ONG ouviram “a conversa entre a guarda costeira líbia e o Asso, da qual se compreendia que estava em curso uma devolução”. Depois da mensagem de Malta, o Open Arms tentou contactar a Guarda Costeira italiana e ficou a saber que o resgate estava em curso, a cargo dos líbios.

“A marinha líbia deu indicações para se socorrer um barco que estava num posição contrária à nossa, nós estávamos a dirigir-nos para o local certo graças às informações confirmadas pelo avião francês. Mandaram-nos para 35 milhas de distância”, descreve o responsável da ONG espanhola. “Já sabíamos que era uma mentira, uma manobra de distracção, não é a primeira vez que nos acontece”. O Asso Ventotto estava terça-feira aportado em Trípoli, a capital líbia.

Nos últimos meses, o Governo de Salvini já confiscou navios de várias ONG, incluindo o Astral, da Proactiva. O mesmo que viu os líbios dispararem contra os seus tripulantes quando tentava aproximar-se de gente em risco.

Há 20 dias, recorda o jornal Corriere della Sera, outro navio, o Vos Thalassa, que como o Asso Ventotto dá apoio a uma plataforma petrolífera, esteve prestes a transferir resgatados para um barco de patrulha líbio. Na altura, uma tentativa de revolta de alguns dos socorridos convenceu o comandante a inverter a rota e a pedir ajuda à Guarda Costeira italiana – só a intervenção do Presidente da República, Sergio Mattarella, permitiu a estas pessoas desembarcarem em Trapani, na Sicília.